A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



LEITE DE VASCONCELOS



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Leite de Vasconcelos foi, ao longo da sua vida, uma figura exemplar da intelectualidade moçambicana, exemplar também como cidadão do nosso país.

Cronista mordaz, na sua coluna "Pela boca morre o peixe", escalpelizava a actualidade, com uma mistura de rigor e de humor que faziam da sua leitura uma obrigação cultural e um prazer.


PORQUÊ ESTA EDIÇÃO


A Associação dos Amigos de Leite de Vasconcelos pretende, através da publicação em livro desta colectânia de crónicas, contribuir para uma maior divulgação do pensamento de um dos mais importantes intelectuais moçambicanos dos nossos tempos.
Prematuramente desaparecido, Leite de Vasconcelos deixou por editar um significativo espólio de textos que, gradualmente, irão sendo compilados e dados a público, indo-se juntar a obras como O Irmão do Universo e
Resumos, Insumos e Dores Emergentes, duas obras de poesia já editadas pela Associação dos Escritores Moçambicanos.
Cabe aqui um agradecimento particular ao Conselho de Administração dos Caminhos de Ferro de Moçambique pelo generoso apoio que concedeu a esta edição.
Associação dos Amigos de Leite de Vasconcelos


SOBRE O AUTOR


Ao lançarmos a presente colectânea de crónicas que Leite de Vasconcelos publicou, no MEDIAFAX, entre 1995 e 1996, cumpre-me recordar ao leitor quem foi este meu colega e amigo.
Leite de Vasconcelos foi, ao longo da sua vida, uma figura exemplar da intelectualidade moçambicana - exemplar também como cidadão do nosso país.
Recordá-lo é, sem sombra de dúvida, recordar um dos colegas que mais prestigiou a profissão de jornalista, quer pelo alto padrão profissional que a ela imprimiu, quer pela exigência ética no tratamento das matérias abordadas, com realce ainda para a sensibilidade que lhes emprestava. Foi esta intransigente defesa da ética que o levou a exercer, durante muitos anos, o cargo de presidente do Conselho Deontológico da Organização Nacional de Jornalistas e a dar aulas sobre o tema nos cursos da Escola de Jornalismo.
Cronista mordaz, na sua coluna "Pela Boca Morre o Peixe", escalpelizava a actualidade, com uma mistura de rigor e de humor que faziam da sua leitura uma obrigação cultural e um prazer. Prazer que só não era compartilhado - como sempre aconteceu aos cronistas acutilantes e íntegros - pelas pessoas e entidades focadas.
Leite de Vasconcelos foi, para além de jornalista, um radialista apaixonado (desde a sua juventude na Beira), percurso que o fez ascender ao mais alto lugar da hierarquia radiofónica nacional, o de Director-Geral da Rádio Moçambique. Pelo caminho houve uns anos de permanência em Portugal, já que o clima político colonial moçambicano começava a ser-lhe insuportável.
Em Portugal, ao serviço da Rádio Renascença, Leite de Vasconcelos entra para a história daquele país, ao ler a estrofe inicial de "Grândola, Vila Morena", de José Afonso e, em seguida, transmitir o próprio trecho. E foi com a poesia, a música e a voz de Zeca Afonso que começaram a sair dos quartéis os militares que iriam pôr fim ao fascismo em Portugal e abrir mais uma via para a morte do colonialismo.
Mas recordar Leite de Vasconcelos é, também, recordar o poeta sensível, o
Irmão do Universo, título da sua primeira colectânea de poemas - poemas onde cantou o amor, mas também a revolta, a denúncia da miséria e da opressão (quer política, quer económica).
Homem de grande curiosidade intelectual, escreveu também para teatro de palco, para teatro radiofónico e para cinema - alguns destes textos chegarão em breve ao grande público. Também cinéfilo apaixonado, nos últimos anos acrescentou à sua vasta e eclética biblioteca, uma já notável videoteca, onde encontrávamos, lado a lado, "Casablanca", de Humphrey Bogart, e José Craveirinha, "Citizen Kane" e Ray Bradbury. Aliás era também um apaixonado pela ficção científica percorrendo, com a sua fértil imaginação, essas galáxias à procura do belo, do bom, do justo.
Foi actor de teatro - em palco e aos microfones da rádio - fez programas recreativos radiofónicos e televisivos. (Nos "intervalos", ganhava campeonatos de xadrez na Organização Nacional de Jornalistas.) Preparava-se para um programa de humor na televisão.
E, pois, este espírito, inquieto e fecundo, que aqui recordo. Este cidadão que lutou, com todas as armas ao seu dispor, contra a miséria, a exploração e a injustiça. Este homem coerente que dizia, com irónica amargura, que no nosso país, depois de termos sido todos comunistas, parecia que apenas ele continuava a assumir-se como tal.
Leite de Vasconcelos deixou-nos fisicamente. E, nesse momento, perdemos o amigo, o companheiro de luta, o conversador brilhante, uma pessoa que procurava a vida e a alegria, o amor e a fraternidade. Perdemos o
gourmet exigente e sabedor e o esplêndido cozinheiro.
Mas foi tanto o que nos deixou, que está aqui à nossa volta, com a qual lidamos frequentemente, que podemos dizer que ele continua entre nós, beneficiando-nos com a sua enorme riqueza interior.
E isto que, verdadeiramente, define a dimensão de um homem.
                                                             
  Machado da Graça


SOBRE A OBRA


Eis uma obra que é uma excelente crónica filosofal, um manual de sabedoria que patenteia a mais profícua crítica sociopolítica que se fez nos anos de Moçambique. Leite de Vasconcelos capta a realidade na sua forma totalitária e constrói uma prosa incisiva, arrebatadora, na qual subjaz um forte cunho humanista e uma especialmente desinteressada maneira de tratar os factos.
Os seus textos, os casos que polemiza, tratam de tudo. Cultor de um exímio funcionalismo crítico, Leite vai superiormente dissecando os fenómenos políticos mais relevantes, por exemplo, as incongruências inerentes ao sinuoso projecto da Frelimo e a sua lógica discursiva, não se cansando de denunciar, com forte sentido de humor e de ironia, as modeviças fundações em que assentam as acções do partido nos últimos anos.
Como se verá, na última fase da sua crónica no MEDIAFAX, o autor divide-se entre a crítica ao sistema (incluindo uma obsessiva mas muito racional e necessária luta pela destituição de um detestável homem que pertenceu ao aparelho governativo, após as eleições de 1994 - uma luta vencida, diga-se) e a repugnância feroz à vaga neopatrimonialista que sugou o Estado, verberando também a opção, e os seus efeitos, ao liberalismo dogmático na sua forma mais cruel.
O grande alvo da sua atenção - construtiva - foi o discurso frelimiano (as contradições entre o discurso e os actos, a sua incoerência), a vestimenta com que os seus cultores procura(va)m justificar a razão de ser. Daí que este livro é também uma crónica política, do execrável poder corrupto, um grande retrato das manifestações quotidianas da nossa sociedade. É por aqui que, parece-me, vale a pena entrar para a leitura (releitura para aqueles que já as tinham lido no MEDIAFAX) destas crónicas. Para além do seu valor formativo, "Pela Boca Morre o Peixe", é um legado de conhecimentos profundos da humanidade e serve como porta de entrada para uma maior compreensão dos actos da política (ou da política dos actos) no período a que os textos se reportam.
Eis, pois, uma boa fonte para a compreensão d'alguns dos mais notáveis factos políticos ocorridos entre 1995 e 1997, recomendável a estudantes, especialmente os de Ciências Sociais.
                                                                         
Marcelo Mosse


ALGUNS TEXTOS

OS ACUMULADORES DE VOTOS

Falando no final de uma reunião do seu partido, o deputado Mariano Matsinha disse, no Garuzo, o seguinte: "é ilegal afirmar que a Frelimo perdeu ou ganhou aqui ou acolá e que a Renamo teve vitória neste ou naquele círculo eleitoral."
A primeira perplexidade resulta das três primeiras palavras da frase: "É ILEGAL AFIRMAR". Se eu compreendo a nossa Constituição, não é ilegal afirmar que um partido ou um candidato ganhou, perdeu ou empatou no país todo, um círculo eleitoral, num distrito ou, mesmo, numa assembleia de voto. Poderia ser incorrecto, nunca ilegal. Nem sequer é ilegal que o deputado Mariano Matsinha diga, contra a Constituição, que é ilegal afirmar isso - é um erro, mas nenhuma lei nos proíbe de dizer disparates.
Mais perplexo se fica quando percebemos que um alto dirigente do partido no poder, falando em nome deste, no fim duma reunião de balanço do processo eleitoral, nos vem dizer que, afinal, não aconteceu aquilo que todos nós sabemos que aconteceu, ou seja, que a Frelimo ganhou em alguns círculos eleitorais e a Renamo ganhou noutros.
Argumentou Mariano Matsinha que não se tratava de eleger órgãos representativos locais. Pois não, mas tratava-se de eleger deputados que, de acordo com a lei, representam províncias. Basta ler o artigo 194°. da Lei Eleitoral: "... constituindo cada província e a cidade de Maputo um círculo eleitoral REPRESENTADO NA ASSEMBLEIA DA REPUBLICA POR UM NUMERO DE DEPUTADOS". Estes mandatos foram disputados em cada província pêlos partidos concorrentes. O partido que obteve mais mandatos numa província ganhou ali. Os outros perderam ali.
Isto é simples como o b... a... ba. Mas, mesmo admitindo que nenhum dos dois partidos ganhou de direito em cada círculo eleitoral, ainda assim cada um deles ganhou de facto em alguns, venceu "na realdade realmente" e, o que é mais importante para os políticos, venceu politicamente.
Fica por saber o que levou a reunião de balanço da Frelimo a transformar isto numa discussão sobre o sexo dos anjos. Aparentemente, duas coisas: afastar a pretensão da Renamo de governar as províncias onde ganhou e não dar pretextos a movimentações federalistas.
Não é "absurdo", "inconstitucional", "infundado" e "desregrado" a Renamo afirmar que ganhou as eleições legislativas nas províncias do centro. O que é "absurdo", "inconstitucional", "infundado" e "desregrado" é que, por ter ganho as eleições legislativas nessas províncias, a Renamo queira governá-las e receber rendimentos económicos delas.
Federalismo e representação regional no Parlamento não são coisas equivalentes, nem o primeiro decorre natural ou necessariamente da segunda. Os deputados em Itália, França, Espanha, Suécia, Dinamarca, Noruega, Portugal e muitos outros Estados unitários representam círculos eleitorais territoriais. Em Moçambique também, segundo a lei eleitoral e apesar de, aparentemente, o partido no poder desconhecer isto.
Descendo ao chão das coisas. O deputado Mariano Matsinha, o seu partido e os dirigentes e quadros reunidos no Garuzo sabem que a Frelimo ganhou nuns círculos e perdeu noutros, que certas pretensões avançadas pela Renamo por ter vencido em algumas províncias não têm cobertura constitucional e que os círculos eleitorais não são repartições federais. Qual então a verdadeira razão de, em lugar de dizerem estas coisas meridianamente claras, terem afirmado uma enormidade que o "Notícias" resumiu num título alucinante: "A Frelimo não perdeu eleições em nenhuma província do país"?
De novo, creio, esse terrível pavor das palavras que assombra tanto os nossos políticos, a crença de que nada existe enquanto não dizem que existe, a bizarra convicção de que a Frelimo só perderá as eleições que perdeu em Sofala quando disser que as perdeu.
Entretanto, os dirigentes e quadros reunidos no Garuzo cunharam um curiosíssimo eufemismo. Como é "ilegal" afirmar que um partido ganhou as eleições num círculo eleitoral, passa a dizer-se que "OBTEVE MAIOR ACUMULAÇÃO DE VOTOS"!
Fica-se com a impressão de que, empolgada pelos ares serrânios, a reunião do Garuzo andou vogando pelos cúmulos da irrelevância semântica.
13.03.95


O CERCO ÀS VOZES


l - O ministro do Trabalho silencia os salários dos dirigentes estatais. 2 - O jornal "Savana" revela os salários dos dirigentes estatais. 3 - O ministro Eneas Comiche desmente a informação do "Savana". 4 - O "Savana" publica o despacho presidencial, cuja tabela anexa fixa os salários actuais dos dirigentes. 5 -Escrevendo no "Notícias" a respeito do segundo e quarto episódios, uma deputada do partido no poder considera que "é preciso impor regras ao uso do direito à expressão, à liberdade de imprensa".
O silêncio inicial do Governo articulou-se em duas vozes, uma própria, outra que veio em seu socorro. Ambas reiteraram o silêncio: a primeira pelo recurso à negação; a segunda apelando à imposição de silêncios. E o discurso desta segunda voz do silêncio que mais importa analisar.
O discurso começa com um clangor de alerta. A pátria está em perigo! Qual a ameaça? À desestabilização, o caos, o antipatriotismo. Está, assim, criado o cenário épico e o clima emocional que permitirá distribuir os papéis - trata-se de salvar a pátria: dum lado estarão os bons, os defensores dos superiores interesses da nação, do outro os maus, os vendilhões do templo sagrado.
Quem são os patifes? Não podem ser muitos. Uma pátria ameaçada pela maioria dos seus cidadãos é coisa um tanto inverosímil. Devem, pois, ser poucos, pouquíssimos, de preferência referenciáveis por algum traço que os distinga da gente comum (que adiante se dirá como deve pensar). Os patifes identificam-se, portanto, como "certas personalidades da intelectualidade". Para o caso, isto tem duas vantagens adicionais: sugere-se que não são os cidadãos que querem ser informados, são "certas personalidades" que "assustam os incautos"; acentua-se o preconceito contra o "intelectual", esse espécime arrogante que tem a mania de saber mais do que os outros, esse tipo imprevisível e inquietante que, contra o bom senso, pode atrever-se a dizer que a terra roda em volta do sol quando toda a gente vê que o contrário é que é verdade.
É preciso caracterizar os maus também como seres dúplices, que tramam ciladas na sombra e habitam covis. Estão portanto "acoitados na bandeira da democracia". Desta cajadada mata-se outro coelho: a "bandeira da democracia" e, por extensão (para o caso é importante), da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, são covis onde estes facínoras se acoitam.
Soado o alarme, dado o tom épico à peça, distribuídos os papéis e caracterizados os vilões, é necessário exemplificar as actividades nefastas deste tipo de malfeitores. Toma-se um conto de fadas e dá-se-lhe um final aterrador: era uma vez uma princesinha muito boazinha, filha de reis muito estimados pêlos seus súbditos, que estava destinada a casar-se com um principezinho de famíílas também amadamente reinantes; viveriam ambos muito felizes e teriam muitos filhinhos se não aparecesse um monstro nojento vindo das profundezas da liberdade de imprensa que provou que a Bela Adormecida curtia uma grossa, a Cinderela fugia à meia-noite do palácio por não colher satisfação dum príncipe que tinha uma fixação feiticista por sapatos de cristal, a Branca de Neve entregava-se a orgias com os Sete Anões e o Capuchinho Vermelho deu ao Lobo Mau a receita para guisar a Avozinha com batatas; tendo sido levado a acreditar que todas estas inocentes folias eram degradantes e praticadas com o dinheiro dos seus tributos, o povo incauto pôs-se incautamente a discutir os valores morais das princezinhas e dos principezinhos, em vez de, como seria justo, pendurar o monstro pelo pescoço.
Comprovada com exemplo exterior a peçonha universal destes biltres, apresenta-se o antídoto salvador: "impor regras ao uso do direito à expressão, à liberdade de imprensa." Não há regras? Há. Estão na Constituição, na Lei de Imprensa, na legislação que protege a honra, o bom nome, a vida privada dos cidadãos, que manda punir a publicação de mentiras, difamações e calúnias sobre pessoas e instituições. Não há onde exigir responsabilidades, pedir o castigo da infracção e a indemnização dos danos materiais e morais? Há. São os tribunais. Que outras regras se pede, então, sejam impostas? Que outros instrumentos se pretende, então, sejam utilizados para as impor? O que se visa ao dar a entender que, presentemente, não há normas legais que imponham limites à liberdade de imprensa e punam os seus abusos?
Isto tem um único significado possível: impor regras e instrumentos que se apliquem e actuem ANTES DA PUBLICAÇÃO. A estória em cinco pontos contada no primeiro parágrafo fez-nos percorrer parte do caminho que conduz à censura. Fomos, do silêncio voluntário do Governo, ao apelo à imposição de silêncios à imprensa.
É um caminho tristemente conhecido. Na coluna mais à direita da página de opinião do "Notícias", perfilaram-se velhos fantasmas: o monopólio da verdade, o exclusivo das virtudes pátrias, o policiamento das ideias que podem infectar o bom povo ordeiro, tradicionalista e agradecido aos dirigentes, o populismo contra a inteligência do povo, a negação cega de toda a opinião divergente, a exclusão do "outro" sob a suspeita de estar "ao serviço não se sabe de quê ou de quem".
Conheço este caminho de o ter sofrido sob o poder colonial e fascista. Conheço-o também de o ter percorrido, voluntariamente, em nome de ideais que não abandonei. Se vale alguma coisa a opinião dum velho jornalista ainda vivo e nada herói, que sobra apenas de si mesmo e acredita que sobra muito futuro ao socialismo, nenhum ideal justifica cercear a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Com elas se cometem erros, nelas se praticam abusos, é certo. Mas, sem elas, o erro permanece por não ser contestado e o abuso reina por não ser denunciado.
Além disso, sem elas, a imprensa é uma grandecíssima chatice.
20.03.95


ÓLEO DE FIGADO DE BACALHAU


Quando era criança, odiava as manhãs de sexta-feira. Antes do pequeno-almoço, minha mãe obrigava-me a tomar a dose semanal de óleo de fígado de bacalhau. O sabor era horrível. A mãe mandava e eu obedecia. Mas nunca perdoei ao diabo da mistela o mal que sabia pelo bem que, talvez, fizesse.
Regressou-me à boca o sabor do óleo, ao ler a intervenção da sra. Carol Peasley, do USAID, na reunião do clube de Paris. Imagino que, sob a máscara da compostura diplomática, membros e funcionários do nosso Governo estariam fazendo, na reunião, as mesmas caretas que eu fazia quando minha mãe me obrigava a abrir a boca e me despejava a colherada de óleo de fígado de bacalhau pela goela abaixo.
O execrável sabor não vem de eu discordar do diagnóstico e da receita. Resulta de não nos ser dada, sequer, a possibilidade de discordar, sem consequências desastrosas. Quando eu era criança, a alternativa ao óleo era ficar preso no quarto. Para nós, a alternativa à receita é ficarmos presos no deserto económico dum país devastado pela guerra.
Minha mãe tinha a virtude da coerência. No que dizia respeito ao malvado óleo era absolutamente aristocrática e proclamava isso. Se eu esboçava um gesto de resistência, dizia: "tomas o óleo e vais toma-lo agora mesmo!" No fundo, a intervenção da sra. Peasley tem o mesmo carácter imperativo, mas começa por nos fazer  engolir uma pílula de democracia. Diz-nos que "a democracia significa governar segundo a vontade da maioria" para concluir que o governo deve seguir a vontade dos EUA.
Joaquim Chissano disse na AR que "sobrevivemos à custa da generosidade internacional". Isto é certamente assim. Mas porque será que tenho dificuldade em sentir gratidão? Eu deveria querer abraçar esta comunidade internacional generosa, estar escrevendo em seu louvor, contando as bênçãos recebidas. Por que será que, sem conhecê-la, apesar de muito provavelmente ser uma excelente pessoa, estou de pé atrás com a sra. Peasley e me sinto zangado com a sua intervenção?
Talvez pelo número de vezes que, em relação ao nosso Governo, usou expressões como "deve" ou "é imperativo" - cerca de 20 ocorrências só nos excertos publicados pelo "Savana". Talvez pela atitude de mestre-escola ensinando os rudimentos da democracia. Certamente pela ameaça pouco velada do parágrafo final: "sem um compromisso do Governo de agir de imediato no processo de reformas (...) tornar-se-á cada vez mais difícil defender a continuidade do programa de ajuda." Sem dúvida por querer determinar o que devemos fazer com os bancos, o petróleo, a terra, os caminhos-de-ferro, as linhas aéreas, a televisão, a rádio, os jornais, as indústrias, a alfândega, o orçamento, os impostos, a polícia, o exército, os tribunais... e o mais que não disse por ser extenso, mas ficou implícito.
Como é pesado o juro de cada um dos 780 milhões de gotas de óleo de fígado de bacalhau! Não me refiro  
ao juro bancário, ao torno a que chamamos "serviço da dívida". Refiro-me ao outro, à dívida do servidor. A obediência.
A sra. Peasley fez que me sentisse um gaulês aclamando a entrada das legiões romanas, um azteca agradecido a Pizarro, um sioux rezando ao Sétimo de Cavalaria e colocando Custer ao lado direito de Manitou.
Tudo isto me faz recordar, com o sabor do óleo de fígado de bacalhau, uma fábula de Giovanni Guareschi, ligeiramente alterada.
Um leão aproximou-se dum curral de cabritos e saudou-os amigavelmente. Disse: "Nestes tempos de democracia universal, leões e cabritos devem conviver em harmonia. Vede que abandonei os meus hábitos carnívoros. Abri pois a porta do curral para que possamos, juntos, desenvolver este rebanho."
Assim falando, pastava serenamente à vista dos cabritos que, após alguma hesitação, abriram a porta do curral. O leão organizou imediatamente eleições democráticas, tendo sido eleito presidente do rebanho. A primeira lei que proclamou foi o seu direito a comer um cabrito por dia. Após ter comido o último, lambeu os beiços e disse consigo mesmo: "Partamos a democratizar outro rebanho."
03.04.95


MANDA-CHUVAS E GUARDA-CHUVAS


Em crianças e donzelas, ingenuidade é sinónimo de virtude. Nos políticos significa incompetência ou dissimulação.
Ninguém espera dum político que se apresente à sociedade como uma virgem incauta, um Capuchinho Vermelho que desconhece os caminhos da floresta e confunde os lobos com as avozinhas. Mas parece ser esta atitude pueril a preferida por um número significativo dos políticos da área do poder quando confrontados com perguntas relativas à corrupção. Lembram os lendários macaquinhos chineses: não vêem, não ouvem, não falam.
Há uns anos atrás, diziam ser necessário definir o que era e não era corrupção. O próprio PR incorreu nesta afirmação. Era preciso definir os limites do legítimo, ainda que se devesse presumir estarem traçados os limites do legal. Estabelecia-se, deste modo, uma fronteira ambígua e movediça. A utilização de bens do Estado para proveito pessoal é claramente ilegal. Mas poderia ser legítima enquanto não se definisse o que era e não era corrupção. Era ou não legítimo um dirigente (fosse ele ministro, director nacional ou director de empresa estatal) receber comissões de empresas nacionais ou estrangeiras que vendiam ou compravam? Legal, por certo, não era, pois tais comissões não se declaravam. Mas podiam encontrar-se na zona do legítimo, enquanto não se chegasse à preciosa definição do que era e não era corrupção.
O problema tornou-se ainda mais sinuoso com o surgimento da tese, nunca oficialmente proclamada, mas frequentemente detectada nos corredores do poder, segundo a qual a corrupção se justificava pela necessidade de constituir uma burguesia nacional. Era o aparecimento dum curioso "nacionalismo económico", que até permitia deixar a sugestão de que a corrupção em larga escala era uma tarefa patriótica.
Estas águas quietas e lodosas agitaram-se subitamente quando o então Procurador da República localizou a corrupção em altos níveis do Estado e prometeu mover-lhe guerra sem quartel. Neste caso, foi o rato que pariu uma montanha de inquéritos incompletos, arquivados ou de resultados nunca divulgados. As engrenagens da Justiça emperraram e a Procuradoria entrou em curto-circuito e emudeceu até agora.
Em lugar duma vaga de fundo contra a corrupção, tivemos uma ondazinha superficial: os dirigentes deveriam passar a declarar os seus bens. Esta medida pareceu útil, até se saber que os declaravam a si mesmos, no círculo privado das suas confidências recíprocas, coisa que poderá ser de muito proveito para os dirigentes, mas é destituída de qualquer significado para a sociedade. A montanha pariu o ratinho do silêncio. Os bens dos dirigentes são as partes pudendas do poder.
Mais recentemente, o mote passou a ser outro. Já não se trata de definir o que é e não é corrupção. Trata-se de ninguém apresentar casos concretos, evidências, provas. Na falta deles, o poder é impotente para agir, a Procuradoria naufraga num oceano de conjunções adversativas e condicionais, as comissões de inquérito continuam ruminantes e aos tribunais não chega um caso a que possam ferrar o dente judicial. Virá a Alta Autoridade contra a Corrupção, e já se receia que seja tão alta que a corrupção lhe passe por baixo das pernas.
Fiel ao novo mote, o recém-nomeado Inspector do Estado começou dizendo que ninguém apresentou factos concretos sobre a corrupção no país. Há nesta afirmação a ingenuidade das crianças e donzelas inaceitável como virtude de políticos e qualidade de inspectores. Poupem-nos, pelo menos, o insulto à inteligência dos cidadãos.
A corrupção nas instituições do Estado é um facto concreto. Os cidadãos confrontam-se diariamente com ela, tendo de pagar subornos, luvas, gratificações, mesmo para, simplesmente, conseguirem os serviços, licenças, autorizações e documentos a que têm direito.
São numerosos e notáveis os casos de enriquecimento inexplicável pêlos salários auferidos de dirigentes de baixo, médio e alto níveis. É impossível que todos eles tenham ganho lotarias e totobolas, recebido heranças milionárias, casado com fortunas ou desenvolvido dotes empresariais de génio. Simultaneamente, empresas estatais estão falidas, bens do Estado dão sumiço, créditos estão malparados, donativos foram desviados, verbas volumosas desaparecem de bancos do Estado, trafulham-se casas e terrenos, empresas são privatizadas em processos pouco claros ou sem concurso, concede-se património do Estado para uso privado sem venda ou concurso público, para só indicar alguns dos procedimentos opacos em curso no país. E não se consegue ligar um único destes fenómenos a um só dos muitos casos de fulgurante enriquecimento pessoal de dirigentes e ex-dirigentes ?
Será preciso dizer ao Inspector do Estado, ao Procurador e seus delegados e à polícia que são eles quem tem a obrigação primeira de apresentar os casos concretos da concretíssima corrupção que existe no país? Ou cogitam que a sua função é esperar que seja o cidadão a fazê-lo?
Ou entendem que inspectores, procuradores, delegados e polícia devem ser os guarda-chuvas protectores dos manda-chuvas?
15.05.95


POR GROSSO E A RETALHO


O Presidente da República, o Governo e a direcção do Partido Frelimo deveriam fazer uma leitura atenta e cuidadosa das reacções provocadas pela afirmação que o deputado Sérgio Vieira fez no Parlamento a respeito das execuções de Uria Simango, NīKavandame, Joana Simeão e outros.
Poder-se-ia crer que a dimensão das reacções é desproporcionada. Afinal, Sérgio Vieira apenas repetiu o que Joaquim Chissano já dissera. Mas, se há desproporção em relação à causa imediata (a afirmação dum deputado que não estava dizendo nada de novo) não há desproporção alguma em relação ao problema de fundo - o silêncio sobre o processo das execuções.
Ponho totalmente de lado a explicação frequentemente avançada de que o silêncio tem por objectivo conservar hibernados fantasmas que, se saíssem dos armários, poriam em grave risco o processo de paz e de reconciliação. Mais do que um pretexto, isto é, possivelmente, uma racionalização em que é reconfortante acreditar. Mas basta um deputado dizer uma frase para se verificar pelas reacções que os fantasmas são mais corrosivos no silêncio e na escuridão dos armários do que seriam depois de expostos à luz do conhecimento público.
Uma leitura destas reacções que me parece bastante razoável é a de que não há modo nenhum de abordar, útil e correctamente, esta e outras questões do nosso passado recente antes de dar a conhecer, sem silêncios, sem ambiguidades, sem reservas, os factos, os processos, as decisões que se tomaram, quando, como e por que instituições foram tomadas e aplicadas.
Não basta dizer que conhecer estes factos é um direito dos cidadãos. É também necessário à sociedade. Há feridas que não cicatrizarão sem este conhecimento, há fossos entre grupos sociais, étnicos e políticos que não serão eliminados sem ele.
Tanto quanto me lembro, o PR referiu-se com algum destaque a esta questão em duas ocasiões: num conjunto de respostas a perguntas do público recolhidas pelo Instituto de Comunicação Social e intervindo no decurso duma cerimónia religiosa islâmica.
A primeira intervenção, que fora previamente anunciada, traiu a expectativa criada. O PR praticamente só revelou que poderia revelar os "dossiers", acabando por apresentar como uma ameaça aos adversários políticos o que, para o conjunto da sociedade, era uma reivindicação. O extremo despropósito da segunda intervenção (uma cerimónia religiosa era certamente a ocasião menos apropriada para revelar e defender execuções) sublinhou a intenção de só falar da questão marginalmente e a propósito de outras.
Se com isto o PR e o direcção do Partido Frelimo pretendiam evitar que as atenções se concentrassem nas execuções, a intenção frustrou-se. Em lugar de passar menos percebida, a questão das execuções contamina todos os temas com que aparece ligada. Creio bem que assim continuará a ser até que o PR, o Governo e a Frelimo assumam a necessidade de a enfrentarem com frontalidade.
Poder-se-á dizer que se está a dar mais importância à morte a retalho, que as execuções foram, do que à morte por grosso que a Renamo distribuiu por conta de outrém, durante anos e pelo país quase todo. É verdade. Mas este é mais um dos efeitos perversos da obstinação do poder em manter o maior silêncio possível sobre questões como as execuções, a Operação Produção e os centros de reeducação.
Para os próprios militantes e simpatizantes da Frelimo (antes de todos os que, como eu, o eram na altura em que os factos ocorreram) não é moralmente possível julgar apenas a parte do passado de que podem dizer com displicência: disto eu não tive nenhuma responsabilidade.
Está sendo política, moral e, mesmo, culturalmente opressiva a recusa de assumir o passado como História e não como psicodrama com apelo a amnésias selectivas.
18.12.95

Edição DE 1999

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