A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



TEODÓSIO CABRAL - ABEL PRATAS - HENRIQUE GALVÃO



A IMPORTÂNCIA DAS PEQUENAS COISAS

   Moçambique é província de muitos elefantes - e, especialmente: província onde se encontram elefantes, mais ou menos, em toda a parte, de norte a sul.
   Não se verão aí as portentosas manadas, de muitas centenas de cabeças, que se vêem no Sul de Angola - mas vêem-se, com mais facilidade, mais elefantes, e, também, em regra, maiores elefantes.
   Durante os anos da guerra, a diminuição do número de caçadores, por dificuldades em se obterem armas e munições, facilitou a expansão das manadas moçambicanas e o seu atrevimento. E daí estragos incalculáveis, em estradas, machambas (1), povoados indígenas, etc. Os indígenas, especialmente, sofriam os maiores prejuízos, perdendo frequentes vezes, numa noite, as suas culturas alimentares.
   Pensava o governo da província resolver a situação por meio de um incitamento aos caçadores para perseguirem os elefantes.     E com esse propósito libertou de todas as restrições a caça ao elefante, dispensando-as das licenças caras que até então a embaraçavam.
   Ao mesmo tempo subia a cotação do marfim - o que, naturalmente, constituía outro incitamento.
   O certo é que se lançaram para o mato numerosos caçadores, com armas apropriadas e sem armas apropriadas, com experiência e sem experiência, numa espécie de pequena "rouée vers 1'or"-neste caso: "rouée vers 1'ivoire".
Houve numerosos acidentes e, como era de esperar, o problema apenas se complicou.
   O governo da província foi certamente mal orientado junto dos conselheiros que escolheu. E como, geralmente, estas coisas que dizem respeito à caça e à fauna cinegética não se tomam, entre nós, muito a sério, também resolveu apressadamente.
-Vamos lá fazer a vontade a alguns caçadores que querem divertir-se.
   Em resumo, não se considerou que este problema... fosse um problema.
   Era de esperar - dissemos - que a questão se complicaria, porque aconteceu, nem mais nem menos, o que devia acontecer: em lugar de atirarem os elefantes para reservas ou territórios onde não causassem dano e, assim, infundir-lhes, de novo, o respeito pelo homem -o que só se conseguiria com brigadas de caça muito sabiamente dirigidas e constituídas - os caçadores, digamos, franco-atiradores, sem disciplina nem ordem, sem plano, sem outra ideia que não fosse a proeza desportiva ou o que lhe renderia o marfim, fragmentaram as manadas, dispersaram-nas e fizeram praticamente um mal muito maior. Os elefantes, que antes se juntavam em grandes manadas-isto é: que "destruíam em ordem unida", passaram a fazê-lo em "ordem extensa". Cada grande manada dividiu-se em numerosas pequenas manadas que passaram a assolar, na mesma noite, e ao mesmo tempo, muitas mais regiões.
   Os indígenas, por um lado, defendendo-se como podiam, pelo fogo, ruídos, e até com espingardas que pouco mais faziam de que barulho - por outro lado, caçadores sem experiência, que feriam mais animais do que matavam- fizeram destas manadas, de seis, dez e quinze elefantes, grupos irritáveis e irascíveis.
Enfim: os elefantes andavam em Moçambique, nesse ano de 1945, não só muito dispersos, como também pouco cómodos.
                                                                             * * *
   Tinha-me encontrado com Teodósio Cabral no posto de Naburi, da circunscrição de Pebane.
   O prazer do encontro devia naturalmente completar-se com o prazer de voltarmos a caçar juntos - e menos pela caçada do que pelo pretexto para evocarmos outras caçadas realizadas em melhores idades e épocas da nossa vida.
   O grande caçador estava em plena forma - mas um e outro tínhamos afazares que não nos permitiam organizar e prosseguir uma caçada como tinham sido outrora as nossas grandes caçadas. E, assim, o projecto de caçarmos foi rapidamente esboçado - mas tudo levava a crer que não passaria de projecto.
   
De passagem em Chalaúa - ia eu já a caminho de Nampula e Teodósio Cabral acompanhava-me até este posto, onde nos devíamos despedir- tivemos notícia das destruições que os elefantes andavam fazendo nas machambas do regulado Gelo.         Havia dias que assolavam a região e tudo indicava que os indígenas perderiam os seus haveres.
   Defendiam-se os pretos passando a noite a bater latas, a agitar tições, a gritar - mas a tudo isso se tinham já habituado os elefantes, que não só persistiam, sem se atemorizar, como também carregavam qualquer preto que nestas manobras de esconjuro mais se aproximasse.
   Alguns régulos vinham há tempo solicitando a intervenção de Teodósio Cabral, de quem ouviam falar, mas que não conheciam, porque o caçador não se abeirara ainda daquela região. E nesse dia, tendo conhecimento da sua passagem por Chalaúa, insistiram.
   Era afinal o melhor pretexto para a caçada.
Nem seria humano passar adiante sem prestar aos indígenas o auxílio solicitado.
   Seria um dia de demora - mas demorar-nos nestas circunstâncias era, de certa forma, também um dever a cumprir.
   Resolvemos pois ir passar a noite à sanzala do régulo Gelo, cuja machamba os elefantes andavam destruindo.
Lá chegámos com certa dificuldade, por estradas e caminhos de lama.
   Tirou-se a bateria do carro, preparou-se o farolim - e aguardámos no próprio terreiro da sanzala, à beira da machamba.
   Enviaram-se emissários a todas as sanzalas das proximidades, com instruções no sentido de não fazerem barulho essa noite - e antes mandarem imediatamente alguém a prevenir se sentissem a aproximação dos elefantes, pois bem podia acontecer que eles aparecessem em outras machambas e não naquela em que os esperávamos.
   Um dos nossos pretos levaria o farolim à cabeça, atrás de nós, para onde nos deslocássemos. No momento preciso, o Teodósio Cabral ou eu manobraríamos o farolim, enquanto o outro atirava.     Seria eu, certamente, o atirador, visto que, de alguma forma, era o convidado.
   Às dez horas da noite, arrepiados de frio, muito chegados à fogueira, esperávamos ainda - e sem grande entusiasmo porque o Teodósio Cabral se sentia bastante doente.
   Cerca das onze horas a escuridão, estrelada e silenciosa, animou-se com grande algazarra.
   De uma machamba, distante três ou quatro quilómetros, romperam gritos e latadas.
   Evidentemente os elefantes andavam por lá -mas as nossas instruções não eram cumpridas. Em lugar de mandarem alguém a prevenir-nos- os pretos tratavam de afugentar os elefantes.
   Em tais condições era inútil deslocarmo-nos.
   Descompôs-se o régulo, que, por sua vez, descompunha os súbditos (a eterna história, a eterna transferência de responsabilidades dos grandes para os pequenos - até ao mais pequeno) e tivemos por perdida a noite, a demora e a generosa intenção, não totalmente desinteressada, que nos levara à sanzala do régulo.
   Não  contávamos  já  com  elefantes  na  machamba
- e até porque tinham aparecido noutra.
   Deitámo-nos em volta da fogueira para dormirmos até ao nascer do sol e retormarmos depois a nossa vida.
   O Teodósio não se sentia melhor. Atormentavam-no dores violentas.
   Menos de uma hora depois fomos surpreendidos por certo ruído muito nosso conhecido, na mata que envolvia a machamba.
   Eram os elefantes.
   Lá andavam a esgalhar ramos e a partir paus.
   Ouviam-se rajadas de estalos, de quando em quando-e percebia-se que os bichos se aproximavam. Decerto não vinham "corridos", pois a aproximação era calma e ordenada.        Deslocavam-se, sim, mas pastando.
   Era então provável que viessem à machamba.
   Preparámos tudo - e aguardámos.
   Ninguém diria então que o Teodósio Cabral estava doente e lutando com dores agudas.
   Houve um momento em que os elefantes, sempre dentro da mata, não estiveram a mais de quinhentos metros.
Tínhamo-los como certos. Não tardaria que estivessem na machamba.
   Mas não. Fosse porque o barulho dos negros, noutras machambas, os desencorajasse, fosse porque algum golpe de vento lhes denunciou a nossa presença, o certo é que a partir dessa altura, o rumor das rajadas se afastou, embora sempre tranquilamente.
   Era agora perfeitamente claro que já não viriam.
   Mas, como se tinham aproximado muito, não seria difícil descobrir-lhes o rasto, ao romper do dia - e ir em sua perseguição.
   Não deviam dormir longe aqueles elefantes.
   Regressámos à fogueira e procurámos dormir.
                                                                                * * *
   Saímos sob nevoeiro denso -encharcados logo aos primeiros passos- com alguns pisteiros improvisados, recrutados entre a gente da sanzala.
   O sol, dentro em pouco, nos enxugaria.
   Como se previa, encontrámos o rasto dos elefantes a menos de um quilómetro. Tratava-se de um pequeno grupo de machos, que deviam ser alentados.
   A mata, não sendo das mais cerradas, não era todavia francamente aberta. Os capins ainda estavam altos, embora se tratasse apenas de capins de mata, que não crescem desmedidamente, como os capins das chanas e mulolas. De quando em quando a mata cerrava-se e formava matagais densos, que depois aliviavam. O terreno era levemente ondulado - e nenhum de nós sabia dos acidentes que havia para diante, pois o pisávamos pela primeira vez.
   O nevoeiro levantou pouco depois e não tardou que o sol entrasse onde podia, deixando nas sombras da mata grandes rasgões de luz.
   O rasto era fácil e fresco e os pretos lá se entendiam com ele, sem nos obrigar a cuidados de maior.
A cerca de uma hora de marcha ouvimos os primeiros rumores-uma rajada de estrépidos, de mistura com marulhar da folhagem.
   Tínhamos a impressão de que os elefantes iam andando adiante de nós.
   O vento rondava, ora favorável, ora desfavoravelmente. Era de admitir a hipótese de termos sido pressentidos.
   Mandámos dois pretos à descoberta e esperámos. E enquanto esperávamos nenhum outro rumor nos chegou aos ouvidos.
   Os pretos voltaram. Não tinham visto os bichos. Ou antes: não se empenharam muito em vê-los.
   Retomámos a marcha.
   Um quarto de hora depois, assinalaram os elefantes outra vez a sua presença - agora muito mais perto. Não havia dúvida de que os tínhamos a curta distância.
   A mata cerrava-se agora mais. O matagal rasteiro, especialmente, era muito denso: lianas, arbustos, capim - onde, de quando em quando, se abriam, não clareiras, mas espaços mais desanuviados.
   Avançámos nós, enquanto os pretos, à cautela, se deixavam ficar para trás.
   Menos de cinquenta metros adiante, além da barulheira dos ramos, demos com a agitação dos próprios ramos que nos ocultavam os elefantes.
   Estavam ali.
   Imediatamente, um dos bichos revelou-se. Surgiu, atravessado, a quarenta metros, perfeitamente calmo, entretido com os rebentos verdes que lhe apeteciam.
   O vento corria agora a nossa favor.
   Estive tentado a atirar.
    Mas queria ver os outros. Talvez houvesse bicho mais alentado do que aquele, que, realmente, parecia inferior ao que esperávamos.
   O elefante deslocou-se e os ramos tornaram a ocultá-lo.
   Pouco depois apresentava-se outro.
   Nova tentação - mas o bicho só tinha uma presa.
   Estava a tornar-me tão exigente que me arriscava a perder todos, pois, como disse, o vento não estava seguro quanto a direcção.
   Como sentíssemos os animais deslocarem-se para a esquerda - deslocámo-nos nós também, guardando sensivelmente a distância que nos separava.
   E assim viemos a descobrir um grupo -quatro ou cinco visíveis, mais dois ou três que as ramadas e o matagal ocultavam- entre os quais avultava um grande bicho, exactamente o que esperava encontrar.
   Mas tão cobertos estavam que não havia possibilidade de atirar com segurança, do lugar em que nos encontrávamos.
   Pretendi aproximar-me um pouco mais e ganhar certo sítio de onde julgava que descortinaria perfeitamente o corpo do elefante - mas o Teodósio fez-me sinal. Que não. Não estavam bons.
   Não estavam bons ?! A mim pareciam-me o melhor possível: calmos, muito preocupados com o pasto, em plena refeição...
   O Teodósio tinha razão, como se verá.
   Demorámo-nos três ou quatro minutos, na esperança de que novo deslocamento dos elefantes nos pusesse finalmente o mastodonte a descoberto.
   E entretanto admirávamos a altura prodigiosa a que o colosso erguia a tromba para colher, no alto de uma árvore, alguns rebentos mais apetitosos.
   Avultava entre os mais, que só mostravam, acima da folhagem, partes do dorso e da cabeça.
   E nesta contemplação estávamos tranquilamente gozando o prazer sempre vivo de observar elefantes em liberdade, na intimidade do seu viver, a trinta metros de distância - quando explodiu o inesperado.
   Decerto porque o vento rondou, sem que nos tivéssemos apercebido, o elefante maior levantou a tromba, desfraldou as orelhas, vibrou o seu grito de guerra e, sem outro aviso, lançou-se furiosamente sobre nós, cilindrando com espantosa facilidade quantos obstáculos encontrara.
   O ataque foi brusco, rapidíssimo - e inesperado.
   O Teodósio Cabral já o tivera como provável quando me impedira de ir mais além-rnas eu apostaria dobrado contra singelo que aquele elefante não nos atacaria.
   Digamos, de passagem, que eu estava bem armado com uma Winchester Especial 375 e que o Teodósio Cabral apenas dispunha de uma Mauser 9-muito apta para abater elefantes, mas precária para os segurar em casos difíceis.
   Valeu-nos, em tais apuros, o automatismo de resoluções que dá a experiência.
   O animal foi imediatamente alvejado com uma descarga -dois tiros quase simultâneos, que não o seguraram. Mais dois tiros ainda- e ajoelhou. Levantou-se com agilidade incrível e carregou de novo. À terceira vez, finalmente, despejadas as nossas espingardas, adornou, voltou costas-e vimo-lo afundar-se no lugar onde antes o tínhamos descoberto.
   O estardalhaço que ia mata era de vendaval desfeito. A agonia do mastodonte, com roncos de vulcão, e o pânico dos companheiros abarrotavam de ruídos demolidores o silêncio da mata.
   Ainda ofegantes, recarregávamos as espingardas e preparávamo-nos para ganhar posição distante, mais segura, quando, não menos inesperadamente que da primeira vez, vimos os restantes cinco bichos que completavam a manada disparados sobre nós.
   Reacendeu-se o combate, agora em condições muito mais apertadas.
   E só o facto de sermos dois e de termos arrostado a situação com a serenidade indispensável nos livrou de apuros. A rapidez dos tiros sobre o animal maior, repetida e colocadamente atingido, fê-lo desviar um pouco do rumo - o bastante para que nos passasse, seguido de todos os outros, em fuga desabalada, a dez metros de distância.
   E perderam-se, para trás, na direcção do caminho que tínhamos trazido - e onde decerto os pretos se tinham ocultado- abrindo uma grande estrada através da mata.
   Mas, o maior - bem o vimos - levava a morte consigo. Não iria longe. Tínhamo-lo como certo.
   Não cuidámos então senão de descansar.
   Para ali estivemos, durante alguns minutos, dando aos nervos tempo de se recomporem.
   O primeiro elefante, que ainda víramos cair, atroava os ares, ali a poucos metros, com o seu ruidoso estertor.
   Passado um quarto de .hora surgiram os pretos.
   Um deles subiu a uma árvore. Do alto fez-nos sinal. O elefante estava ali deitado-quase a morrer. O sinal e a expressão do negro queriam dizer: "Está a dormir".
   Do outro elefante ferido nada diziam - senão que se tinham tresmalhado quando sentiram a manada correr na direcção em que se encontravam.
   Um garoto de catorze anos, que acompanhara estes pisteiros improvisados, contava que o elefante -decerto o ferido, já distanciado dos companheiros - correra atrás dele, e que só se salvara atirando-se para o lado, quando ia ser apanhado. Que depois o elefante prosseguira e não o vira mais.
   O garoto não mentia. A sua história estava realmente escrita no terreno: o trilho aberto pelo elefante, muito nítido -dir-se-ia ainda quente!- e em certa altura, bordejando o trilho, uma espécie de cama feita no capim, que tinha o feitio do corpo do preto.
   Seguimos nós o trilho em cata do ferido.
   Encontrámo-lo, morto já, a menos de quinhentos metros.
   Só então fomos tomar posse do primeiro-um lindo animal.
                                                                                        * * *
   O que tem interesse na narrativa é explicar os dois acontecimentos imprevistos (um imprevisto só por mim, o outro imprevisto por ambos).
   1.º - Porque atacou tão fulminantemente aquele elefante, calmo, que comia tranquilamente, que não atacámos, e que também não alarmámos com qualquer ruído?
   2.º - Porque veio o grupo sobre nós-e não fugiu para a frente, lançado em pânico pela fuzilaria?
   A primeira pergunta só pode ter uma resposta: o vento rondou a nosso desfavor e o elefante pressentiu-nos.
   Porque, tendo-nos pressentido, atacou, em lugar de fugir, o que seria mais normal, nas condições em que os animais se encontravam?
   A resposta à segunda pergunta responde a esta também.
   A pequena manada estava, quando a descobrimos, a última vez, e sem que nós o suspeitássemos, pois, como dissemos, não conhecíamos a região, à beira de uma escarpa vertical e muito alta, que emparedava um vale onde corria um rio.
   Os elefantes não podiam fugir... senão sobre nós.
   O primeiro que nos surpreendeu, irritado por se ver num beco sem saída - carregou.
   Os segundos não carregaram; apenas fugiram na direcção em que nos encontrávamos.
   Donde se conclui, uma vez mais, a importância do vento - e como exige as maiores cautelas qualquer aproximação sob vento leviano. E também quando não se conhece o terreno em que se caça tem de prever-se o pior.

Edição de 1934

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