VINGANÇA DE BÚFALO
Apresentámos o búfalo como uma das mais extraordinárias - e mais
vingativa de todas as feras. A História da Caça está cheia de exemplos significativos. O número
de caçadores mortos por búfalos - um herbívoro! - não andará longe do número de caçadores vítimas do
leão - um carnívoro. O exemplo mais impressionante que conhecemos dos sentimentos de vingança
dos búfalos é o seguinte: Um caçador afamado da África do Sul, muito conhecido e admirado no Transval
- Mr. Bosman - ia fre,-quentemente aos antigos territórios da Companhia de Moçambique, lá para as bandas
longínquas do Pafuri, caçar búfalos. Eram as suas peças de caça preferidas. E ao longo de uma
carreia brilhante e intensa de caçador intemerato - bem podia dizer que a caça ao búfalo não tinha segredos
para ele. Além de bom caçador, era magnífico atirador - calmo, preciso, seguro. Todas as cenas
e peripécias, que podem passar-se entre búfalos e caçadores, tinha-as ele! - assim o julgava - vivido
plenamente. Acreditaria na possibilidade de um desastre - mas não se convencia da possibilidade
de uma surpresa.
* * * Caçava um dia em Chicualacuala, antigo posto administrativo da Companhia de Moçambique,
no decorrer de uma das digressões cinegéticas que costumava empreender em território português.
Palmilhando matas, que muito bem conhecia, depressa se encontrou à vista de uma das numerosas manadas
de búfalos que frequentavam, e ainda hoje frequentam, a região. Aproximou-se, com vento de feição,
até onde lhe pareceu bem - menos do que podia, para aumentar o interesse do tiro - e disparou sobre um
grande macho. A manada estremeceu como um corpo só, erguendo no ar uma floresta de cornos - e
debandou, levantando nuvens de terra. O bicho alvejado caiu - mas levantou-se logo a seguir, miscando-se
no trilho da manada. Tentou o caçador disparar segundo tiro, mas o búfalo já não lhe deu tempo,
tão depressa se colocou fora das vistas, por entre as brenhas da mata. Como esta não era fácil,
por bastante cerrada, Mr. Bosman, caçador avisado e muito sabido das manhas dos búfalos, desistiu da
perseguição - e foi-se em busca de outras manadas, ou de encontro casual com algum velho solitário.
Quando regressou ao seu acampamento tinha morto meia dúzia de búfalos. Almoçou e fumou tranquilamente
o seu cachimbo. Durante os dias seguintes andou caçando pela região, umas vezes mais, outras vezes
menos afortunadamente, como de costume. E até aqui nada se passou de diferente do que habitualmente
se passava nas caçadas de Mr. Bosman.
* * *
Passados oito dias - precisamente oito dias - sobre a manhã em que
ferira o búfalo que atrás assinalámos, Mr. Bosman voltou à mesma mata, onde não tornara a caçar.
Acompanhavam-no, como de costume, meia dúzia de pretos, que faziam de pisteiros, e davam despacho
aos despojos dos animais abatidos. Seguia o rasto de uma manada numerosa. E como, a avaliar pêlos
dizeres do trilho, supusesse que os bichos lhe levavam grande dianteira - não esperava encontrá-los antes
de mais uma hora de marcha. Caminhava pois despreocupadamente, palmilhando um carreiro gentílico
que torneava uma chana, à borda da floresta - a arma descuidadamente a tiracolo e o cachimbo ferrado
nos dentes. Em certa altura - e quando menos o esperava, porque nem ele nem os pretos deram fé
de nada que os alarmasse - disparou-se-lhe de um maciço da mata, pelo flanco direito, o mesmo búfalo
que ferira oito dias antes, pouco mais além! Nem teve tempo de apontar a espingarda. A
primeira marrada, violenta e furiosa, apanhou-o em cheio, e projectou-o a distância, tão desastradamente,
que, quando acabou de rolar pelo solo, já não tinha forças para se levantar. Mas como se esta não
bastasse - e nunca basta só um golpe a búfalos feridos que decidem vingar-se - a fera perseguiu o corpo,
e tanto o escorneou e pisou que o pobre caçador ficou reduzido quase a uma massa de coisas esmagadas
e partidas. Os pretos, tão surpreendidos como o sul-africano pelo aparecimento do búfalo, fugiram
apavorados, procurando salvação nas árvores, de onde assistiram ao drama. O caçador ficou, portanto,
absolutamente só, à mercê do búfalo. Só passado algum tempo - muito pouco pelo relógio, muitíssimo
para salvar Mr. Bosman - é que os pretos, mais serenos, tentaram afugentar o búfalo, rompendo em gritos
estridentes, dos poleiros em que se encontravam. Por essa altura já a fera pisava apenas um corpo
inanimado. E, ou porque o sentisse inanimado, e satisfeitos por consequência os seus propósitos
de vingança, ou porque a algazarra dos pretos o impressionasse - ou ainda por ambos os motivos conjuntamente
- o certo é que o búfalo se afastou e desapareceu na profundidade da mata. Os pretos desceram
então. Já o caçador não dava acordo de si nem mostrava sinais de vida. Transportaram o
corpo numa padiola de ramos até ao posto. Mr. Bosman - verificou-se aí - ainda respirava. Recebidos
os primeiros e, naturalmente, precários socorros, foi levado ao hospital mais próximo - a duzentos e
cinquenta quilómetros de distância! Mas a vida que lhe restava era tão pouca, que doze horas após
o desastre este excelente caçador sul-africano soltava o último suspiro. Estava quase esmagado,
as costelas partidas - e uma carótida lacerada por uma cornada. Como esperou aquele búfalo oito
dias? E como resistiu aquele corpo doze horas ?
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