A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



JOSÉ C. PARDAL



IMISSA!!!


   E já agora vou contar ainda não um acidente raro como este, mas sim um incidente caricato, até porque - já o disse algures - o ridículo também mora na caça.
   O povo negro é extremamente místico e supersticioso. O obscurantismo que afecta ainda grandes franjas de povos ditos mais civilizados, neles - negros - tem a força do hábito e domina e condiciona grande parte do seu comportamento natural.   Confrontados com uma excepcional densidade de fauna selvagem, esta não podia deixar de ser uma importante razão e ao mesmo tempo veículo desse exacerbado obscurantismo.  Quase todos os animais silvestres são para eles motivo de comportamentos que estão sempre conectados com as forças ocultas e que eles não podem nem sabem explicar, no quadro das leis naturais.
    À hiena, animal feio, de hábitos nocturnos, comedora de cadáveres e encarada como uma espécie de coveiro do mato, atribuem-lhe uma série de poderes sobrenaturais que fazem arregalar os olhos de espanto e medo aos ouvidores de histórias fantásticas sobre os seus malefícios satânicos.
Uma dessas superstições acerca de hienas reza que elas podem ser agentes de misteriosos malefícios por conta e ordem de poderosos curandeiros ou bruxos...
   Esses malefícios ou bruxarias, por sua vez, seriam encomendados e pagos por inimigos inconfessados, para fazer mal a determinada pessoa.
   Então esses bichos horrendos, encarnando a vontade dos bruxos, aproximam-se da pessoa escolhida, durante a noite, e, sorrateiramente, encostam o seu nariz frio ao nariz da vítima, ao mesmo tempo que o fixam intensamente nos olhos e... enquanto abanam a cauda com força para fazer vento! O resultado - dizem - será que a vítima fica hipnotizada e a diabólica hiena aproveita para lhe arrancar o nariz de uma só dentada, para o entregar ao bruxo, seu mandante e senhor!
   Bem, isto contado por um "madala" (velho), numa noite escura, à volta da fogueira, faz arrepiar de medo até os mais corajosos pisteiros e ajudantes negros, normalmente homens corajosos, fazendo-os exconjurar os maus espíritos e olhar com desconfiança ao redor como que auscultando a noite misteriosa.  Esta atmosfera de medo é muitas vezes aumentada pêlos rugidos dos leões e o uivar das hienas, intercaladas pelas suas gargalhadas zombeteiras e grotescas.
   E foi assim que tudo aconteceu: entre os nossos cães de estimação em África contava-se um pequeno e incrível "fox-pincher", de seu nome "Mgóia" (nome dum gato selvagem), mais que conhecido e estimado pela sua marcada "personalidade canina", esperteza e mau génio. Era um autêntico "senhor" e muito cônscio da sua popularidade entre a família!
   Certa vez caçávamos em Manica e Sofala, na região selvagem do Dombe, e o "Mgóia" acompanhava-nos na aventura.
As noites eram recheadas de grandes serenatas, com rugidos de leão, misturados com os uivos lamentosos e ameaçadores das kizumbas (hienas).
   Certo dia saímos todos de manhã muito cedo para irmos caçar nas matas da Maxaze, onde abundavam as inhalas e as pala-palas e que distavam, do acampamento, umas dezenas de quilómetros de péssimos caminhos. Ficaram no acampamento os ajudantes e os esfoladores da região e ainda o nosso muito saudoso cozinheiro Cuca, que ficou encarregado de cuidar do célebre "Mgóia", que não podíamos levar connosco, até porque era natural que voltássemos muito tarde.
Como já tenho explicado algures, nem os ajudantes nem os pisteiros negros gostam de dormir nas tendas e passam as noites à volta da fogueira, bem fornecida de lenha, que é coisa que não falta no mato. Enrolam-se bem nos cobertores para conservar o calor do corpo e defenderem-se assim do cacimbo.
   Nessa noite, o nosso cozinheiro, talvez porque receasse dormir sozinho numa das tendas, resolveu ficar com os outros homens à volta da fogueira. E o Mogóia, está claro, aninhou-se com ele debaixo dos cobertores.
   Entretanto, e naquela noite, os rugidos dos leões e o uivo feio das hienas fizeram-se ouvir com mais insistência causando um certo nervosismo nos homens que nem sequer contavam com a nossa reconfortante companhia, pois só voltámos ao acampamento eram três horas da madrugada.
   E à nossa chegada tivemos uma surpresa. Qual não foi o nosso espanto quando, a aproximarmo-nos do acampamento, divisámos de longe uma enorme fogueira com chamas da altura de um homem! E à medida que nos aproximávamos, notámos que todos os circunstantes se encontravam bem acordados. Calculámos logo que deviam estar cheios de medo com a proximidade das feras. Mas ao mesmo tempo falavam animadamente e riam-se nervosamente como se quisessem fazer troça uns dos outros.
   E então contaram-nos a sua odisseia. A dada altura da noite o nosso amigo "Mgóia" saiu debaixo do cobertor do Cuca para fazer uma necessidade imperiosa. Toda a gente dormia a bom dormir e ninguém deu por nada. Como era seu hábito, vagueou pelos arredores cheirando tudo o que era arbusto e por fim 'resolveu voltar para o seu confortável abrigo, debaixo do cobertor do Cuca. Mas dera tantas voltas que se perdeu e não sabia qual deles era! Aqui, como não podia deixar de ser, seguiu o chamado raciocínio de cão e foi cheirando um por um até que encontrasse o olfacto amigo e conhecido do seu companheiro de cama.
   A dada altura, e exagerando o "cheira-cheira", encostou o seu nariz frio ao nariz de um dos homens que nos confessou, depois, estar mesmo a sonhar com hienas... e foi o fim do mundo naquele acampamento. Espavorido e em completo pânico, o homem saltou como uma lebre acossada, gritando a plenos pulmões: "Imissa! Imissa!" (Hiena! Hiena!).
   Os outros, assustadíssimos e quase às escuras, pois a fogueira havia-se praticamente apagado, saltaram e fugiram, nem sabiam para onde. A confusão foi total! Um rapaz novo subiu à primeira árvore que encontrou com tanta pressa que escalavrou uma perna que precisou de ser tratada por mim!
   Mas o pior, o mais caricato, foi um dos esfoladores que "corajosamente" apanhou um machado que conservava à mão e vibrava fortes machadadas a torto e a direito visando atingir o pobre e atarantado "Mgóia", que gania desalmadamente até que encontrou o seu amigo Cuca e lhe saltou para o colo! E o desgraçado cão nem sequer se parecia com uma cria de hiena, pois não pesava mais que uns seis ou sete quilos.
    E o medo deu lugar à chacota, rindo-se todos uns dos outros, mas principalmente do herói que queria matar o cão à machadada! Mas o infeliz que sentiu o nariz frio do cão e deu origem àqueles acontecimentos burlescos é que não teve qualquer pudor em confessar que... tinha molhado as calças...

Edição de 1994

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