A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



JOSÉ C. PARDAL



O PERIGO NA CAÇA GROSSA E O TIRO

   O acto de caçar, independentemente de qualquer definição morfológica, assenta no trimónio elementar: o homem-caçador, a arma e o animal selvagem.
   Desta combinação resulta que, para acontecer uma caçada ou conquistar um bom trofeu, é absolutamente necessário que todos estes elementos se conjuguem e se equilibrem: o caçador deve ser caçador; a arma deve ser de qualidade e potência adequada; o animal selvagem deve constituir o trofeu ou o objectivo do caçador.
   Da conjunção desses três elementos e como consumação final teremos então esse acto culminante e decisivo que é o tiro.
   Palavra muito simples, expressão assaz vulgar, no entanto ela encerra e finaliza todo um mundo de técnicas, desde a formação do caçador, a escolha da arma, a preparação da caçada, a procura, no terreno, do trofeu desejado, a perseguição, a aproximação, o momento do tiro e o tiro propriamente dito.
    Ele é a essência da própria caçada, uma vez que há muito o homem pôs de parte os processos primitivos de apresamento dos animais silvestres para se fixar nessa expressão mágica.: o tiro.
Para além desta acção, o que restará para o homem-caçador será a indelével posse do trofeu, o seu aproveitamento, o inventário dos erros e dos sucessos cometidos e, por último, e como verdadeira pedra de toque da caçada, a inefável recordação dos momentos e das emoções vividas. E na caça grossa e perigosa essas emoções estarão sempre ligadas ao seu principal componente, o grande motivo e esse autêntico desafio que é... o perigo.
   Na caça grossa e perigosa é o tiro que, culminando o acto de caçar, ao mesmo tempo que dispara sobre o animal um projéctil mortífero, dispara também esse componente natural da caça grossa que é o perigo, transformando muitas vezes o animal caçado em caçador, quando, em vez de o abater, desperta nele o instinto de defesa e ataque. Inúmeras vezes esta situação tem levado o animal selvagem a trágicas vitórias sobre o caçador! Em contrapartida, é exactamente no tiro que o caçador vai buscar a sua segurança e até a preservação da sua vida.
   Vamos portanto analisar estes factores tão interligados: o perigo e o tiro.
   Partamos do princípio de que o caçador é um verdadeiro caçador, menos pela sua competência e experiência, mas principalmente pela sua paixão pela caça. Ele é consciente, possuidor de uma ética e de uma racionalidade que o distingue da irracionalidade do próprio animal silvestre que procura conquistar. Este, o animal, vive e actua dentro dos parâmetros e limites dos seus códigos genéticos obedecendo a impulsos biológicos; aquele terá de fazer uso da sua inteligência e da sua técnica, emolduradas pela própria ética e pelas leis da caça.
   Para podermos fazer uma análise do perigo que ameaça o caçador, vamos, antes de mais, analisar o animal silvestre, não tanto pela sua morfologia, mas principalmente pelo seu comportamento, consagrando-lhe sempre todo o respeito que se lhe deve como adversário que é e não como inimigo. Da sua qualidade, dimensão, comportamento perante o caçador, resistência física e periculosidade dependerá então a escolha da arma mais apropriada e respectiva técnica de tiro e ainda a melhor táctica do caçador para esconjurar o perigo que ele possa representar.
   Vamos também já partir do princípio de que iremos lidar com animais de porte pequeno, médio e grande, quanto à sua potência física, mas todos eles de periculosidade máxima.
   Quanto ao perigo que os animais selvagens representam, sabemos, por experiência própria, que ele existe nos pequenos cornos ou nos cascos cortantes como navalhas dum pequeno antílope. Mas este não é o perigo que o homem procura para saciar a sede de aventura ou para alimentar esse desafio que faz dele o único ser vivente que, vivendo antecipadamente o perigo, extrai daí uma fonte de gozo e satisfação anímica que o distingue dos outros animais.
    E aqui estamos finalmente perante os clássicos animais mais perigosos da selva africana, esses extraordinários e belos seres que fazem vibrar de emoção a alma do caçador: o elefante, o búfalo, o leão, o leopardo e o rinoceronte, para nos referirmos somente a animais africanos.
    O tigre, de origem asiática, é considerado um dos animais mais perigosos do mundo e pode ser, sem qualquer favor de apreciação, comparado com o leão, não só quanto ao perigo que representa para o caçador como, e principalmente, para o homem em geral.
   Outros há ainda muito mais perigosos, mas só para o homem comum e não para o caçador. Está neste caso o crocodilo, que é, segundo as estatísticas, um dos animais selvagens que, hoje como ontem, mais vítimas causa no continente negro, tanto entre as populações civis como nos seus animais domésticos. Isto porque goza de condições biológicas e de habitat que o põem em maior contacto com as populações, na concorrência vital pela posse e uso da água tão escassa como preciosa para a vida no continente africano. No entanto, e como alvo cinegético, é relativamente fácil de caçar sem pôr em risco a segurança do caçador.
   Para melhor equacionar estes perigosos animais iremos dividi-los ainda quanto à sua origem.
Podemos assim classificar os animais perigosos em dois grupos fundamentais e opostos: os carnívoros e os herbívoros, ou sejam, no primeiro caso, o leão e o leopardo, e, no segundo, o elefante, o búfalo e o rinoceronte. As atitudes agressivas destas duas classes são geradas por factores completamente diferentes.
   Nos carnívoros teremos de considerar a sua ferocidade como principal gerador de perigo, embora tenhamos que convir que o conceito de ferocidade é um conceito puramente humano e extraído dos nossos próprios valores. Na verdade, os carnívoros necessitam de possuir uma atitude feroz, pura e simplesmente, para sobreviverem. Eles precisam de transformar o seu comportamento normalmente pacífico e indolente em ferocidade pura para procurar, perseguir, atacar e matar as suas vítimas - de modo geral os herbívoros - para delas se alimentarem.    Logicamente se perdessem essa faculdade de produzir agressividade - que nós apelidamos de feroz - jamais seriam capazes de prover a sua alimentação e sucumbiriam. Vamos, por isso, classificar o perigo que os carnívoros representam como um perigo activo.
   No segundo temos os herbívoros, que têm como destino servir de pasto aos carnívoros, fornecendo-lhes o alimento necessário.  Os herbívoros, por sua vez, encontram o seu sustento na matéria vegetal como componentes da pirâmide alimentar ecológica. Isto é um fatalismo biológico que devemos ter em conta quando estudamos o comportamento dos animais selvagens e a natureza dos perigos que o caçador tem de enfrentar.
   Por isso, os herbívoros têm de desenvolver capacidades especiais para evitarem e vencerem os perigos que os rodeiam.
   A sua existência é um alerta constante. Se não possuem um grande poder físico, constituído por corpos pesados e poderosos e portanto impossíveis de vencer pela menor capacidade física dos predadores, então a natureza dota-os de características anatómicas muito próprias, como corpos esbeltos e muito musculados, membros leves, ágeis e fortes para a corrida rápida: grandes pavilhões auditivos, visão aguda e olfato apurado para poderem detectar e evitar os seus inimigos. Nestes pode incluir-se o próprio homem, que nos aparece assim como uma espécie de predador superior. Se não podem sobreviver pela luta, sobrevivem pelo alerta permanente e a fuga rápida, até porque as suas armas são de natureza defensiva.
   Evidentemente que estes atributos implicam e justificam uma atitude passiva no complexo ecológico em que se inserem e em que o medo representa o modus vivendi da sua existência. A agressividade que podem opor aos perigos que correm, como último recurso, é gerada pelo medo e, portanto, o perigo que representam para o caçador é um perigo de natureza passiva.
    Há casos conhecidos de agressões praticadas por herbívoros que têm todos a mesma origem: defesa pura ou luta pela sobrevivência. Quase sempre são produzidas por animais feridos.     Conheci um caso em que um caçador inexperiente e menos cauteloso se aproximou demasiado duma pala--pala (hipotragus-niger) ferida, para a fotografar, e foi mortalmente varado pelos cornos afiados do vigoroso animal.
   Conheço ainda casos de ferimentos causados por pequenos antílopes, tanto com os cornos como com os cascos, e eu próprio fui fortemente atacado por uma inhala (tragelaphus-angasi) ferida, numa atitude de pura defesa causada pelo medo ou pelo instinto de conservação da espécie.
   No entanto, os animais herbívoros de grande corpulência, como o elefante, o búfalo ou o rinoceronte, e até o hipopótamo, como consequência do seu grande poder físico, de que têm uma espécie de "consciência" natural, podem provocar ataques perigosos, mesmo sem serem feridos, mas simplesmente por se sentirem em perigo pela aproximação demasiada do caçador ou do homem em geral. É também esta uma acção de defesa, provocada pelo medo, que nos apresenta uma agressividde e um perigo de natureza passiva.
   Conhecemos agora a anatomia do perigo. Prevalece portanto a questão: qual dos cinco é mais perigoso para o caçador?
   Grandes controvérsias têm sido estabelecidas, por outros tantos caçadores, quanto à resposta certa para esta pergunta. As opiniões de grandes caçadores são bem diferentes e por vezes calorosamente defendidas e justificadas, mas deixam sempre grandes dúvidas no espírito de todos os caçadores e não caçadores.
   A minha experiência leva-me a concluir e a afirmar, porém, que todos eles têm mais ou menos razão, até porque algumas dessas opiniões não podem deixar de ser influenciadas por subjectivismos gerados por diferentes factores que intervêm e condicionam o seu julgamento, como, por exemplo, a natureza das experiências vividas; o género de caça que mais praticaram e os animais selvagens que mais abateram; as zonas em que caçaram; as armas que usaram; a sua própria e, por vezes, muito pessoal técnica de caça, e ainda a finalidade das caçadas, se desportivas ou oficiais e ditadas por controlos ecológicos ou administrativos.
    Como exemplo desta minha teoria citarei o grande caçador Neumann. Em sua opinião, o elefante é o animal mais perigoso. E porquê? Porque foi o animal que mais caçou e quase sempre com uma arma de pequeno calibre, .256 ou 6,5x54 Mannlicher-Schoenauer!
   Evidentemente que este calibre de grande poder perfurante, em relação aos animais de grande porte, nomeadamente o elefante, não passa de uma espécie de "agulha de injecção"! O seu poder letal só se produz se atingir pontos essenciais ou imediatamente vitais cuja destruição tire ao animal qualquer capacidade de reacção! A não serem atingidos esses pontos sensíveis, estaremos em presença de animais feridos com todas as suas consequências. Assim, a acção daquele projéctil, se não atingir esses pontos, só servirá para despoletar no animal a agressividade consequente e geradora de perigo para o caçador e até para as populações locais, que poderá vir a atacar sem provocação prévia.
   Não admira, portanto, que Neumann tivesse sido objecto de perigosos ataques por parte dos elefantes, que só não o mataram certamente devido à sua grande competência como caçador e certamente também ao factor sorte.
   Quanto à maneita de caçar e sua influência em termos de perigo, citarei também o famoso caçador G. Rushby, no seu excelente livro "No More the Tusker", que li com interesse: "A diferença entre caçar elefantes machos com bom marfim e caçar elefantes em operações de controlo por conta dos governos é tão grande como o giz é diferente do queijo! (...) Eu diria mesmo que é mais fácil abater dez ou mesmo doze elefantes em operações de controlo do que abater um bom macho (tusker) numa área onde tenham sido permanente e sistematicamente caçados."
   Eu próprio tive também ocasião de verificar que os elefantes, tal como outros animais bravios, reagem agressivamente quando se sentem encurralados ou perseguidos, o que é o mesmo, e por isso sofri algumas cargas violentas. É que eu adquiri o "mau" hábito de perseguir imediata e decididamente qualquer elefante que lograsse fugir-me, por me apanhar o vento ou qualquer outra razão, correndo atrás dele. Nestas alturas eles têm tendência para parar a algumas centenas de metros para se orientarem ou para se "certificarem" da perseguição - não sei a razão ao certo - e eu aproveitava para atirar rápido e com êxito. Mas esta táctica custou-me alguns momentos de grande perigo porque quando voltavam para trás e carregavam faziam-no com fúria diabólica! É que nem os elefantes gostam de ser perseguidos.
   Nesta linha de pensamento, e dentro dos factores subjectivos a que me referi, também não nos podemos admirar e até teremos de aceitar com respeito se um caçador norte-americano afirmar que, para ele, o grande urso castanho (brown bear, Ursus-Arctos) é o animal mais perigoso.
    Posto isto, vamos enumerar diversas opiniões que alguns mestres caçadores nos legaram e que, pelo facto de serem diferentes, não deixam de ser autênticas e de merecer o nosso maior respeito até pelo facto de serem o fruto das suas inigualáveis experiências. Elas mostram bem a diversidade de situações que o caçador de caça grossa encontra - porque as procura - na sua vida aventurosa cheia de perigos imprevistos.
   Eis algumas dessas opiniões, vindas ainda dum passado recente, cada uma delas justificada por motivos que desconhecemos em pormenor, mas que nem por isso deixam de ter as suas razões: J. Hunter é de opinião que o animal mais perigoso dos cinco animais é o leão; Karamojo Bell, o leão; Selous, o leão; Stevenson Hamilton, o leopardo; W. Philips, o leopardo; Neumann, o elefante; H. L. Duke, o elefante; João Domingos, o elefante; B. Kinlok, o búfalo, William Judd, o búfalo.
   Desconheço qualquer opinião acerca do rinoceronte e eu não tenho nenhuma experiência de caça com estes animais. No entanto sei, por tradição, que é um animal relativamente fácil de caçar e pouco perigoso - para caçadores experimentados, evidentemente - dada a sua conhecida falta de tacto nas goradas tentativas de agressão.
   Mas de um modo geral, e segundo o que fui observando e lendo ao longo dos anos, a opinião mais defendida é a de que o leão é, sem dúvida, o animal mais perigoso para o caçador. E desde que se parta do princípio que ele é caçado por processos clássicos e em igualdade de circunstâncias com os restantes quatro do grupo, essa é também a minha opinião.
   Mas, repito, essa classificação só poderá ser considerada válida se se verificarem no seu abate as mesmas condições em que se abatem os outros animais, ou seja, a procura, perseguição, aproximação e abate, com os pés bem assentes no solo e em pura obediência ao consagrado trinómio da caça: Caçador, Arma e Animal Selvagem! Porque se o leão for caçado como é usual na prática turística, isto é, o velho, cómodo e inestético truque da armadilha com isca morta ou viva, e o abate feito de palanque (plataforma) ou de qualquer outra posição cómoda ou mais ou menos segura, então o leão (e nas mesmas condições o leopardo) deixa de ser um animal perigoso!
   Ora, é nas condições clássicas que o leão se transforma no mais perigoso dos cinco mais perigosos, porque a sua agressividade gera um perigo activo. Ele carrega o caçador não só para se defender mas também por estar anatómica e naturalmente talhado e apetrechado para o ataque e morte do adversário. Para isso possui em quantidade e qualidade todos os requisitos necessários: um poder físico incalculável - o leão, tanto quanto me foi dado observar, possui uma força superior à de dez homens; grande elasticidade e velocidade na deslocação, com movimentos e botes rapidíssimos de autêntico felino; armas poderosas de ataque para agarrar, segurar, rasgar e asfixiar as vítimas. Se juntarmos a estes atributos extraordinários uma coragem desmedida, não teremos qualquer dúvida de que ele é o mais perigoso da selva africana. Principalmente se acrescentarmos ainda a dificuldade extrema para o caçador em o atingir mortalmente na carga - sobretudo no salto final - em zonas essenciais ou imediatamente vitais, que são muito difíceis de atingir, para o abater ou mesmo parar. Não conheço nenhum caso em que o leão tenha voltado as costas ao caçador uma vez iniciado o ataque, o que acontece, por exemplo, com o elefante e o rinoceronte.
   O seu ataque fulminante provoca no caçador uma grande carga emocional. É um combate de morte e, por isso, um dos contendores deve morrer!
   O facto de o leão ter por vezes atitudes de estranha covardia, esta nunca se verifica durante o ataque, porque ele é um animal especialmente apetrechado para atacar. Isso só acontece em situações de encontro casual ou perante acontecimentos estranhos ou bizarros, não programados no seu cérebro obtuso e em que não chegam a entrar em actividade as suas características agressivas de matador nato. Avaliar portanto esses actos de aparente covardia pêlos nossos próprios valores, é laborar num erro vulgar.
   No entanto, quando afirmo conscientemente que o leão é o animal mais perigoso, não deixo de pensar no elefante com todo o respeito que me infunde, até porque eu fui e sou um caçador de elefantes apaixonado. Apaixonado pela caça e por este magnífico adversário que, sem sombra de dúvida, considero o verdadeiro rei dos animais selvagens: o elefante!
   E a questão que imediatamente se põe é esta: em termos estatísticos, o animal selvagem que mais caçadores matou, até hoje, é o elefante. Esse recorde ninguém lhe pode tirar. Somente na zona sul de Moçambique, onde cacei (menos de metade do país), e tanto quanto tenho conhecimento, os elefantes mataram dez caçadores, alguns deles verdadeiros mestres na arte, e isto no espaço de trinta e cinco anos!
   Mas a razão deste número também é evidentemente natural.  Desde sempre, mais caçadores se dedicaram à caça do elefante do que à caça do leão. Este, salvo raras excepções, ou é procurado por poucos caçadores interessados na emoção de conquistar um trofeu tão valioso, ou é e foi caçado por razões de manutenção do equilíbrio ecológico ou de defesa das populações.     Além disso, não nos poderemos alhear de um facto importante: é que o leão não tem nem a carne nem o marfim do elefante.
   Surge-nos então, e apesar do exposto, o elefante depois do leão em termos de perigo que representa para o caçador. Porque apesar dos muitos atributos físicos deste magnífico animal, há de facto um factor relevante que o coloca em segundo plano em relação ao leão. É que, sendo um animal de grandíssimo porte, ele apresenta ao caçador um alvo mais visível, não propriamente para a específica colocação do tiro, mas sim porque a enorme corpulência o denuncia constantemente, até os ruídos inevitáveis que produz, nos matos fechados onde se protege.
   Isto representa uma grande vantagem para o caçador, que o persegue facilmente pelo rasto muito marcado, permitindo-lhe aproximar-se e detectá--lo com relativa facilidade para o abater.      Do mesmo modo, quando ataca o caçador, a sua aproximação, apesar de rápida e brutal, é denunciada pelo seu tamanho mastodôntico e pêlos ruídos que produz. E se é que este aparato pode causar uma grande emoção no caçador, também é certo que apresenta em alvo bem visível para atingir.
   Em contrapartida, o leão desloca-se e esgueira-se silenciosamente, por vezes em terrenos onde o seu rasto é completamente invisível, o que provoca no caçador que o persegue ou procura tensões muito fortes. E quando ataca, a sua aparição é quase sempre fulminante e o seu aspecto aterrador é o de uma autêntica máquina de matar.
   Esta é sem dúvida a grande diferença entre estes dois adversários de respeito, porque, a partir daqui, a dificuldade de colocação de um tiro certeiro num ponto vital é equivalente. O leão, embora seja vulnerável à penetração de qualquer projéctil, sem necessitar de possuir grande potência balística, tem porém os pontos vitais muito pequenos - o coração não pesa mais de um quilo e o cérebro ainda menos. Há ainda a coluna vertebral que é extremamente difícil de atingir, especialmente de frente. Pode facilmente avaliar-se o grau de dificuldade em atingir esses órgãos num animal que se move a grande velocidade e é a imagem pura da maior e mais feroz brutalidade!
   O elefante tem os órgãos protegidos por grandes camadas de pele, músculos e ossos que tornam difíceis e até erráticas as trajectórias dos projécteis. É relativamente fácil atingir os pontos vitais do elefante quando se encontra em terrenos mais ou menos abertos, desde que se conheçam bem os pontos de referência exteriores: o tiro ao cérebro é fulminante; o tiro de coluna e de ombro inutilizam-no imediatamente para o ataque ou para a fuga; e o tiro de coração permite-lhe ainda uma fuga precipitada que em regra não excede os vinte a quarenta metros, mas, excepcionalmente, pode ir até aos cem.
   Mas quando o encontro se dá perto e em matos muito cerrados - as distâncias nestes casos são tão críticas que, por vezes, não excedem os cinco metros! - as dificuldades aumentam muito porque os pontos de referência exteriores nem sempre se encontram ao alcance do caçador que não se pode movimentar sem denunciar a sua presença. Neste caso, torna-se quase impossível atingir os órgãos vitais sem que o projéctil tenha de atravessar um longo percurso e se perca pelo caminho ou seja mesmo desviado por ossos fortíssimos, o que decerto pode gerar situações perigosas, pois os elefantes suportam grande número de tiros mal colocados e não caem com o peso do chumbo.
   Então o elefante ou foge, e isto acontece em cerca de oitenta por cento dos casos, ou carrega o caçador, que, encontrando-se tão perto, vê as suas possibilidades de escapar serem reduzidas a zero.
   Há aqui que referenciar um caso que acontece com os elefantes que não é fácil acontecer com os leões. É o caçador ser atacado e por vezes morto por outro elefante que estava ao lado e com o qual o caçador não contava. Isto aconteceu tantas vezes que se tornou uma regra.
   O elefante quando ataca o caçador é um animal irado. A aparente mansidão do paquiderme majestoso e bonacheirão transfigura-se em ódio e rancor diabólicos. Sobretudo os machos na meia-idade (mapfônguès), que chegam a atingir as raias do "fanatismo" com que procuram e esmagam ou despedaçam o inimigo. Eu tive a trágica oportunidade de ver duas vítimas dessa sanha assassina e, para ser breve, direi apenas que não tinham nada de parecido com formas humanas.
   Há casos conhecidos de caçadores que conseguiram salvar-se já depois de terem sido apanhados no primeiro embate, mas são raros e só acontecem porque, por um golpe de sorte, saíram, por momentos, fora do alcance da vista e do olfato do elefante e, sem estes dois sentidos fundamentais, ele torna-se quase impotente no ataque. Mas estas são as excepções.
   Esta situação é, no entanto, difícil de acontecer com os leões.
Por isso, ponderados todos estes factores que determinam o grau de pe-riculosidade imposto por estes dois gigantes da selva africana ao caçador, que os enfrenta em igualdade de circunstâncias, não me restam dúvidas em considerar o leão mais perigoso do que o elefante.
   Agora, e partindo do princípio que o rinoceronte ocupará o último lugar da lista dos cinco mais perigosos, restam-nos esses extraordinários adversários, o búfalo e o leopardo. E aqui vamos encontrar uma situação semelhante à que descrevemos atrás para o elefante e o leão, só que numa escala mais reduzida.
O búfalo, um herbívoro de grande corpulência e força imensa e ainda de um temperamento irascível; e o leopardo, esse "magnífico patife" como lhe chamou Henrique Galvão, com a sua agilidade felina, a beleza e o mimetismo imcomparáveis da pele e a elasticidade das formas, que é, de longe, o detentor do temperamento mais tortuoso e cruel, pois é também o único que mata pelos simples acto de matar.
   No caso de Moçambique, que conheço melhor, o búfalo fez o maior número de mortes entre caçadores depois do elefante. Não tenho dúvida em considerá-lo o mais perigoso a seguir ao elefante, não só devido a esse palmares mas também e principalmente pelas suas qualidades de lutador corajoso e possuidor de grandes manhas a rondar uma certa "inteligência".
   Ele "sabe" quando deve atacar e quando deve fugir. Quando foge, sendo um animal que se cansa com facilidade e que tem uma propensão nata para se deitar e descansar, esconde-se com incrível habilidade para se proteger em matos muito fechados, numa sombra de um arbusto ou detrás de uma pequena palmeira!
    O facto de se esconder quase sempre fora do trilho, não o atribuo a um acto de inteligência, pois isso implicaria um certo discernimento abstracto ou uma atitude mental imprópria de animais irracionais, mas sim ao hábito de procurar um abrigo à sua dimensão para se proteger, quase sempre deitado. E é assim que os caçadores morrem, quando incautamente o perseguem sem se rodear dos cuidados necessários e se aproximam descuidadamente, não imaginando que tal corpulência se possa esconder tão facilmente. A carga é invitável porque o búfalo não vira a cara ao inimigo e esta é produzida por um grande poder físico e uma coragem e fúria incalculáveis. A sua atitude é a de um animal encurralado que defende a vida. Nestes casos, as suas potencialidades são sempre elevadas ao extremo das suas forças.
   Um dos meus pisteiros, grande caçador e conhecedor das coisas da selva, sofreu uma carga perigosíssima de uma fêmea que o escorneou, pisou e mordeu com fúria desalmada e só o largou, já quase morto, porque a sua cria ficou para trás da manada em fuga, berrando pela mãe desvelada, que logo acorreu ao chamamento. Isto com imaginável alívio do meu amigo, que ficou hospitalizado durante três meses.
   Como quase todos os herbívoros, quando se sentem feridos, encurralados ou defendem a vida, geram uma agressividade que contrasta com a sua normal atitude pacífica. E quando essa agressividade tem por detrás dela um búfalo com cerca de novecentos quilos de peso e muito mau génio, só um tiro bem colocado na zona do cérebro, no pescoço ou na coluna vertebral o detém. Mas isso não é tão fácil como descrevê-lo...
   E, como se não bastassem estes factos, acontece ainda que ele tem sido objecto de caça por parte de caçadores inexperientes e leigos que, não vendo nele o tamanho do elefante ou a ferocidade do leão, se atrevem a caçá--lo e a persegui-lo sem estarem preparados para tal tarefa.
   Quanto ao leopardo, repete-se aqui a mesma situação atribuída ao leão, salvo as devidas proporções. Felizmente para os caçadores que o leopardo é um animal esquivo e de hábitos nocturnos e portanto pouco caçado na quelas condições clássicas a que já nos referimos. Desde que se pratica em grande escala a caça turística, ele é quase que exclusivamente caçado de espera com isca morta, o que diminui drasticamente o perigo para o caçador.
   Noutras condições, isto é, em situação de procura, perseguição e ataque por parte do caçador, seria um adversário temível. Ele é extremamente feroz, rapidíssimo, disfarçado e, - tal como o leão - dispõe de armas de ataque poderosas que podem causar ao homem, ou qualquer outra vítima, ferimentos terríveis e de difícil reparação, quando não causam a morte imediata.
Tive ocasião de socorrer um caçador negro que incautamente se arriscou, ao pretender matar um leopardo com uma lança, quando este se encontrava preso numa armadilha de aço.  Aparentemente estava bem seguro e numa atitude passiva de vencido. Mas no momento oportuno lançou-se sobre o caçador que se aproximou demasiado - e aqui temos um caso dum animal encurralado - e, embora ainda preso à armadilha, causou-lhe ferimentos gravíssimos de que resultou a morte em pouco tempo.    A minha ajuda tardia de pouco lhe valeu.
   No entanto, e esta é uma ocorrência que pode marcar a diferença entre as potencialidades dum leopardo e dum leão, ele foi morto instantaneamente por um companheiro do caçador, já bastante idoso, que lhe cravou, de um só golpe, a sua machadinha afiadíssima no crânio! Esta verdadeira façanha, que revela uma coragem notável, teria talvez sido impossível se se tratasse de um leão, maior, mais poderoso e mais difícil de atingir, até pelo medo e respeito que irradia.
    Este episódio demonstra que a sua pequena corpulência e grande vulnerabilidade a armas de fraca potência permite ao caçador o uso de armas de chumbo (caçadeiras) com cargas poderosas de chumbo grosso de efeito letal, com poder de fogo e bastante mobilidade para o tiro rápido e eficiente a curta distância, o que na realidade reduz o perigo desse "magnífico patife".
   Portanto, em minha opinião, ele representa para o caçador um perigo menor do que os poderosos leões, elefantes e búfalos.
E assim temos por último o rinoceronte, esse eterno, estranho e trágico indivíduo, que parece ter emergido doutras eras e que tem todas as condições para ser uma fera perigosíssima pelo seu poder físico, poderosa arma de ataque, e irascibilidade. No entanto, tudo isso perde sentido e valor pela sua falta de tino e louca intempestividade. Tão depressa ataca tudo e todos, sem intenção definida, como se desinteressa pelo adversário num alheamento incompreensível de verdadeiro neurasténico! Por isso ele constitui um alvo fácil para o caçador experimentado e infelizmente também para matadores furtivos que o têm dizimado quase até à extinção!
    Conhecida então a anatomia do perigo que os animais silvestres representam para o caçador, vamos tratar desse elemento tão importante que lhe pode dar origem, mas que também o pode esconjurar: o tiro.
   O tiro é de facto o acto culminante e decisivo da caçada, e é, indubitavelmente, o elemento que na caça grossa e perigosa, ao mesmo tempo que dispara um projéctil mortífero sobre o animal, pode disparar e activar nele uma forte reacção e o ataque. O tiro estabelece como que uma ponte entre o homem-caçador e o animal selvagem e por isso é que as suas possíveis e necessárias virtualidades têm de merecer todo o cuidado da parte do caçador, mas têm também de estar em relação com as potencialidades do animal caçado. Não se atira a um poderoso elefante com um projéctil leve e expansivo, assim como não se atira a um leopardo ardiloso ou a um javali esquivo com um projéctil sólido e pesado. Ora, é nessa relação que residem as tais virtualidades a que me refiro.
   Temos de arrumar as diferentes situações que o caçador vai encontrar nas suas lides com a caça. Os animais perigosos podem oferecer uma certa gama de resistências relacionadas com a sua corpulência e poder físico: pequena, média e grande corpulência; maior ou menor rapidez de movimentação e de acção agressiva; maior ou menor visualização no momento do tiro e diferenças de atitude perante o caçador: a atitude passiva, activa e agressiva.
   No caso de atitude passiva, o animal encontra-se imóvel e indiferente à presença do homem; no segundo caso, será o estado de actividade causado pelo instinto de defesa provocado por essa presença; no terceiro, o animal entra em estado de reacção contra a presença temida do homem, ou em resultado de ferimentos sofridos, e dá-se o ataque.
   Nesta altura gostaria de salientar que, sendo o tiro o elemento mais importante da caçada, para a sua consumação e remate, a minha experiência neste campo, cimentada pelo contacto com centenas de caçadores, ensinou--me que é exactamente o tiro o elemento mais desprezado pela sua maioria. Há uma tendência perniciosa por parte dos caçadores para endossar à arma toda a responsabilidade na conquista do trofeu que tanto custou a encontrar, em termos de esforço físico e em termos de economia.    Contudo, muito pouca atenção é dedicada aos requisitos necessários para que o tiro se torne eficaz.
A propósito lembro-me dum caso passado com um caçador que, durante uma montaria a que assisti, me veio pedir opinião sobre a sua arma, aliás de óptima qualidade e equipada com uma excelente mira telescópica. Era notório e justificado o seu orgulho por tão bela peça. Claro está que, para além da sua qualidade, a minha apreciação se focalizou logo no elemento mais importante e fundamental: "A mira está certeira e afinada?" - perguntei. A resposta, como eu já esperava, foi concludente "Acho que sim..." Mas como eu não me fio em suposições, fui inspeccionar o alinhamento pela alma do cano e o desvio da mira era considerável e bem visível! E isto só poderia ter um fim. Um retumbante falhanço, a perda provável de um trofeu e, depois, uma história mal contada.
   Outros caçadores, além de não se interessarem pela técnica do tiro, à última hora resolvem experimentar uma arma nova e com a qual não estão habituados, numa caçada que certamente custou bom dinheiro, e aquela história repete-se. E isto traz-me à memória também a história dum caçador que um dia resolveu oferecer uma caçadeira de boa marca e de categoria consagrada a um velho quinteiro que o tinha ensinado a caçar quando ainda era um "menino". Quando lhe gabou, com grandes encómios, as virtudes daquela arma de luxo, e isto a um caçador que toda a sua vida caçara com uma espingarda de pólvora negra e com a qual sempre se revelou um exímio atirador, este perguntou-lhe: "Mas olhe lá, menino, com esta também é preciso apontar?"
   A qualidade do armamento é certamente de grande importância, mas o mais importante ainda - cá está o tiro como fulcro da questão - é saber atirar com a "nossa" arma; é conhecê-la, "falar" com ela e senti-la! Eu chego a ter a sensação - absurda, está claro - de que as "nossas" armas são sensíveis a estes contactos. É que esse efeito reflecte-se em nós, na nossa aceitação, o quase afecto com que lhes pegamos e sentimos o seu palpitar. Por isso, no momento do tiro, o caçador e arma devem formar um só corpo. A arma deve ser como que o prolongamento dos seus músculos e do seu tacto e, principalmente, o seu manuseamento, em todas as circunstâncias, deve obedecer a um ritmo constante.
   E aqui vamos falar de ritmo. Já afirmei algures que, ao longo das minhas experiências, aprendi que na caça grossa e perigosa, e em momentos de aperto ou de perigo, as armas parecem ser também afectadas pelas nossas aflições e, porque não dizê-lo, pelos nossos medos. É que acontece, por vezes, e nestes momentos, as armas encravarem ou não extraírem os cartuchos, ou até não os admitir. Costuma dizer-se, e é verdade, que a máquina tem sempre razão e esta máxima pode adaptar-se a este caso, porque a arma não passa de uma máquina ou ferramenta, como a câmara dum fotógrafo ou o cinzel do escultor. No entanto, as causas deste comportamento são simples e baseiam-se quase sempre na falta ou na mudança de ritmo do atirador, quer por falta de treino e de hábito ou por nervosismo, o que tem as mesmas consequências.
   Então, o que é o ritmo?
   Este ritmo a que me refiro será a cadência dos movimentos que efectuamos com uma arma de fogo, quer a estejamos a utilizar ou não. Por outras palavras, será a ausência de acções precipitadas, gestos nervosos ou atrapalhações, que são tão comuns nos momentos de emoção.
   Tenho observado muitas pessoas, incluindo jovens e mesmo crianças, quando pegam numa arma de fogo, e alguns, pela primeira vez, fazem-no de maneira mais ou menos correcta, isto é, com o cano sempre virado para a frente, como se fossem fazer fogo, e com as mãos nos lugares próprios, num acto de pura intuição! Só uma vez observei um caso singular de um jovem que, ao pegar numa arma de pequeno calibre pela primeira vez, para fazer fogo, a agarrou desajeitadamente e de "barriga" para o ar!     Mas considero este caso como raro, o que, aliás, só veio confirmar a regra. Na minha opinião, esta regra tem como base uma intuição de natureza atávica que liga o homem às armas, quer sejam de fogo ou não.
   Pois bem, o caçador, porque é caçador e a sua ferramenta é a espingarda, para fazer uso dela deve pegar-lhe de maneira correcta e depois proceder às operações habituais com ordem, decisão e ritmo. Ritmo ou o compasso com que os movimentos distintos devem ser efectuados, sempre do mesmo modo e com os mesmos tempos, já que a ordem é ditada pela lógica das operações. Os movimentos físicos devem ser coordenados com os olhos e com o cérebro. Nada pode ser deixado ao acaso ou à improvisação.
   Isto é importante em muitos outros desportos, mas absolutamente fundamental no tiro de caça.
   A mecanização e memorização requerem anos de treino, paciência e "diálogo" com as nossas armas, com as quais devemos manter uma relação íntima. Esse treino pode ser feito tanto com fogo vivo como em seco, em casa ou no campo, antes, durante e depois das caçadas!... Só assim poderemos proceder com segurança e decisão nos momentos cruciais, perante animais perigosos ou o ambicionado trofeu da nossa vida. Só assim poderemos evitar as azelhices e os esquecimentos nos momentos de apuro que são sempre rápidos e fugazes. E a rapidez não pode servir para desculpar os erros, porque o ritmo também pode ser rápido ou lento sem deixar de ser ritmo.
    Nas revelações sobre a minha vida de caçador procurei sempre dizer não só o que fiz de bem, que foi pouco, como também os erros que cometi. Por isso posso aqui afirmar, sem qualquer rebuço, que foi num momento de grande aflição que perdi o que teria sido o maior trofeu da minha vida, porque a arma se encravou e... a culpa não foi dela!1 Mas infelizmente é assim que se aprende.
    No corolário do que venho tentando dizer registo o caso de um grande atirador americano de tiro aos pratos que me confessou e mostrou os supostos maneirismo que usava - além doutros exercícios - como treino sistemático para conseguir o ritmo e a regularidade necessários àquela especialidade. Todos os dias começava o seu treino, em casa, passeando com três ovos alinhados na mão esquerda como se segurasse o fuste de uma caçadeira, imitando vezes sem conta a posição correcta do tiro, e repetindo incansavelmente os mesmos gestos nos mesmos espaços de tempo. Desta forma conseguiu uma mecanização completa de movimentos sempre iguais. Quando lhe perguntei: "Porquê os ovos?", ele respondeu-me: "É a mesma coisa que pegar numa espingarda." Os seus melhores "scores" eram quatrocentos pratos partidos com quatrotrocentos tiros, em tiro de prancha!
   Não se julgue que pretendo aqui ensinar o "bê-à-bá" do tiro a meninos de coro. Pretendo somente demonstrar que, no caso do tiro de caça, a prática anda muito de mãos dadas com a teoria.
   Estou também habituado a observar pessoas a pegar em armas ou a experimentá-las, e quantas vezes registo atitudes no mínimo ingénuas que nada significam para além de alardearem habilidades que nada têm a ver com o tiro. Como exemplo menciono ainda o caso de alguns caçadores meterem à cara armas de repetição por culatra e fazerem os movimentos de re-carregamento e disparo sem tirar a arma da cara. Isto é, pelo menos, tremendamente incómodo e só para pessoas com os braços compridos... No meu entender, isto é a antítese do que se deve fazer e eu gostava de ver executar esta manobra em frente de um elefante a carregar, de um búfalo, de um leão ou mesmo de um javali no seu habitat natural.
   A expressão tiro é sem dúvida a mais usada na linguagem de atiradores e caçadores. Mas o que é o tiro? Para já há diversas formas de tiro: tiro de treino, de competição e de caça.
   Mas, quando numa vida se fizeram muitas dezenas de milhares de tiros, ele perde um pouco a sua expressão tecnicista para tomar uma expressão mais íntima, mais pessoal e talvez mais interiorizada. Assim, para mim, caçador, o tiro é uma projecção.   Qualquer que seja a natureza do projéctil, do objecto de arremesso ou balístico, ele parte de nós para ir atingir um alvo no qual nós concentramos toda a nossa atenção e os nossos sentidos. Portanto, ele é uma projecção de nós próprios. Em todo e qualquer tiro há um desafio. Seja ele para testarmos as nossas capacidade motoras, para a conquista dum trofeu ou para afastar um perigo e defender a vida, é sempre um desafio. Por isso mesmo não podemos deixar ao acaso, à improvisação ou à sorte a eficiência dos nossos tiros.
   O tiro de caça começa com a visualização mais ou menos intensa do alvo; segue-se o alinhamento das armas e das miras entre os olhos e esse alvo; o contacto com o gatilho e a primeira pressão; a concentração cerebral no alvo; o aumento gradual da pressão do dedo atirador e o tiro parte. E parece que tudo acabou, mas não. A verdadeira projecção ainda continua, pois a melhor técnica do tiro - a que os americanos chamam "calling the shot" - tem agora o seu complemento.
   Muitos atiradores têm a tendência para desviar a arma e as respectivas miras da cara logo após o disparo. Alguns até fecham os olhos no momento de puxar o gatilho e só depois vão verificar se o tiro acertou. Não há nada de mais errado, e neste caso não há projecção.
   Em todos os desportos de arremesso, como o ténis, o golfe, o beisebol, etc., o jogador segue sempre a bola com os olhos em toda a sua trajectória, até atingir o seu destino. No ténis é fácil verificar que a própria raqueta, depois da bater a bola, segue na mesma direcção como se quisesse orientar no seu voo. Ora o mesmo, ou quase, deve ser feito com a arma e os olhos.
   No momento do tiro devemos ter plena consciência do alvo onde vamos projectar a bala, de tal modo que, depois do disparo, saibamos instintivamente onde ela bateu porque continuamos a ver o mesmo quadro onde a projectámos. Esta técnica torna-se mais fácil de aprender se praticarmos bastante com a arma descarregada, e esse treino pode ser feito em casa. Será mais fácil depois, com fogo real, corrigir o desvio provocado pelo ressalto da arma e voltarmos a visualizar o quadro e sabermos quase com exactidão a colocação do tiro.
    É vulgar ouvir dizer a um atirador experimentado: "O tiro foi um pouco alto", ou qualquer outra afirmação, antes de verificar o alvo, o que demonstra ter ele o sentido da projecção.
   É a isto que se chama a projecção do tiro.
   No tiro de caça há ainda uma particularidade que pouco tem a ver com a sua técnica, mas que nem por isso deixa de ser absolutamente fundamental. Depois de passarmos por todo o tratamento que ficou para trás, vem a decisão final - é o puxar do gatilho - e que depende inteiramente do conhecimento que o caçador possa ter do animal visado e respectivo enquadramento, e bem assim da sua própria capacidade de decisão e velocidade de reflexos. Em resumo, esta será a parte mental do tiro e que se corporiza na expressão: o momento do tiro.
    Se a caça fosse fácil, se ela pudesse ser transistorizada ou coisa parecida, certamente que já não havia caça nem sequer caçadores. Mas, felizmente, assim não é. Pelo contrário, a caça é cada vez mais difícil.
   Depois de reunidas todas as condições para caçar, desde a vocação do indivíduo à aquisição do armamento e técnica do seu uso, ainda é o próprio indivíduo que é chamado a desempenhar o papel mais difícil: saber atirar, na altura própria e no lugar próprio. Mas isso também não é fácil.
   O atirador olímpico cria o seu próprio momento de tiro: descansa, relaxa, abstem-se de tudo o que o rodeia; pode sentar-se e ler até um trecho agradável; levanta-se e, com o ritmo há muito memorizado, pega na arma, olha atentamente o alvo, aponta lentamente a arma e inicia a pressão sobre o gatilho; projecta-se no alvo e... o tiro parte.
O jogador de golfe relaxa os músculos, olha o horizonte sem o ver, escolhe o taco, compõe a bola, limpa o terreno; coloca-se em posição, fixa os pés e integra-se totalmente no ritmo dos movimentos já mecanizados; mede as distâncias e, rodando sempre do mesmo modo e utilizando os mesmos músculos, bate a bola e projecta-se no seu trajecto até ao fim.
    E eles podem repetir a cena quantas vezes quiserem. O caçador, não!
   O momento tão desejado chegou! O animal aí está. As condições de enquadramento são, como quase sempre, as piores: muita vegetação, pouca visibilidade e o animal bravio, esquivo e rápido que pode ainda apresentar--se numa das três atitudes possíveis, passiva, activa ou agressiva.
   O caçador tem de rapidamente mentalizar todas as condições que se lhe apresentam, compará-las com as possibilidades ao seu alcance e, depois dessa avaliação, a sua capacidade de decisão entra em funcionamento sobre se deve ou não atirar, fazendo uso de toda a dinâmica estudada. E aqui reside o grande problema.   Ele pode precipitar-se, atirar cedo de mais e falhar ou ferir mal e desnecessariamente o animal. Ou esperar por melhores condições e acabar por perder irremediavelmente aquela oportunidade por que tanto esperou e que talvez não volte a repetir-se.
   Estas situações são difíceis? Sem dúvida, mas poderão vir a ser melhor ultrapassadas se o caçador estiver bem munido de armamento e treino adequados. E este é o momento do tiro.
   Mas o tiro está feito, com bom ritmo, uma boa projecção e um momento de tiro bem sucedido. Então vamos concentrar a nossa atenção no projéctil que, efectuada a sua trajectória de voo, vai transmitir ao animal a sua energia cinética e a sua própria quantidade de movimento.
   O projéctil ou bala é um objecto de arremesso. É aquele que se projecta. Neste caso vamos falar dum projéctil para o tiro desportivo.
   Genericamente há duas espécies de projécteis: sólido ou blindado e expansivo e isto quanto à sua estrutura física.
   Quanto ao seu comportamento no alvo, teremos: projécteis de efeito perfurante, de efeito derrubante e de efeito letal.
   O projéctil sólido é usado para abater animais de grande porte dotados de peles grossas e de grandes massas musculares e ósseas que têm de ser atravessadas para se poder atingir os pontos vitais. Normalmente mantém a sua estrutura intacta e raramente se deforma e, por isso, produz ferimentos muito regulares. É construído com blindagens exteriores feitas de metais dú-teis mas tenazes, que envolvem e protegem o seu núcleo de chumbo mais ou menos moles. Em regra é completamente fechado à frente e aberto na parte posterior.  Modernamente está a adoptar-se a sua construção monolítica com metais dúteis, como o latão e o cobre.
    Os projécteis sólidos, porque produzem ferimentos regulares, têm um efeito pouco letal, a não ser que atinjam zonas vitais ou essenciais, como o cérebro, o coração, a coluna dorsal ou os grandes vasos.
   O seu comportamento pode ainda tomar a forma de perfurante ou derru-bante.
   O efeito perfurante é obtido por projécteis com um bom coeficiente balístico e de grande densidade seccional, isto é, com um elevado peso em relação ao pequeno diâmetro e animados de grande velocidade. Podemos partir do princípio que o projéctil com maior densidade seccional e coeficiente balístico, e consequentemente de maior poder perfurante, é a seta. Do mesmo modo o projéctil de coeficiente balístico zero será a esfera.
   Qualquer que seja a velocidade e energia cinética, a sua utilização só se justifica quando é necessário obter uma grande penetração com um mínimo de destruição física. Neste caso, o efeito derrubante é diminuto porque a sua energia será gasta ou dessiminada ao longo e durante o seu percurso no corpo do animal. Pode afirmar-se até que quanto maior for este percurso menor será o seu efeito derrubante, até porque a última metade desse percurso se efectua a velocidades muito reduzidas que, como é óbvio, culminam em zero. Neste último caso, portanto, o seu efeito de choque pode considerar-se desprezível.
    O efeito derrubante dum projéctil sólido (e neste caso também o expansivo) é a faculdade que ele tem de transmitir a um corpo uma grande quantidade de energia, e quantidade de movimento, no mais curto espaço de tempo possível. Este efeito obtém-se com projécteis pesados e de grande calibre e velocidade, porque a eles corresponde uma maior resistência dos tecidos vivos.
    O efeito letal é mais produzido pelos projécteis expansivos que causam grandes destruições no corpo do animal, pela aplicação quase instantânea da energia, ao transformarem a sua forma fusiforme numa forma mais rotunda e mais larga. O túnel ou cavidade que produzem é muito irregular, com possíveis desvios na trajectória inicial. As zonas hemorrágicas são de grande amplitude e muito marcadas, como resultado de um grande choque hidráulico.
    Os projécteis expansivos são fabricados com a mesma forma ogival e aerodinâmica dos sólidos. São igualmente construídos com blindagens feitas de metais dúcteis, mas fechados na parte posterior e abertos à frente, para permitirem a sua roptura no momento do impacto. Estas blindagens, conforme o efeito que se pretende obter, são mais ou menos espessas, de espessura descontínua, interrompida, estriada e com maior ou menor abertura à frente, de modo a obter diferentes graus de expansão.    As suas características técnicas são diversas, com formas e designações comerciais próprias: Ponta-de-Chumbo, Silver Tip, Ponta-de-Bronze, Torpedo, H. Mantel, Cap-ped-Bullet, Power Point, Partition Bullet, etc.
   Todas estas soluções têm uma finalidade específica com vista ao tipo de caça a que se destinam e, assim, podem ser de acção rápida, acção controlada ou acção retardada.
   No entanto, o seu coeficiente balístico deve sempre aproximar-se do ideal para anular a resistência do ar. Pode afirmar-se mesmo que ele é um projéctil de efeito perfurante, enquanto atravessa as camadas de ar, no seu voo para o alvo.
   Porém, quando atinge o alvo, esse coeficiente é reduzido a zero, transformando-se num projéctil de secção muito larga, em forma de cogumelo, de modo a travar a penetração no corpo do animal atingido e a provocar-Ihe uma morte rápida, por um maior efeito letal.
   Por último, e para melhor compreendermos esta dinâmica de efeitos perfurante, derrubante e letal, vamos recorrer a um termo um pouco prosaico e de significado mais simplista que é o "empurrão" que o projéctil transmite ao alvo. A relação entre este "empurrão" e a secção maior ou menor do projéctil, podemos extraí-la da seguinte experiência prática: coloca-se um alfinete sobre a palma da mão, com o bico para baixo e um peso de cerca de um quilo sobre a sua cabeça; certamente que o alfinete enterrar-se-á na mão. Vira-se o alfinete de cabeça para baixo e o mesmo peso sobre o bico. A pressão será grande, mas o alfinete não espeta! Guardadas as devidas proporções, a semelhança será notável.
   E aqui surge-nos um novo factor que é a energia.
   Para lançar um corpo no espaço, com um determinado peso e uma determinada velocidade, é necessário produzir uma equivalente quantidade de energia ou trabalho. Deixemos por ora essa tarefa aos gases e ao calor gerados pelas pólvoras nas armas de fogo, que é o nosso caso. Logicamente, esse corpo lançado em movimento, se encontrar um obstáculo, transmite-
Ihe toda a energia acumulada menos a quantidade gasta no trajecto pela resistência do ar, até ao ponto de encontro. Por isso, a sua energia e consequente velocidade, a cem metros - por exemplo -, não é igual à energia verificada à saída da boca do cano, o que origina, para já, sérias alterações no comportamento das balas expansivas, que expandem mais ou menos conforme a maior ou menor velocidade.
   Esta transmissão de energia ao alvo gera um efeito resultante a que chamaremos de choque.
   O choque que se verifica num animal vivo, quando atingido por uma bala animada por uma grande energia, será o conjunto de alterações verificadas no seu equilíbrio fisiológico. Estas alterações poderão produzir a morte imediata do animal ou ferimentos graves que o podem inutilizar para acções futuras.
   Este choque pode tomar duas acções distintas: choque hidráulico e choque de percussão.
   O primeiro é o resultado das variações de pressão hidráulica dos líquidos orgânicos, produzidas pela penetração violenta do projéctil nos tecidos do animal. Sabendo que os líquidos são incompressíveis, pode compreender-
-se a pressão que estes exercem nas paredes dos vasos sanguíneos, nos tecidos e nos nervos, causando grandes hemorragias e traumatismos físicos. O segundo é o resultado das variações de estado dos tecidos vivos e dos ossos, pela concussão violenta recebida directamente do projéctil e, portanto, pela absorção rápida da sua quantidade de movimento.     Esta concussão produz vibrações de altíssima frequência que, para além de provocarem a inutilização física dos órgãos atingidos, afectam ainda o sistema nervoso.
   Para melhor compreendermos a dinâmica destes fenómenos teremos de partir do princípio que a propagação das ondas de pressão na água se efectua à razão de 1500 metros por segundo.     Ora, como os tecidos vivos são compostos por mais de 70% de água, é lógico que se aplique aqui o mesmo princípio.
   Vamos também estabelecer que uma bala expansiva ou de um grande poder derrubante faz um percurso médio, no corpo dum animal selvagem, de cerca de 50 centímetros. As ondas de pressão hidráulica e de percursão que ela provoca, deslocando-se àquela velocidade de 1500 m/s, propagar-se-ão aos tecidos vivos envolventes num curtíssimo e aproximado estado de tempo de três décimas miléssimas de segundo!
   Esta dimensão, embora inimaginável para a nossa percepção obectiva, pode-nos levar a calcular o violento traumatismo físico que aqueles tecidos vivos sofrem quando são deslocados do seu estado de repouso a uma velocidade elevadíssima. O mesmo poder-se-á dizer dos líquidos orgânicos projectados a esta velocidade através dos vasos sanguíneos e para fora deles.
   Como termo de comparação, e baseando-nos em conhecidos acidentes pessoais, sabe-se que qualquer ser vivo pode sucumbir a um choque com um corpo sólido a velocidades superiores a 40 km/h. Ora esta velocidade corresponde mais ou menos à velocidade de corrida do homem e é infinitamente inferior a 1500 m/s.
   Como consequência, e para finalizar e compreender melhor os exemplos esquemáticos que seguem, uma bala animada de grande velocidade ao penetrar no corpo dum animal produz duas espécies de ferimentos: um rasgo ou ferimento definitivo como resultado da sua penetração nos tecidos; e uma cavidade momentânea periférica e de maiores dimensões, que logo se fecha e é produzida pelas ondas de pressão. A primeira reconhece-se por um túnel ou perfuração mais ou menos regular; a segunda pela zona hemorrágica envolvente como marca de grande destruição física. Fig. l a 5, alíneas a), b) e c).

Edição de 1994

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