PREFÁCIO DA 1ª. EDIÇÃO
Não pensou nenhum dos autores deste livro escrever obra definitiva
sobre assunto tão vasto, nem também pretenderam que ele viesse a constituir solene tratado de ciências
naturais. Quiseram apenas anotar observações - algumas que eram inéditas, outras que andarão já
recolhidas pela atenção de caçadores menos expansivos, outras ainda que, porventura, já constam das centenas
de livros que, sobre caça, se têm publicado nas sete partidas do mundo. Mas, não pretendendo escrever
livro de ciência, cuidam, todavia, que o que neste livre se conta poderá servir a uma Ciência, na qualidade
de mais um depoimento de testemunhas oculares, de mais uma fonte viva de informação. Não se trata
de um livro de caça, no sentido que, correntemente, orienta os livros deste género, isto é, apenas um
volume de narrativas venatórias para distracção de burgueses ou um manual de técnica para aprendizagem
de devotos. É sobretudo, um livro que pretende dizer sobre a vida e os costumes dos animais bravios,
sobre a sua psicologia, as coisas, novas e velhas, que a observação do caçador surpreende quando, nesta
acção de caçar, é o seu espirito de molde a não se fixar exclusivamente no termo final - a morte do bicho.
De resto, para caçar, isto é, para aprisionar ou matar um animal selvagem, e nas circunstâncias de
dificuldade, perigo, fadiga e arte que tornam nobre este exercício, interessa tanto, ou mais, ao caçador
saber da vida do bruto como da sua morte. A morte é um ponto final relativamente pouco variado.
A vida dos animais é toda ela um romance misterioso, pitoresco, movimentado, que surpreende sempre,
que encanta muitas vezes, que instrui frequentemente. E, nalguns casos ainda, são exemplo para a vida
dos homens. Como os bichos morrem está mais ou menos dito e escrito, na sua verdade e na sua fantasia.
Como os bichos vivem é ainda, em muitos aspectos, um mistério que os homens só muito incompletamente
desvendaram. Um caso de morte que se conta, que sucedeu connosco ou com outros, com mais ou menos
incidentes, com maior ou menor emoção, é sempre, afinal, um caso análogo a outro que já se contou. Entre
uma espingarda, um homem e um animal as cenas não podem ser tão variadas que haja ainda muito que dizer.
Os casos da vida dos bichos, porque exigem maior observação e mais curiosidade, têm merecido menos
relatos e menor atenção. É que, realmente, é muito mais difícil surpreender a maneira de viver
dos animais da selva do que a sua forma de morrer às mãos do caçador. É claro que quando dizemos
".caçador* não nos referimos nem ao homem que, tranquilamente, espingardeia, de dentro de um automóvel
lançado na planície, sem risco, sem fadiga, sem dificuldades, um animal surpreendido a pastar, nem ao
simples atirador que apenas sabe matar, mais ou menos certeiramente, e que seria incapaz de procurar
e atacar inteligentemente um animal à custa de conhecimentos adquiridos acerca dos seus costumes e do
seu rasto. Há que distinguir entre o simples atirador e o caçador. Para ser atirador, simples
matador de animais bravios, basta dispor-se de uma espingarda e saber servir-se dela. Um aleijado, um
velho, uma criança, uma mulher débil, podem, em muitas circunstâncias, atirar e matar um animal selvagem.
Para ser caçador muitas outras qualidades são precisas - e em tal grau, que não é, certamente, a
de atirar muito bem a mais preciosa. Pode-se ser um grande caçador dentro de qualidades médias de atirador.
Um grande atirador nem sempre dá, ou pode dar, um regular caçador. Mas este é assunto que no decorrer
da obra terá a sua demonstração e desenvolvimento. Veio ele a propósito. de dizermos que a morte dos
bichos - dalguns pelo menos - está, por vezes, ao alcance de qualquer atirador. O saber da sua vida,
por observação directa, e a possibilidade de aproveitar esses conhecimentos para tombar ou aprisionar
um animal selvagem, são faculdades de caçador. Resolveram, pois, os autores do que vai ler-se
escrever o que sabem da vida dos bichos, convencidos de que, no que têm visto e observado, há alguma
coisa de inédito, susceptível de interessar uma curiosidade científica e atrair desenfastiados leitores.
Este é o seu principal objectivo. No resto serão estas páginas quase como as de um livro vulgar
de caça em África, ou antes, no Sul de Angola - o que não é ocioso dizer-se, porquanto os animais, como
os homens, também gozam de costumes inerentes à região em que habitam. Simplesmente, evitaremos nelas
os relatos fantasiosos e as aventuras pessoais, que poderiam parecer um propósito de exibição por parte
dos autores. Os únicos heróis deste livro são os bichos, na sua vida e na sua morte. O
primeiro plano estabelecido para esta obra previa um livro dividido em três partes: a primeira, que trataria
dos chamados animais ferozes, a segunda referente aos antílopes, e a terceira dizendo respeito aos animais
que, não podendo ser compreendidos na classificação anterior, oferecessem interesse previsto pela índole
e objectivos da obra. Não se tratava de uma classificação de naturalistas, mas simplesmente de
uma ordem, até certo ponto arbitrária, estabelecida por caçadores. Coligidas as primeiras notas
e arrumados os assuntos, verificámos que a matéria era excessivamente vasta para se poder conter em duas
ou três centenas de páginas. Só a apresentação dos elefantes e rinocerontes enche um volume, visto que
desde o princípio quisemos evitar os grandes formatos, que tornam os livros incómodos e antipáticos.
Da Vida e da Morte dos Bichos" aparecerá, pois, numa série de volumes sucessivos, que serão tantos
quantos os necessários para conter o assunto, sem preocupação de uma ordem ou de limites que poderiam
sacrificar o interesse da matéria. Não sabemos, ao fim deste primeiro volume, dedicado às duas
grandes feras que entre si repartem a realeza das selvas, até onde conseguiremos realizar o nosso plano.
O assunto é vasto e as vidas são curtas e trepidantes. Todavia, as notas estão coligidas, os materiais
abundam - e isso nos permite esperar que levaremos a cabo o nosso propósito. Importa ainda, antes
de concluir este prefácio, que só tem um autor e que enche as únicas páginas cuja responsabilidade se
não divide por três, esclarecer um jacto importante. De resto só assim Abel Pratas e eu consentiríamos
em assinar esta obra. Seria impossível escrevermos este livro sem a colaboração de Teodósio Cabral.
Enquanto Abel Pratas e eu somos caçadores como tantos outros, caçadores por desporto, acidentalmente,
Teodósio Cabral é um caçador extraordinário - dos maiores que há por esse mundo. È da sua experiência
de vinte anos, do seu saber de curiosíssimo e culto observador, das suas faculdades inatas de naturalista
prático, dos seus profundos conhecimentos sobre todos os mistérios da selva que resultaram as notas sobre
as quais foi possível redigir este volume. Embora seus companheiros de caça, nunca fomos a seu
lado senão discípulos perante um mestre. O pouco que sabemos, o que vimos e anotámos só muito raras vezes
não foi conduzido por ele. Pertence-lhe, pois, por direito próprio, a melhor parte deste livro.
HENRIQUE GALVAO
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