A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



JOSÉ C. PARDAL



HIENAS E LEÕES



   Certa vez, caçava numa região de chanato, onde as florestas densas formadas por árvores altas e frondosas alternavam com zonas de chanato arbustivo que, certamente devido à pobreza dos solos, não crescia mais do que um a dois metros, com algumas árvores raquíticas aqui e acolá. E estas estendiam-se por quilómetros e quilómetros infindáveis, onde a paisagem era sempre igual e triste, sem nada que pudesse servir de referência.
   Por isso, nas nossas longas caminhadas, durante muitas horas de marcha dura, tínhamos o cuidado de marcar o caminho, ou arrastando um pau para assinalar a nossa passagem, ou fazendo um corte nas árvores, quando as havia, ou ainda partindo pequenos ramos que deixávamos no chão, sempre virados para a frente.
   Estas matas arbustivas tinham para nós uma vantagem. Sempre que encontrávamos uma árvore mais alta, um de nós trepava ao topo e, com o auxílio de um óculo ou mesmo a olho nu, perscrutávamos o horizonte em busca dos elefantes.
   Deste modo podíamos descortinar os seus lombos sobressaindo no mar da folhagem, ou sinais de poeira originados pelos jactos de terra que costumam lançar sobre o lombo para se desfazerem dos parasitas. De qualquer modo, isto requeria sempre boa vista e muita prática.
   Naquele dia, depois de termos percorrido uns bons quilómetros sem ter encontrado um único rasto fresco, o Jimo trepou a uma das tais árvores e, encavalitando-se lá no alto, vi-o colocar as mãos em jeito de pala sobre os olhos e inspeccionar a imensidão do mato à nossa volta.
   De repente, o movimento da sua cabeça parou e fixou-se numa certa direcção, durante quase um minuto, como se quisesse certificar-se de qualquer coisa. A nossa curiosidade transformou-se em esperança e, não resistindo mais, perguntei: "Chine?" (O que é?) E, sem desviar os olhos do ponto de interesse, respondeu: "Macôte" (Abutres). "Cuela, patrão, buissa mafaceté-le" (Sobe, patrão, e traz o óculo). Retirei o óculo da .300 HH Mag. e lá trepei pela árvore acima, o que nem era difícil, e assestei o óculo na direcção indicada.
   Ao longe, a uns dois quilómetros, via-se uma mancha escura no topo de um grupo de árvores altas. Não havia dúvida de que se tratava dum numeroso bando de abutres, pousados no topo das árvores, gozando as delícias do sol e, no ar, outros volteavam sem cessar. Era mais que evidente que ali havia caça morta e tínhamos de ir indagar. Em meia hora estaríamos lá.
   Quando faltavam umas centenas de metros, constatámos que o mato ali era mais rasteiro e muito fechado e as árvores onde pousavam os abutres faziam um pequeno círculo, sem dúvida à volta de uma pequena lagoa seca.
   Este era um cenário que se encontrava muitas vezes, porque as árvores cresciam mais à volta de pequenas depressões onde se acumulavam a água das chuvas.
Faltavam cerca de quinhentos metros e o vento corria para nós e começámos a ser atingidos por umas golfadas de mau cheio, mas um cheiro característico que fez o Jimo parar e fazer um sinal imperativo de grande alarme. Ficámos imóveis e estáticos até porque o cheiro, agora intenso, parecia vir de muito perto, à nossa frente.
   Preparei a arma, ao mesmo tempo que vi o Jimo destravar a .375 dele. Aproximei-me devagar e interroguei-o com os olhos e, como já esperava, respondeu-me com um movimento de lábios: "Tingohnamaü!" (Leões!!!)
   Eu tinha a arma carregada com balas sólidas, o que não era nada próprio para leões e era até perigoso; mas não havia possibilidade de mudar para expansivas sem produzir pequenos ruídos metálicos, que alertariam as feras. Se fosse absolutamente necessário, teria de fazer tiros de cabeça ou de coluna.
   Avancei mais um pouco sem fazer qualquer ruído e senti que alguma coisa se mexia à minha frente. Meti a arma à cara e fiz sinal ao Jimo para atirar com um pau para o sítio, e ele assim fez.
Uma grande restolhada se fez ouvir provocada certamente pelos leões que fugiam por entre o chanato barulhento, deixando no entanto escapar uns grunhidos que não pareciam sair das goelas potentes de um leão!
   Então, mais à frente - eu seguia os movimentos do mato agitado com as miras alinhadas -, passaram, numa pequena clareira, não leões mas sim três grandes hienas que mal podiam correr com o bandulho cheio de carne!
   Bamboleavam-se ridiculamente pelo mato fora, numa corrida grotesca, com o peso das grandes barrigas e soltando pequenos guinchos e, de facto, não se pareciam nada com o rei da selva...
   Está claro que isto foi motivo para nos rirmos a bom rir até para aliviar as tensões que tínhamos acumulado, porque um encontro com leões, naquelas circunstâncias, não é mesmo nenhuma brincadeira. No entanto, procurámos não fazer barulho porque não sabíamos o que se passava lá mais à frente.
   Esquecemos de vez o incidente e trepei a uma pequena árvore que estava ali à mão e pude então confirmar que se tratava de um elefante morto e, tanto quanto podia ver, ainda tinha os dentes.
   Retomámos a marcha com as cautelas devidas, pois podíamos ainda encontrar outras surpresas e percorremos uns trezentos metros, quando voltámos a sentir um movimento desusado à nossa frente, mas não lhe atribuímos mais importância do que mereciam algumas hienas com a barriga cheia e a fazer a digestão.
   O Jimo afirmou até com um certo desdém: "Ah! Imissa, mulungo; tsica!" (Ah! São hienas, mulungo; deixa!). Mas logo se ouviu uma certa agitação no chanato acompanhada dum ligeiro rosnar e, mais por brincadeira do que outra coisa, apanhei um pau que pesava cerca de um quilo e atirei-o com displicência lá para o sítio, ao mesmo tempo que vociferava: "Ah, suas mal-cheirosas, suca!" (... vão embora!) E... desta vez não tivemos vontade rir, porque o caso era mais para chorar!
   Como resposta recebi um potente urro que nos pôs os cabelos em pé e que vinha da garganta cavernosa de um leão! Recuámos um pouco e puse-mo-nos em guarda enquanto que, à nossa frente, o chanato era agitado fortemente por leões que, assustados como nós, fugiram rapidamente e nos deixavam boquiabertos com a surpresa que não era nada agradável.
   E ainda bem que o fizeram, porque se se virassem contra nós teríamos uma situação perigosíssima, dada a grande falta de visibilidade, até porque só conseguimos vê-los quando passaram numa pequena clareira a uns sessenta metros, num trote bamboleante de verdadeiros monarcas a quem haviam estragado a sesta!
   Resolvi não atirar porque as condições de pontaria eram más e eu não desejava, de modo nenhum, ferir os bichos.
   Escusado será dizer que não ganhámos para o susto, porque embora eu não considere o leão o rei da selva, honraria que guardo para o elefante, ele é de facto o animal mais perigoso da fauna africana, especialmente em condições como estas, e não é vergonha nenhuma confessar que os nossos nervos ficaram um pouco abalados.
   E este episódio é a confirmação de que até os mais experientes se enganam no mato africano, onde tudo pode acontecer e o que parece nem sempre é...
   Chegados ao sítio onde se encontravam, possivelmente a dormir, verificámos que o chão ainda estava quente, e continuámos até ao elefante morto.
   Tratava-se de um bom macho ainda com os dentes que pesavam dezassete quilos cada. Não podíamos atinar com a causa da morte, porque nem sequer a cauda estava cortada e não tínhamos notícia de que algum caçador se encontrasse na região.
   O certo é que os elefantes também morrem de morte natural e até em virtude de lutas terríveis por altura do cio.
   Os abutres é que não gostaram muito da nossa presença, pois que, grasnando com grande alarido, despegaram-se do topo das árvores onde guardavam a sua presa e mantinham-se volteando lá no alto, enquanto arrancávamos os dentes, que transportámos para o acampamento, depois daquela caçada tão pouco vulgar.

Edição de 1994

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