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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO
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Cerca de seis meses após o meu regresso de Moçambique onde vivera metade da minha vida, e convalescente
ainda dos maus dias que precederam e se seguiram à independência, conheci alguém que, além de sacerdote
e pastor de almas, era também escritor. E como, além desse dom, possuía um grande coração, organizara
no Centro Social da sua paróquia um convívio semanal para os que das ex--colónias iam chegando com o
pejorativo apodo de retornados, e que ali, nas noites de 5ª Feira, se reuniam para tomar café, beber
um cálice de Porto (um e outro oferecidos pela paróquia) e sobretudo para conviver, conversar, desabafar
revoltas ou amarguras. Eram náufragos recém-chegados da Guiné, de São Tomé, de Angola e de Moçambique,
aos quais discretamente era perguntado se necessitavam de algum auxílio material traduzido num subsídio
de emergência, em roupas ou víveres de primeira necessidade. Após seis meses em casa de pessoas de família,
eu viera aterrar num bairro da periferia onde não conhecia ninguém. Era a primeira vez que vivia sozinha
entre quatro paredes, ainda dilacerada pelo desmoronar de todas as estruturas que me haviam servido de
apoio no longo caminho da vida, e habituei-me uma vez por semana a procurar nesse convívio - a que ele
muitas vezes presidia - um pouco de simpatia, de compreensão, de calor humano. Por afectuosa indiscrição
de um amigo comum que o acaso me fez descobrir nesses serões, veio esse sacerdote a ter conhecimento
do meu amor pela palavra escrita, e das actividades que dele derivaram ao longo de quase meio século
de permanência nas colónias. Acho que ia lendo também umas crónicas que eu começara entretanto
a publicar num jornal de Lisboa, às quais se seguiram dez anos de silêncio total. (Eu tinha imposto a
mim mesma sobreviver sem, materialmente, sobrecarregar ninguém, iam-me aparecendo nas editoras locais
trabalhos um pouco mais lucrativos do que o de simples free-lance no jornalismo lisboeta, e não me sobrava
tempo nem disposição para mais nada.) Quando nos encontrávamos, o meu amigo sacerdote disparava
afectuosamente uma pergunta, sempre a mesma: "Então quando é que a sua pena volta a dar sinal de si?
Olhe que quem nasceu, em maior ou menor grau, com esse dom, tem obrigação de escrever pelo menos uma
página por dia. Mesmo que narre apenas simples factos da sua vida, se o fizer com algum talento e bom
estilo, terá feito um grande livro..." E eis o motivo por que, ao fim desses dez anos de inércia
e quando tive mais tempo disponível, voltei a folhear velhos jornais, a seleccionar crónicas neles publicadas,
e a escrever, ou a reescrever, pelo menos uma página por dia. Narro em muitas delas simples factos da
minha vida; sei com certeza que não fiz "um grande livro", e não sei se consegui fazê-lo "com algum talento
e bom estilo". Disso serão juizes os leitores. Apesar de dividido em três partes distintas - Memórias,
Contos, Fragmentos de um Diário - penso que as liga uma certa unidade, ou pelo menos uma semelhança de
ambientes, de motivos, de vivências, de feitura. Reuni-as, pois, no mesmo volume e com o título
que devo a esse amigo já falecido que foi simultaneamente um sacerdote exemplar, um historiador consciencioso
e um apreciável romancista que se escondia sob o pseudónimo francês de Roger Achard: o Padre Álvaro
Proença, a cuja memória presto, nestas palavras singelas, a minha grata homenagem.
IRENE GIL
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Quinze anos após o meu primeiro contacto com Moçambique de novo o destino ali me trouxe, não como da
primeira vez em viagem a caminho do Oriente, mas desta para ficar. Antes de me lançar nas recordações
da vida que lá vivi, aproveito o recente conhecimento que tive com uma família que no Norte havia lançado
as raízes de três gerações ali nascidas, para recuar no tempo até aos anos longínquos da 1ª Grande Guerra,
quando o general alemão Von Letow atravessou a fronteira e em Moçambique criou nova frente de batalha,
a que teve de fazer face o exército português. Estava-se em 1917, e o chefe de posto de Sangage, pertencente
ao Comando Militar de Angoche e nele integrado, ajudava com algumas tropas nativas a deter o avanço dos
Alemães. Deixara a mulher em Sangage com um bebé de quinze dias de idade que ele, num breve salto até
casa, tinha ajudado a nascer. (Eram escassos e mal distribuídos os Serviços de Saúde de Moçambique nesse
começo dos anos vinte, e só em raras circunscrições havia assistência médica prestada, na maioria dos
casos, por um simples enfermeiro branco ou negro. Muitas vezes nasciam sem ajuda de ninguém os filhos
dos Europeus, ou eram os próprios pais que, na emergência, serviam de parteiras). De regresso à sua
unidade, teve conhecimento de que os Alemães avançavam em direcção ao Posto, e resolveu enviar um estafeta
com um aviso à esposa para que, de qualquer modo, fugisse e se refugiasse em Angoche onde havia famílias
conhecidas e, livre de perigo imediato, estaria mais segura. Havia rumores de que as comunicações estavam
cortadas por terra, e não teve a senhora outro remédio senão meter-se, com o bebé ao colo, num pequeno
barco a remos pouco maior do que uma casca de noz e fazer, com mar picado e Deus como timoneiro, as muitas
dezenas de milhas que, pela orla litoral, medeiam entre Sangage e Angoche. De resto, não era a primeira
vez que ela enfrentava e vencia, com determinação e coragem de autêntica pioneira, os maiores perigos.
Nesse tempo muitos percursos se faziam ainda de muchila e de preferência de noite, para fugir ao sol
tórrido que, de Novembro a Março, calcina o capim e torna escaldantes as pedras do caminho. Certa vez
adoecera-lhe um filho e, na plantação de coqueiros onde, na altura, o marido era gerente, nenhum enfermeiro
havia para ministrar à criança os socorros de urgência sem os quais corria perigo de morte. Com os
trabalhos da plantação em pleno auge, não podia o marido acompanhá-la. Munida de um simples revólver
e sozinha, com o filho nos braços, forçoso lhe foi meter-se a corta-mato numa região infestada de feras,
para encurtar caminho até à próxima Delegacia de Saúde. Pela noite adiante, trotavam os machileiros
no seu passo cadenciado, começaram a ouvir-se perto rugidos de leão. Apavorados, pousaram a muchila e
dispunham-se a fugir deixando-a, e ao bebé, entregues à sorte que facilmente se adivinha. Aparentando
serenidade que não sentia, mandou-os a senhora cantar alto, fazer muito barulho, mas, como não lhe obedecessem,
pôs-se de pé com a criança num dos braços e a outra mão segurando o revólver. "Mato quem daqui fugir!"
Dominados pela autoridade duma simples mulher, começaram os machileiros a cantar e, amedrontadas com
o alarido, as feras debandaram e não mais se fizeram ouvir. Durante o resto da noite, voaram pelos carreiros
fora os pés dos negros até chegarem, madrugada clara, a porto de salvação. Mãe de família numerosa,
não lhe pouparam os fados outras e mais dolorosas amarguras que ficaram, gravadas a fogo, na crónica
familiar. Viviam ainda em Sangage, a mais de 70 quilómetros de Angoche quando, aos dois anos, outro filho
foi dado como morto, vitimado por uma perniciosa, nesses tempos muito vulgar nos duros climas africanos.
Não havendo em Sangage carpinteiro, mandou o pai fazer o caixão em Angoche enquanto a mãe, os olhos turvos
de lágrimas, lhe preparava a mortalha. Junto à casa havia uns tufos de flores bravas que a irmã mais
velha foi colher para enfeitar - única homenagem possível - o corpinho do irmão. Às costas de um estafeta
veio de Angoche o caixão e nele por suas mãos a mãe o deitou, enquanto esperava a manhã para lhe dar
sepultura. Mas durante a velada notou que o corpo da criança mudara de posição, um dos joelhos flectira
levemente, embora os olhos continuassem fechados no rosto cor de cera. Aos gritos chama o marido, as
filhas ... dera-se um milagre! A criança vivia ainda, era preciso salvá-la! E também por milagre se salvou,
medicada pelos próprios pais, pois ali também outros recursos não havia. O bebé fez-se criança, adolescente,
homem. Filho de um militar que havia sessenta anos fora ferido ao defender de armas na mão a sua terra
(não lhe diziam já nesse tempo que ali também era Portugal?), chorou lágrimas de vergonha quando, na
noite de 24 de Junho de 1975, o presidente do novo Moçambique declarou, perante briosos oficiais superiores
do nosso exército: "Derrotámos o exército português!" Tendo perdido o pouco que possuía, dessa terra
regada pelo sangue de seu pai e pelas lágrimas da mãe, partiu com a mulher, há um ano. E é hoje mais
um retornado neste país a que regressou desiludido, espoliado, desempregado. Vive em casa daquela irmã
que lhe pôs flores no caixão - porque não consegue um tecto a que possa chamar seu, neste Portugal de
Abril em que tanto se prometeu aos Portugueses e tão pouco nos foi dado, ou tanto nos foi tirado. Até
a fé. Até a esperança. Enquanto aguardamos a aurora do Quinto Império -, se o Quinto Império não fosse
o mítico sebastianismo de iluminados que teimosamente se agarram a essa utopia, a essa última ilusão.
Foi ele que, há dias, me contou estas histórias de família. A sua história. Com mais ou menos variantes,
a história trágico-colonial dos retornados. A história de todos nós. E a propósito de retornados.
Desde que vim, todos os anos, pontualmente, a mesma cerimónia se repete: por alturas do Natal, o casal
presidencial recebe no Palácio de Belém um casal de emigrantes, dando assim público testemunho do apreço
que o Chefe do Estado manifesta para com esses preciosos emissores de divisas, que tão oportunamente
contribuem para o equilíbrio das nossas contas com o exterior. E sempre que a T.V. transmite a cena,
eu pergunto a mim mesma, também pontualmente: por que será que nunca o Presidente da República e sua
Mulher se lembraram de convidar um casal de retornados? Afinal foram eles, com os seus ascendentes e
descendentes lá nascidos que nas paragens de Além-mar ajudaram a expandir a nossa língua, a transmitir
a nossa cultura, a manter, enfim, prolongamentos deste pequeno Portugal que com eles, e em grande parte
devido a eles, conservou durante séculos uma dimensão geográfica e espiritual da qual, doze anos depois
de a termos escarnecido, hoje oficialmente nos voltamos a orgulhar. É certo que a esmagadora maioria
veio pobre, mas trouxe outra espécie de divisas: voltando a criar fontes de riqueza por esse país fora,
os retornados estão a dar belas provas de tenacidade, de força de ânimo, de vontade de recomeçar. E recomeçar
aqui, neste Portugal que tanto precisa de cabeças que ousem e de braços que trabalhem para compensar
a sangria dos que partem, deixando a nação, ano após ano, mais pobre de gente válida e activa num país
de aldeias-fantasmas onde há cada vez mais velhos e cada vez menos risos de crianças. Um gesto emanado
das altas esferas oficiais seria - à semelhança do que é feito aos emigrantes - uma gota de bálsamo para
tantas feridas abertas pelo arrancar de raízes e o desmoronar de esperanças dos que de lá regressaram
nem sempre às origens (pois que as origens de quatro ou cinco gerações eram muitas vezes lá), mas à incerteza
e ao desconhecido deste novo Cabo das Tormentas que eles com a sua coragem têm conseguido ultrapassar.
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Esse período de Quelimane em que, pela primeira vez depois de mulher feita, fui transplantada para um
meio social heterogéneo e complicado, constituiu uma experiência nova que por vezes colhia de surpresa
certa ingenuidade que uma tendência natural aliada a muitos anos de mato e de meia solidão tinham ajudado
a preservar em mim. Ali percebi melhor que as pessoas pouco valem só por si - e que o nascimento, a fortuna,
e sobretudo a posição social (a que lá se chamava "categoria") assumem uma importância extraordinária
nessa complexa engrenagem a que chamamos sociedade. No topo ficava o Governador, personagem importante
e respeitada, cujo estilo dava o tom ao pequeno mundo europeu que gravitava à sua volta, quer na esfera
oficial quer na convivência informal. Lá como aqui, os funcionários mantinham uma relação bizarra
com as letras do alfabeto. Havia os da letra J, os da letra l, os da letra H e por aí fora, letras que
marcavam precedências e lhes concediam importância na razão directa da sua progressão para o A. Nas
cerimónias e nos jantares oficiais era preciso o máximo cuidado em não baralhar as letras... sem o que
fermentavam graves ofensas que chegavam a originar cortes de relações. (Devo honestamente confessar que
as suas mulheres ligavam muito mais importância a isso do que eles próprios...) Da mesma forma que
o marido, também a esposa do Governador fechava a cúpula dessa abóbada social em que nos movíamos. Os
seus gostos, a sua maneira de ser e de actuar influenciavam poderosamente a parte feminina da população
europeia: fútil se ela era fútil, intelectual se ela tinha veleidades de o ser, interessada por obras
de assistência e pela melhoria das condições de vida das populações nativas, se esse fosse o seu pendor
natural. (Numa escala mais vasta, disto foi flagrante exemplo a actuação da esposa de um dos últimos
Governadores-Gerais de Moçambique, que possuía a formação e o curso de assistente social. Organizando
breves cursos de voluntariado social e interessando neles muitas dezenas de colaboradoras, conseguiu
galvanizar as componentes da "alta sociedade" laurentina e deixar uma obra de promoção social que lhe
mereceu, à despedida, a mais espontânea e comovente homenagem das mulheres nativas dos subúrbios de Lourenço
Marques a que, anos depois, me foi dado assistir.) Era esse também o pendor natural da senhora que,
ao tempo da nossa chegada a Quelimane, havia pouco lá chegara também após a nomeação de seu marido para
Governador do distrito, e que logo conquistou a amizade de todas nós. Em breve a sua casa se tornou o
centro de uma actividade assistencial que, tendo por manifestação mais visível a quadra do Natal, se
mantinha pelo ano inteiro. Dela beneficiavam, não apenas e mais directamente as populações nativas de
Quelimane e arredores, mas também as Missões do distrito, às quais ela dedicava especial carinho. Nas
nossas andanças pelo interior da Província, conhecemos muitos Missionários, e é recordando um deles,
Italiano, e de quem viemos a tornar-nos amigos, que reproduzo aqui o que há mais de trinta anos escrevi,
numas páginas que guardo entre velhos papéis: "Jantou ontem connosco o Padre G., superior da Missão
de Morrumbala. Voluntário no quadro dos arditti de d'Annunzio, legionário em Marrocos sob as ordens de
Franco, capelão militar nos campos de concentração do Quénia e frade franciscano agora, numa Missão onde
enterrou alegremente a sua maturidade, numa total dádiva de si próprio que me inspira, tal como outros
que pelo interior fora encontramos, a mais sincera admiração. "Nos dias difíceis em que se dão tratos
à imaginação para se redescobrir a fórmula do milagre de Canã, quando a colheita se perdeu por falta
de chuvas e há que alimentar quatrocentas bocas que se albergam no recinto da Missão, o padre G. vai
à caça, recordando talvez os tempos de legionário em que os alvos eram, em vez de cudos ou gazelas, os
rebeldes de Abdel-Krim. " - Em duas noites matei dezanove peças de caça que foram depois trocadas
por feijão e mandioca, diz com simplicidade. " - Eu quero ver que contas irá prestar a S. Francisco,
que considerava os lobos seus irmãos - comenta ao lado, maliciosamente, outro missionário que o acompanhava.
"Sorri, levemente embaraçado. (No fundo sabe perfeitamente que, entre um lobo e quatrocentas bocas com
fome, o Santo não hesitaria...) A uma pergunta minha timidamente indiscreta sobre aquela mudança de
um para o outro extremo, da farda de legionário ao hábito franciscano, responde evasivamente: " - Eu
já não era legionário, dirigia uma fábrica de cimento no Norte de África, quando minha Mãe me chamou
à Itália por ter um irmão gravemente doente. Pedi licença de um mês, ao fim do qual tencionava voltar.
Mas vi morrer o meu irmão, e senti que o meu destino precisava de novo rumo. E nunca mais voltei..."
Por esse tempo recomeçou a frequentar a nossa casa um velho amigo igualmente italiano, que se deslocava
periodicamente a Quelimane e que, se os coleccionasse, eu poderia incluir na galeria dos meus "tipos
inesquecíveis". Dele fixei também nos tais papéis este breve apontamento que o retrata: "Quando ele
chega e se instala com a sua mala de viagem, a sua calva d'annunziana e o seu jipe inverosímil, sei que
não faço mais nada. Com o inconsciente egocentrismo a que lhe dão direito os seus quase setenta anos,
ocupa-me de manhã à noite entre os afectuosos mia cara com que, num absoluto à-vontade, me pede isto
e mais aquilo. Ir com ele ao cemitério onde dorme a família toda, parte da qual morreu aqui num acidente
de avião, numa manhã de tragédia. Fazer-lhe para o relógio uma correntinha de croché. Ajudá-lo a escolher
tecido para um casaco... A verdade é que não me queixo, pois traz-me sempre alguma coisa de que tanta
vez ando sedenta: oportunidade de conversar, discutir pontos de vista que a sua cultura torna frequentemente
originais e interessantes. Conhece meio mundo. E vivia na Rússia quando estalou a revolução bolchevista,
da qual conta episódios que nos tiram para sempre quaisquer ilusões que pudéssemos ter sobre o sistema.
A desgraça que o atingiu fazendo-lhe perder no curto espaço de um ano todos os seres que amava não lhe
abateu a grandeza de ânimo, nem lhe obscureceu a inteligência vivíssima, frequentemente desconcertante
e amiga do paradoxo. Porque aprecio as suas faculdades de crítico a que a amizade não põe restrições
cerimoniosas, costumo ler-lhe os meus rabiscos sempre que tenho alguma coisa nova a mostrar. " - Quantas
vezes corrigiu V. isto? perguntou-me ontem. " - Duas... - Pois tem de corrigir ainda mais oito.
(Calo-me, humildemente convencida de que ele tem razão.) Continuámos a conversar sobre a necessidade
que sentimos de publicar o que escrevemos, tal como o pintor expõe os seus quadros e o músico faz executar
a sua última sonata - necessidade que constitui a grandeza e o sonho de todo o destino de artista. "
- Perché publica, diz ele. É mostrar a sua alma a desconhecidos. Passeá-la na praça pública... " -
Fica ainda muita coisa por mostrar respondo eu. E é criar muitas vezes amigos entre esses desconhecidos.
Lembra-se daquela dedicatória de um livro de Luzia: Aos meus amigos desconhecidos, os que melhor me conhecem...?
Sem o estímulo de publicar, absorvida por outros afazeres, por descuido ou por inércia, eu talvez nada
escrevesse. " - Com o que as letras portuguesas perderiam imenso replica-me, trocista. " - Elas
não. Mas perderia Você o prazer de me ter lido. " - Touché! responde, rindo. Declaro-me vencido..."
Dos seus tempos de jornalista na sua Itália distante ficara-lhe o amor pela literatura que aprecia esquemática
e forte, despida de ornamentos supérfluos e de excrescências verbais. E, tal como eu, pensa que os adjectivos
deveriam ser na prosa como os enfeites num vestido bem cortado: quanto menos, melhor. Li-lhe ontem, porque
falámos do encanto da Itália, que eu visitei há pouco e donde trouxe os olhos cheios de beleza e cor,
aquela frase de abertura do Diário de Katherine Mansfield: "To Beauty. Why should you come to-night,
when it is so cold and grey...", que Fernanda de Castro traduziu livremente, dando-lhe forma belíssima:
Beleza, porque vieste Nesta hora de abandono? Lua, porque desfolhaste
Tuas rosas de luar Sobre o meu sono?
Serra, porque abandonaste O teu xale de nevões E vestiste
a tua saia De estevas e de verbenas, De fontes e de luar? - Beleza, porque vieste Se te não
posso alcançar?" Ainda não tinha acabado e já estava arrependida. No seu rosto de ordinário tão calmo,
rosto de alguém que já está para além da vida, ou acima da vida - perpassou de súbito uma rápida emoção.
Era a dolorosa consciência da sua idade, da sua decadência física, que aqueles versos estouvadamente
lidos por mim tinham acordado. Pairou no ar uma frase sem palavras: "O mundo é ainda tão belo e eu sou
tão velho..." "Beleza, porque vieste Se te não posso alcançar?" Perdera, como atrás digo, todos
os que amava no breve espaço de pouco mais de um ano. A mulher e uma filha num acidente de avião. E o
filho... Mas talvez valha a pena começar do princípio a sua história. Fora por causa dele (atacado por
uma doença grave, progressiva e incurável) que viera para o Norte de Moçambique, em busca do clima quente
que os médicos lhe aconselharam. Adquiriu mais tarde uma plantação no distrito do Niassa, e foi durante
a sua permanência lá que, à largada de Quelimane, o desastre aconteceu, morrendo toda a tripulação e
todos os passageiros do aparelho. Veio ele a Quelimane recuperar os corpos e tratar dos papéis para os
enterros, enquanto o Enzo, o filho, já então com mais de trinta anos e imobilizado numa cadeira de rodas,
ficara na plantação. No regresso tentou combinar com ele vender tudo e irem viver para Nampula
onde teriam melhor assistência médica, mas o Enzo interrompeu-o: " - Não vale a pena, pai. Eu morro
daqui a um ano, no mesmo dia e no mesmo mês em que a minha mãe morreu. " - Figlio... " - Tenho
a certeza, pai. E não vale a pena voltarmos a falar nisso." Nos meses seguintes o Enzo foi piorando.
(Eu ainda o conheci: belo como o Tadzio da Morte em Veneza, o rosto devorado por dois enormes olhos verde-cinza,
a boca sensível e nervosa, uma pele de marfim. Com mãos deformadas e trémulas escrevia poemas que o pai
depois da sua morte me mostrou, poemas de amor que não conhecera, e de sofrimento que conhecera bem de
mais). Semana após semana o seu estado ia-se rapidamente agravando, e o pai resolveu levá-lo para o Hospital
de Lourenço Marques, de cujo director era amigo. Todo o pessoal foi avisado: nem rádio, nem calendários,
nem livros ou revistas que pudessem lembrar ao filho o lento avançar dos dias para a data fatal. Aliás,
o Enzo ia-se pouco a pouco desinteressando de tudo à sua volta, e só as visitas do pai lhe acendiam no
olhar um rápido, fugidio lampejo de alegria. " - A minha mulher e a minha filha morreram no dia 6
de Junho, lembrou-me ele quando me contou o fim. O Enzo morreu um ano depois, no dia 7 do mesmo mês.
" - Sete?, perguntei eu sem bem saber o que dizia, só para disfarçar a emoção. Sete porquê? " - Porque
o ano era bissexto respondeu-me ele simplesmente. E assim, depois de enterrar o filho junto da mãe
e da irmã, voltou para a plantação, completamente sozinho. Havia, por essa altura, grande instabilidade
política na sua Itália natal. A propriedade privada era alvo do ódio dos comunistas, e muitos latifundiários
tentaram vender as suas, ou as venderam, para investir o seu produto em países ou regiões que se lhes
afigurassem seguras. As colónias portuguesas eram assim consideradas, e por intermédio do Governa-dor-Geral
Gabriel Teixeira foi o nosso amigo Mário Barbesti contactado por uma baroneza italiana que se propôs
vir a Moçambique estudar, no terreno, o assunto que lhe interessava. A convite dele instalou-se na plantação,
e uma semana após a chegada apareceu muito pálida e abatida à hora do pequeno almoço. " - Tive esta
noite duas visitas, e por isso não dormi bem, respondeu ela à pergunta do seu anfitrião. " - Duas
visitas?! " - Foi a sua mulher. E depois veio o Enzo... Aperte a sua mão na minha mão esquerda, mas
antes dê-me um papel. Ambos deixaram mensagens. Duas cartas para si." Tive na mão essas cartas. Tinham
passado alguns meses, e de tanto ele as ter lido e relido estavam ligeiramente amarrotadas, e numa delas
- a da mulher - viam-se distintamente sinais de lágrimas que sobre o papel tinham caído. Eram duas cartas
de amor, profética uma delas. "Meu querido, nunca mais penses que foste um mau marido..." (ele, boémio
e gozador, acusava-se disso nas longas conversas que tinha com o meu marido e comigo); "Sempre nos amámos,
e sempre me fizeste feliz. Vais ainda trabalhar muito em Moçambique, mas daqui a poucos anos deves partir,
pois tudo se mudará, e os que ficarem correrão grandes perigos..." A outra carta, de caligrafia incerta
e trémula, era do filho, e mais comovente ainda: "Pai, não me chores, porque agora sou feliz, molto feliz,
e tudo o que sofri na terra nada é, comparado com tanta luz..." Eu podia ter pedido, e não pedi, uma
cópia de qualquer delas: ambas diziam mais, bastante mais do que os trechos que reproduzo aqui. Mas não
ousei: cobardemente, sempre oscilei entre a crença e a descrença, entre o fascínio e o terror perante
tudo o que se relaciona com o mundo do Além. O nosso amigo ficou, de facto, mais algum
tempo em Moçambique, e tudo aconteceu como as mensagens prediziam: foram-lhe confiados cargos de grande
importância em empresas do Monapo antes da sua vinda definitiva para Lisboa. E aqui morreu com perto
de oitenta anos, fisicamente diminuído pela idade, mas mantendo sempre viva a centelha de ironia com
que se defendia dos homens e dos golpes do destino. Entretanto, nós voltámos a Moçambique, e não pude
ir ao seu enterro. Lá de facto, tudo mudara, e os que ficaram correram grandes perigos...
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Talvez o reduzido número de leitores destas páginas estranhe eu não introduzir nelas com mais frequência
o elemento nativo com o qual, a vários níveis e durante muitas horas por dia, mantínhamos contacto. A
esses lembrarei que ao iniciá-las, tive sobretudo um propósito logo de entrada explicitado: "evocar um
estilo de vida, a franja duma civilização sui generis que o clima, as circunstâncias, o próprio desafogo
material de que beneficiavam quase todos os Europeus residentes no Ultramar explicavam ou justificavam."
Estilo de vida do qual encontramos eco nas literaturas dos vários países que se não confinaram nas coordenadas
do seu território de origem e que, com pequenas variantes, foi comum a todos os povos colonizadores.
Descrever esse estilo de vida com suas grandezas e misérias, seus faustos e injustiças, suas lacunas
e omissões é também, embora modestamente, fazer história - já que a vida dos povos se não tece apenas
nas horas altas das viragens e das revoluções, mas também no desfiar dos dias sem história e na rotina
do quotidiano. E a verdade é que, não ao nível dos contactos oficiais ou administrativos entre colonizador
e colonizado, mas no dia a dia das famílias ultramarinas, as nossas relações com o elemento nativo se
limitavam quase apenas àquelas que, em qualquer parte do mundo, eram normais entre quem desempenhava
um certo número de serviços domésticos e quem lhes pagava o respectivo salário que em África (posso afirmá-lo)
não era inferior aos salários de miséria que nesse tempo ganhavam as chamadas "criadas" da burguesia
portuguesa. Com uma vantagem para aqueles: em todas as casas lhes era reconhecido o direito ao descanso
de algumas horas após a refeição do almoço, enquanto estas eram autênticas escravas, trabalhando quase
sem interrupção 12 a 14 horas por dia. Exceptuando algumas honrosas, generosas excepções, só tarde,
muito tarde (pelo menos nós, mulheres, absorvidas por outros interesses, sociais ou profissionais), despertámos
para a consciência de que vivíamos num mundo em que mais directa e activamente devíamos participar, a
fim de o tornar melhor. Antes de, logo após o início do terrorismo, de Norte a Sul de Moçambique se
ter lançado a campanha da Obra de Promoção da Mulher, a verdade que humildemente devemos reconhecer é
termos vivido até então em duas sociedades estanques que se tocavam sem se interpenetrarem e se olhavam
sem se ver: a branca, quase totalmente alheia aos problemas da população nativa que fervilhava à sua
volta; e a negra, contagiada já pêlos ventos de mudança, carregados de ameaças e presságios, que sopravam
sobre o continente africano. Registavam-se numa carências aflitivas, enquanto a outra vivia despreocupada
e feliz? Sem dúvida, muito embora - porque assim convém ao momento que passa - tudo hoje se empole e
dramatize para além das suas proporções reais. Uma das graves lacunas do sistema colonial português
foi não obrigar aos funcionários que mais estreitos contactos mantinham com as populações africanas a
aprender pelo menos a principal língua nativa da colónia ou da região onde deviam exercer as suas funções.
Nas suas deslocações pelo interior, isso obrigava à necessidade de utilizar um intérprete, nem sempre
devidamente preparado para traduzir fielmente o discurso original. Contava-se na Zambézia que um alto
funcionário administrativo, conhecido pelo seu amor à retórica altissonante e pelo pendor de a exibir
onde quer que lhe surgisse audiência e oportunidade, se dirigiu desta maneira aos régulos reunidos para
uma banja a que ele presidia: "Intérprete! Depois de ter visto as vossas machambas, que bem podiam
ser maiores, diz a estes homens que eles constituem uma pequena parcela da cadeia que forma o todo histórico
do Império, e o orgulho da nossa civilização de Portugueses! Que, depois de porem num lado o imposto
por eles pago ao Estado, e noutro o esforço do Governo em prol da sua civilização - eles que digam para
onde pende o prato da balança! Eles que digam! Percebeste bem o que eu disse?" E o desgraçado intérprete,
que não tinha percebido absolutamente nada: " - Percebeste muito bem, sr. Inspector!"; e desejando provar
que tinha percebido, repetiu primeiro em português: - "Sr. Inspector está a dizer que se eles não faz
machamba no Império, não pesa filho na balança, não faz civirização, não paga imposto..." E baralhando
tudo, esgazeado e aflito, acrescentou da sua lavra: "... Manda cada um para seu lado, e vai ter agora
mesmo grande chatice!" Menos inofensivos do que este, outros exemplos poderia apontar, cujos efeitos
deram origem a involuntárias injustiças, susceptíveis de provocar ressentimentos entre as populações.
Anos depois, reconhecida, enfim, a conveniência de se aprender pelo menos uma língua-mãe nativa, organizaram--se
em Lourenço Marques cursos de ronga que, com o agravamento da situação, não tiveram longa vida, suponho
que por falta de alunos. Como para tantas outras coisas que no Ultramar se passaram, também para isso
era já tarde de mais.
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Na Quelimane da década de 50, que preguiçosamente estendia ao sol as suas ruas rectilíneas ladeadas
de casas baixas com suas largas varandas de estilo colonial, o centro de convívio dos Europeus era a
"Liga" - o elegante clube da terra. Ali se esboçavam namoros e se concertavam casamentos e, à tardinha,
para lá se dirigiam os viciosos do bridge ou da canasta, após o longo dia de trabalho na atmosfera abafada
dos escritórios ou das repartições. Ali se realizavam também os Portos-de-Honra oferecidos aos recém-chegados
"importantes", e as festas de despedida aos funcionários ou directores de empresas que partiam. E ali
as senhoras faziam, "comme il se devait" naquela nesga de terra dobrada sobre si mesma entre o mar e
os coqueirais, quilómetros de croché e de... má-língua, como sucede, ou nesse tempo sucedia, em todos
os pequenos meios fechados. Na pacata, provinciana cidadezinha costeira onde, para lá das horas de trabalho
ou descanso pouco mais acontecia - a Liga era uma instituição. Nos clubes mais democráticos, de que
o Sporting era o mais frequentado, organizavam-se os grandiosos bailes de Carnaval, da Pinhata e do fim
de ano, nos quais tomava parte toda a população europeia, indiana e negra ou mestiça civilizada que para
ali convergia, quer da própria capital da então Província, quer dos vastos palmares do litoral. A
sala de baile era um simples barracão coberto a capim, enfeitado com serpentinas e folhas de palmeira,
abundantemente fornecidas pelas plantações vizinhas. Um simples barracão sem conforto nem graça... Mas
nunca a conga e a rumba foram, em parte alguma, dançadas com mais animação e alegria do que as dessas
noites de festa, ao som duma orquestra barulhenta e nem sempre bem afinada, sob o dossel das folhas de
palmeira roubadas aos coqueirais. Era hábito nesse tempo, nas cidades ou vilas - e eram quase todas
- onde não havia um hotel decente, alojar os visitantes ilustres nas casas das pessoas gradas da terra
solução geralmente aceite por todas com prazer. Quando João Villaret visitou a Zambézia levando no seu
programa alguns recitais de Poesia, foi-lhe destinada para o efeito a residência do Governador, nessa
altura desabitada. Por dever de ofício, coube-me a mim a tarefa de o instalar, e não deixou de ter sabor
o diálogo que travei com o fiel do Palácio - Daire, de sua graça -, naturalmente curioso em relação à
categoria do hóspede a quem cabia essa honra. - Ele é governador, Senhora, ou intendente? - Não.
- Se calhar é doutor, ou engenheiro... - Também não. - É professor dos mininos? - Também não
é... (Como havia eu de explicar a inexplicável, misteriosa profissão de Mensageiro de Beleza em palavras
concretas, susceptíveis de serem entendidas por quem decerto nunca tinha ouvido falar em Poesia?) -
Diz versos, acabei por declarar, frustrada e descontente com as minhas limitações vocabulares. - Versos
assim como a Portuguesa? - Não. Versos doutra maneira. Poemas. - ...? Recordei de repente o
actor... o grande actor que em Lisboa havia visto meses antes em Esta Noite Choveu Prata, e agarrei-me
a essa tábua de salvação. — Você já viu teatro, Daire? - Ih... triato, não, Senhora. É mesma coisa
que cinema? Já viu cinema. - Então, este senhor que há-de vir é actor de cinema. Quero dizer - faz
cinema. Ainda não convencido do que eu, pouco habilmente, o desejava convencer, o Daire achou que,
para actor, bastava um dos quartos habitualmente destinados a visitantes mais modestos e, mal virei costas,
num deles fez os preparativos necessários, o que eu só vim a saber dias depois. Para espiar-lhe a
reacção, na noite do segundo recital comprei um bilhete ao Daire. E na manhã seguinte: - Então? Você
gostou? - Gostei, sim, Senhora. Não percebeu muita coisa. Mas gostei da cara dele, das mãos dele,
que até parece que falava. Actor é mesmo gente grande... Villaret tomava connosco as refeições. E
no dia seguinte à hora do almoço perguntou-me, muito admirado, se eu tinha dado ordem para o mudarem
de quarto. - Não. Porquê? - É que, ao voltar para casa, encontrei o criado a esperar-me, e as malas
mudadas para um quarto maior, mais luxuoso que o primeiro... Enquanto, depois do recital, nos reuníramos
para uma ceia com meia dúzia de amigos, o Daire alterou definitivamente as suas ideias quanto à importância
dum actor. A mudança para um quarto mais belo foi a tocante homenagem que, à sua maneira, a um tempo
discreta e reveladora, ele prestou a Villaret - e à Poesia.
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Durante uma estação fria em que, em Quelimane, choveu semanas a fio, apanhei uma dose de gripe e fiquei
rouca. Pensei que fosse coisa passageira, e não fiz grande caso. Mas à medida que o tempo passava, fatigava-me
o menor esforço vocal, e a minha voz ia-se apagando mais e mais. Sempre gostei de falar, e comecei a
ficar preocupada. Como por essa altura o nosso filho mais novo tivesse de começar o curso dos liceus,
resolvi acompanhá-lo a Lourenço Marques, e aproveitei a ocasião para consultar um especialista. Consultei.
E depois de me observar disse-me ele que não me preocupasse, que fizesse umas inalações, umas zaragatoas,
que tomasse isto e aquilo, e tudo passaria sem que nada mais fosse preciso. Regressei à Zambézia cheia
de esperança, e fiz tudo o que o médico mandou: inalei, pincelei, zaragatoei, mas fiquei cada vez pior.
Os meses iam passando, o meu estado ia-se agravando, quando tivemos notícia de que, vindo de Lisboa,
havia chegado à Beira um otorrino de grande fama, tido como sumidade na matéria. Resolvi-me a ir à Beira,
consultei o especialista e fiquei desmoralizada. Depois de me examinar a garganta, diagnosticou finalmente
a origem do meu mal: eu tinha nódulos nas cordas vocais, e esse era um caso para que não havia remédio.
"- E uma operação, sr. doutor? Não daria resultado? - Não valeria a pena. Eu podia operá-la, mas dali
a pouco tempo os nódulos voltariam a aparecer. Há apenas paliativos: falar o menos possível e, fazendo
mímica ao espelho, esforçar-se por colocar a voz num certo registo que..." Desanimada, penso que já
não o ouvia. Falar o menos possível, eu que sempre gostei de conviver, de trocar ideias e impressões,
de comunicar, enfim. E essa história de mímicas ao espelho (como? que mímicas? que registo? Eu não aspirava
a ser cantora...) encabulava-me. De novo regressei a Quelimane, mas desta vez desiludida. Temia a
nova estação do cacimbo que se aproximava, e desse temor se ressentia o meu estado de espírito, cada
vez mais negativo. Mas certo dia, numa conversa entre amigas, soube uma novidade. Recém-chegado dos
Estados Unidos onde se havia especializado em doenças de garganta, viria em breve à Ilha de Moçambique
o dr. José Ferreira dos Santos, em visita a seus pais. Ora, desde os seus tempos do Niassa, o meu marido
era amigo do velho colono Ferreira dos Santos, grande fomentador do desenvolvimento do distrito, senhor
de grande fortuna e de um coração sempre pronto a atender pedidos justos e remediar infortúnios alheios.
(Pessoalmente, eu própria tivera, havia pouco, provas disso.) Pedi ao meu marido que lhe expusesse
o meu caso: ele escreveria ao filho pedindo-lhe que trouxesse os instrumentos necessários para me examinar
na Ilha, em data a combinar. Informados pelo pai do dia e da hora da passagem do avião pelo aeroporto
de Quelimane a caminho do Lumbo, ali fomos cumprimentá-lo, ficando a consulta marcada para dali a três
semanas, na própria casa de seu pai. Mas nesse intervalo algo de singular aconteceu. Uma
noite, por puro acaso, conhecemos (ou melhor, eu conheci) o chefe da estação de caminhos de ferro de
Quelimane que, ao cumprimentar-me, notou o estado da minha voz, e decerto também o do meu espírito. Eu
aproveitei a ocasião para lhe perguntar o horário dos aviões, com o qual devia ter ligação o dos caminhos
de ferro. A uma pergunta sua respondi que dali a semanas iria à Ilha de Moçambique consultar um especialista
de doenças de garganta, visto não existir nenhum em Quelimane. Duas manhãs depois retiniu o telefone,
e travou-se entre mim e ele um diálogo inesperado. "- Bom dia, minha senhora. O seu marido está? -
Está sim, mas neste momento não pode vir ao telefone. Se quiser deixar recado... - Não, obrigado,
não é pressa. Eu volto a telefonar. E a senhora está melhor? - Estou na mesma, obrigada. - Parece-me
que está melhor... - De manhã tenho sempre a voz mais clara, decerto porque a não utilizei durante
a noite. - Não deve ser só isso. E, pareceu-me que com certa timidez acrescentou: - Anteontem impressionou-me
o seu estado, e orei muito por si. - Ah... Muito obrigada! - E continuarei a orar. Verá que vai
ficar boa. Eu tenho uma grande fé... - Tenho a certeza!". Voltei a agradecer e desliguei o telefone,
com um frémito de emoção correndo-me à flor da pele. Ali estava um homem que até dois dias antes me era
totalmente desconhecido, e que rezava por mim! Como o mundo seria belo se todos fôssemos assim amigos,
assim fraternos, se... Curiosa desse novo personagem que, por tão inesperadas vias, entrava na minha
vida, procurei saber melhor quem ele era. Soube que era pastor da Igreja do Sétimo Dia, casado, bom chefe
de família, bom funcionário e - surpresa! quase nosso vizinho. Dali em diante, nos passeios que habitualmente
dávamos à volta da nossa casa antes da hora do jantar, passámos a encontrar-nos muitas vezes. Ele quase
sempre acompanhado pela mulher ou pelas filhas (era estranho como até ali nunca nos tivéssemos cruzado!),
eu pelo meu marido. Apresentou-nos a família, e perguntava-me como é que me sentia, se já passava melhor.
Céptica, endurecida, resistindo à evidência dessas melhoras que dia a dia se acentuavam, eu respondia
que não, era impressão sua, eu estava absolutamente na mesma... "- Na mesma?! Mas a sua aparência
é óptima, a sua voz está muitíssimo mais clara. Olhe que eu continuo a orar por si!" Um dia antes
da data combinada para a consulta na Ilha, voltámos a cruzar-nos na rua. Disse-lhe que sempre ia, perguntei
se o avião constumava chegar à tabela, e ouvi a sua resposta: "- Acho que faz muito bem! Para se distrair,
para mudar de ambiente - isso faz sempre bem. Porque por causa da garganta não precisa, visto já estar
curada. - O médico dirá, respondi eu, recusando-me obstinadamente a acreditar". Desembarquei no
aeroporto do Lumbo à hora em que ao cais aportava, vinda de uma das propriedades, a própria vedeta da
empresa. E foi nela que rumámos para a Ilha, por sobre aquele inverosímil mar azul, ao faiscante sol
do meio-dia. À mesa do almoço que agrupava sempre muita gente - filhos, amigos, gerentes das plantações,
empregados que ocasionalmente se deslocavam à Ilha - o médico ocupava o lugar em frente ao meu, e durante
a animada conversa em que todos tomámos parte, percebi que de vez em quando me lançava um olhar rápido,
um olhar perscrutador, um olhar de quem não acredita nos próprios olhos, ou melhor, nos próprios ouvidos.
(Nas breves palavras que havíamos trocado no aeroporto de Quelimane, ele tinha-se certamente apercebido
do meu estado, e ali estava eu agora, faladora e descontraída, com ar de quem tivesse vindo apenas passear,
e não fazer uma consulta programada meses antes entre uma pequena cidade de Moçambique e outra, muitíssimo
maior, do continente americano). À tardinha, logo que esteve disponível, veio examinar--me a garganta.
Focou, tornou a focar, observou. "- Não vejo nada de anormal, disse por fim. E também já notei que tem
a voz muito mais clara... Fez, com certeza algum tratamento e melhorou. Mas conte-me lá, detalhadamente,
a sua história". Contei. Contei toda a parte clínica, desde a consulta ao colega que me garantiu curar-me
com inalações até ao outro que me deu por incurável, visto que uma operação não teria resultados definitivos.
"- Bem, interrompeu ele. Eu respeito esse meu colega (eu tinha-lhe dito o nome), mas com isso não estou
de acordo. Caso ainda existissem os nódulos eu poderia operá-la, e estou convencido de que com muito
bons resultados. Mas... tem a certeza de que, desde que pela primeira vez nos vimos, não fez nenhum tratamento?"
Na sua voz havia uma reticência leve, a reticência de quem deseja acreditar, mas no fundo não acredita.
E como detesto que, nem a brincar, me tomem por mentirosa, acabei por contar o resto, desde o primeiro
telefonema até à última frase daquele pastor (que já ficara nosso amigo) da Igreja do Sétimo Dia que
costumava rezar por mim: "Por causa da garganta não precisa, visto que está curada..." "- É estranho,
murmurou, pareceu-me que impressionado, o dr. Ferreira dos Santos. Mas vamos lá examinar isso outra vez.
Tornou a puxar-me a língua, a observar, a insistir. "- Não encontro nada, voltou de novo a declarar".
E depois de uma breve pausa acrescentou gentilmente: "-Tive muito gosto em voltar a vê-la, mas por causa
da garganta não era preciso, realmente. Pelo que pude observar, já não tem nada". Mais uma vez regressei
a Quelimane, e mandei contar a meus Pais, já então residentes em Lisboa, o feliz desfecho do meu caso,
de cujas peripécias tinham estado sempre a par. "- Foi um milagre, concluiu naturalmente
a minha Mãe, com a sua fé forte e singela. Mas num P.S.. aposto à assinatura da carta que em resposta
me escreveu acrescentou, não sei se maliciosa, se sincera: "- Mas não penses que o deves a esse senhor
da Igreja do Sétimo Dia. Quem te curou foi Nossa Senhora de Fátima..."
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Quinze anos após o meu primeiro contacto com Moçambique de novo o destino ali me trouxe, não como
da primeira vez em viagem a caminho do Oriente, mas desta para ficar. Antes de me lançar nas recordações
da vida que lá vivi, aproveito o recente conhecimento que tive com uma família que no Norte havia lançado
as raízes de três gerações ali nascidas, para recuar no tempo até aos anos longínquos da 1ª Grande Guerra,
quando o general alemão Von Letow atravessou a fronteira e em Moçambique criou nova frente de batalha,
a que teve de fazer face o exército português. Estava-se em 1917, e o chefe de posto de Sangage,
pertencente ao Comando Militar de Angoche e nele integrado, ajudava com algumas tropas nativas a deter
o avanço dos Alemães. Deixara a mulher em Sangage com um bebé de quinze dias de idade que ele, num breve
salto até casa, tinha ajudado a nascer. (Eram escassos e mal distribuídos os Serviços de Saúde de Moçambique
nesse começo dos anos vinte, e só em raras circunscrições havia assistência médica prestada, na maioria
dos casos, por um simples enfermeiro branco ou negro. Muitas vezes nasciam sem ajuda de ninguém os filhos
dos Europeus, ou eram os próprios pais que, na emergência, serviam de parteiras). De regresso à sua
unidade, teve conhecimento de que os Alemães avançavam em direcção ao Posto, e resolveu enviar um estafeta
com um aviso à esposa para que, de qualquer modo, fugisse e se refugiasse em Angoche onde havia famílias
conhecidas e, livre de perigo imediato, estaria mais segura. Havia rumores de que as comunicações estavam
cortadas por terra, e não teve a senhora outro remédio senão meter-se, com o bebé ao colo, num pequeno
barco a remos pouco maior do que uma casca de noz e fazer, com mar picado e Deus como timoneiro, as muitas
dezenas de milhas que, pela orla litoral, medeiam entre Sangage e Angoche. De resto, não era a
primeira vez que ela enfrentava e vencia, com determinação e coragem de autêntica pioneira, os maiores
perigos. Nesse tempo muitos percursos se faziam ainda de mochila e de preferência de noite, para fugir
ao sol tórrido que, de Novembro a Março, calcina o capim e torna escaldantes as pedras do caminho. Certa
vez adoecera-Ihe um filho e, na plantação de coqueiros onde, na altura, o marido era gerente, nenhum
enfermeiro havia para ministrar à criança os socorros de urgência sem os quais corria perigo de morte.
Com os trabalhos da plantação em pleno auge, não podia o marido acompanhá-la. Munida de um simples
revólver e sozinha, com o filho nos braços, forçoso lhe foi meter-se a corta-mato numa região infestada
de feras, para encurtar caminho até à próxima Delegacia de Saúde. Pela noite adiante, trotavam os
machileiros no seu passo cadenciado, começaram a ouvir-se perto rugidos de leão. Apavorados, pousaram
a mochila e dispunham-se a fugir deixando-a, e ao bebé, entregues à sorte que facilmente se adivinha.
Aparentando serenidade que não sentia, mandou-os a senhora cantar alto, fazer muito barulho, mas, como
não lhe obedecessem, pôs-se de pé com a criança num dos braços e a outra mão segurando o revólver. "Mato
quem daqui fugir!" Dominados pela autoridade duma simples mulher, começaram os machileiros a cantar e,
amedrontadas com o alarido, as feras debandaram e não mais se fizeram ouvir. Durante o resto da noite,
voaram pelos carreiros fora os pés dos negros até chegarem, madrugada clara, a porto de salvação.
Mãe de família numerosa, não lhe pouparam os fados outras e mais dolorosas amarguras que ficaram,
gravadas a fogo, na crónica familiar. Viviam ainda em Sangage, a mais de 70 quilómetros de Angoche quando,
aos dois anos, outro filho foi dado como morto, vitimado por uma perniciosa, nesses tempos muito vulgar
nos duros climas africanos. Não havendo em Sangage carpinteiro, mandou o pai fazer o caixão em Angoche
enquanto a mãe, os olhos turvos de lágrimas, lhe preparava a mortalha. Junto à casa havia uns tufos de
flores bravas que a irmã mais velha foi colher para enfeitar — única homenagem possível — o corpinho
do irmão. Às costas de um estafeta veio de Angoche o caixão e nele por suas mãos a mãe o deitou, enquanto
esperava a manhã para lhe dar sepultura. Mas durante a velada notou que o corpo da criança mudara de
posição, um dos joelhos flectira levemente, embora os olhos continuassem fechados no rosto cor de cera.
Aos gritos chama o marido, as filhas....dera-se um milagre! A criança vivia ainda, era preciso salvá-la!
E também por milagre se salvou, medicada pelos próprios pais, pois ali também outros recursos não havia.
O bebé fez-se criança, adolescente, homem. Filho de um militar que havia sessenta anos fora ferido
ao defender de armas na mão a sua terra (não lhe diziam já nesse tempo que ali também era Portugal?),
chorou lágrimas de vergonha quando, na noite de 24 de Junho de 1975, o presidente do novo Moçambique
declarou, perante briosos oficiais superiores do nosso exército: "Derrotámos o exército português!" Tendo
perdido o pouco que possuía, dessa terra regada pelo sangue de seu pai e pelas lágrimas da mãe, partiu
com a mulher, há um ano. E é hoje mais um retornado neste país a que regressou desiludido, espoliado,
desempregado. Vive em casa daquela irmã que lhe pôs flores no caixão — porque não consegue um tecto a
que possa chamar seu, neste Portugal de Abril em que tanto se prometeu aos Portugueses e tão pouco nos
foi dado, ou tanto nos foi tirado. Até a fé. Até a esperança. Enquanto aguardamos a aurora do Quinto
Império —, se o Quinto Império não fosse o mítico sebastianismo de iluminados que teimosamente se agarram
a essa utopia, a essa última ilusão. Foi ele que, há dias, me contou estas histórias de família.
A sua história. Com mais ou menos variantes, a história trágico-colonial dos retornados. A história de
todos nós. E a propósito de retornados. Desde que vim, todos os anos, pontualmente, a mesma
cerimónia se repete: por alturas do Natal, o casal presidencial recebe no Palácio de Belém um casal de
emigrantes, dando assim público testemunho do apreço que o Chefe do Estado manifesta para com esses preciosos
emissores de divisas, que tão oportunamente contribuem para o equilíbrio das nossas contas com o exterior.
E sempre que a T.V. transmite a cena, eu pergunto a mim mesma, também pontualmente: por que será que
nunca o Presidente da República e sua Mulher se lembraram de convidar um casal de retornados? Afinal
foram eles, com os seus ascendentes e descendentes lá nascidos que nas paragens de Além-mar ajudaram
a expandir a nossa língua, a transmitir a nossa cultura, a manter, enfim, prolongamentos deste pequeno
Portugal que com eles, e em grande parte devido a eles, conservou durante séculos uma dimensão geográfica
e espiritual da qual, doze anos depois de a termos escarnecido, hoje oficialmente nos voltamos a orgulhar.
É certo que a esmagadora maioria veio pobre, mas trouxe outra espécie de divisas: voltando a criar fontes
de riqueza por esse país fora, os retornados estão a dar belas provas de tenacidade, de força de ânimo,
de vontade de recomeçar. E recomeçar aqui, neste Portugal que tanto precisa de cabeças que ousem e de
braços que trabalhem para compensar a sangria dos que partem, deixando a nação, ano após ano, mais pobre
de gente válida e activa num país de aldeias-fantasmas onde há cada vez mais velhos e cada vez menos
risos de crianças. Um gesto emanado das altas esferas oficiais seria — à semelhança do que é feito
aos emigrantes — uma gota de bálsamo para tantas feridas abertas pelo arrancar de raízes e o desmoronar
de esperanças dos que de lá regressaram nem sempre às origens (pois que as origens de quatro ou cinco
gerações eram muitas vezes lá), mas à incerteza e ao desconhecido deste novo Cabo das Tormentas que eles
com a sua coragem têm conseguido ultrapassar.
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