A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



MALYN NEWITT



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Moçambique, Madagáscar e as ilhas Comores

Apesar de, no século XVI, alguns capitães portugueses de carácter ambicioso terem chegado a esboçar alguns planos no intuito de conquistar Madagáscar ou as Comores, as relações portuguesas com estas terras sempre se mantiveram numa base puramente comercial. Os navios mercantes que zarpavam de Moçambique percorriam a curta distância que os separava destas ilhas em busca de madeira, fio de palma e pedra destinada à construção, mas o seu verdadeiro objectivo era conseguir alimentos em quantidade suficiente para abastecer o vasto mercado constituído pela base naval da Ilha de Moçambique. O comércio com Madagáscar e as Comores acabou por se tornar extremamente importante para os moradores de Moçambique, já que o crescente monopólio do capitão lhes vedava a possibilidade de aceder à maioria dos mercados do Sul. Francisco Barreto fizera reviver o velho projecto de conquistar as Comores, estava-se então na década de setenta, e os moradores voltaram a sentir receio de perder a possibilidade de negociar com esta região quando, em 1585, o capitão, D. Jorge de Meneses, adquiriu o direito exclusivo do comércio do gengibre entre as Comores e Ormuz, ao mesmo tempo que tentava edificar uma feitoria em Masselage, na costa de Madagáscar. Na década de cinquenta, os capitães de Moçambique continuaram a tentar negociar uma espécie de aliança comercial com Madagáscar.
As embarcações usadas neste tipo de viagens eram quase todas pangaios de construção local, ficando a sua condução a cabo dos membros da comunidade muçulmana de marinheiros instalados nas pequenas cidades portuárias situadas em ambos os lados do canal de Moçambique. Eram fretados pelos moradores de Moçambique, levando quase sempre a bordo um ou dois afro-portugueses. O volume dos negócios entre Moçambique e as ilhas impressionou os primeiros visitantes europeus. Em 1591, Sir James Lancaster viu-se obrigado a recorrer aos serviços de um intérprete português na sua visita às Comeres. Em 1602, um negociante clandestino de origem francesa, Martin de seu nome, encontrou plusieurs individus qui par-laient portuguais, e, ainda no mesmo ano, a frota holandesa de van Spielbergen capturou uma embarcação recheada de mestiços portugueses que transportava arroz, panos e escravos. Por seu turno, em 1615, Sir Thomas Roe teceu alguns comentários relativos aos enormes veleiros usados pêlos Portugueses, tendo dito qualquer coisa sobre "os poucos portugueses que viajavam para Moçambique em embarcações de quarenta toneladas, com as pranchas cosidas ao invés de pregadas, todas elas muito bem equipadas e carregadas de madeira". A situação acabou por ser resumida por François Pyrard, que disse "serem estas ilhas [as Comores] de uma importância vital para Moçambique e os portugueses que aí vivem, já que é delas que partem todos os alimentos que aqueles necessitam".
É bastante provável que os moradores de Moçambique tenham usado o comércio com as Comores e Madagáscar como uma forma de iludir o monopólio do capitão e levar a cabo uma série de transacções clandestinas com os portos do mar Vermelho, do Golfo, e também do norte da índia. Sabe-se que, nos primeiros anos do século XVII, estas ilhas mantinham uma relação comercial intensa com os territórios situados a norte, encarregando-se os veleiros portugueses que partiam de Moçambique de levar as moedas de prata de origem espanhola que eram usadas nas ilhas no intuito de financiar o comércio internacional.
Em finais do século XVI, as Comores estavam cada vez mais a funcionar como um dos principais pontos de "exportação" de escravos, sendo que estes aí chegavam vindos das regiões costeiras de Moçambique e Madagáscar. Apesar de nada nos dizer ter o comércio de escravos nesta época constituído um negócio maciço, é provável que eles abundassem nos mercados, devido à fome que alastrou na zona nos anos oitenta e às guerras Zimba. Os mercadores portugueses encontravam-se activamente envolvidos no comércio de escravos praticado nas Comores. Assim, e à laia de exemplo, consta terem os Portugueses ido até às ilhas comprar escravos a nove ou dez reates cada um, mas sempre na esperança de os venderem por cem reales, dez vezes mais. Apesar de não restarem dúvidas a respeito da utilização de escravos pelos próprios portugueses estacionados na África Oriental, os maiores mercadores de escravos se situavam na índia e no Golfo, tendo os mercadores portugueses e suaílis funcionado como fornecedores destes mesmos mercados, e nunca como os principais consumidores.
Quando as frotas francesas, holandesas e inglesas começaram a percorrer o ĺndico, trataram de usar as Comores enquanto portos regulares onde se podiam abastecer de água e víveres. A procura de géneros alimentícios aumentou com uma rapidez tal, que se tornou difícil para estas ilhas stisfazer a procura de que estavam a ser alvo. Assim, os navios europeus passaram também a frequentar a baía de Santo Agostinho, na costa sudoeste de Madagáscar. Acabaram por descobrir que aqui lhes era possível adquirir gado, e, uma vez "oficializado" este ponto de paragem, uma série de assentamentos malgaxes acabaram por florescer em torno da Baía, sendo o seu intento servir os navios que aí aportavam. As actividades destes navios alarmaram de tal forma os Portugueses, que de imediato desenvolveram uma política intervencionista em relação a Madagáscar. Em 1613, Luís Marianno, um padre jesuíta, seguiu para a ilha disposto a estabelecer relações com os chefes da parte sul de Madagáscar, e, de passagem, a tentar descobrir o paradeiro dos sobreviventes de vários naufrágios. Marianno regressou passados dois anos na companhia de um outro padre, e ambos tentaram, sem sucesso, estabelecer uma missão permanente na costa. Contudo, ninguém se mostrou interessado em retomar este trabalho. Para além de algumas sugestões ocasionais dizendo que o capitão de Moçambique deveria estabelecer um posto fortificado na costa de Madagáscar, a Coroa Portuguesa (pelo menos a nível oficial) não voltou a demonstrar qualquer interesse nesta ilha, e a exploração da zona oriental do canal de Moçambique foi como que deixada nas mãos de outras potências europeias.10
Ingleses, franceses e holandeses andavam à procura de bases permanentes a partir das quais as suas frotas pudessem operar, ao mesmo tempo que viam nas ilhas a possibilidade de aí estabelecerem plantações semelhantes às que estavam a ser exploradas nas Caraíbas. Os Holandeses acabaram por se fixar nas Maurícias em 1639, ao passo que os franceses os fizeram na lie de Bourbon (Reunião) em 1642, e, posteriormente, em Fort Dauphin, na costa de Madagáscar, em 1649. Por seu turno, os Ingleses mostravam-se bastante satisfeitos com os lucros obtidos através da sua amizade com o sultão de Anjouan, nas Comores, servindo-se da ilha tanto posto abastecedor e como posto de correios, pois era aí que se procedia à troca de mensagens entre os navios. Todavia, nos anos trinta, Madagáscar atraiu as atenções de vários empresários ingleses, todos eles interessados em quebrar o monopólio da Companhia das índias Orientais. Assim, em 1635, estabeleceu-se um monopólio rival, a Courteen Association, com o objectivo de explorar as oportunidades comerciais oferecidas por Madagáscar e pela zona ocidental do Indico. A Courteen Association enviou, então, várias embarcações para a zona, tendo-se mesmo registado a tentativa de fundar uma colónia na costa de Madagáscar. Os Ingleses recusaram sempre desistir das suas ambições nesta zona até que, na década de cinquenta, a doença e as elevadas perdas comerciais os obrigaram a abandonar os seus esforços colonizadores." Entretanto, os Holandeses haviam fundado um assentamento permanente na baía de Mesa, isto em 1652, abandonando em 1658 a sua colónia nas Maurícias. À medida que, aos poucos, a Cidade do cabo se ia desenvolvendo enquanto base naval e colónia, a procura holandesa de mão-de-obra escrava aumentou de forma considerável, acabando eles por desenvolver uma rede comercial regular com a costa de Madagáscar.
Como consequência de tudo isto, a primeira metade do século xvn pautou-se por um enorme desenvolvimento da actividade comercial na zona do canal de Moçambique. Assim como, no século anterior, a criação de uma base naval em Moçambique resultara num aumento da procura em relação aos produtos daquela parte de África, assim a chegada anual de grandes frotas inglesas, holandesas e francesas estimulou a procura através de toda a região que se estendia a norte do cabo da Boa Esperança. Contudo, a maioria dos produtos alimentares adquiridos pelas companhias continuavam a ser o resultado de práticas agrícolas tradicionais. Apenas nas Comores vamos encontrar algumas indicações que nos dizem ter a introdução de escravos contribuído para o aumento da produção agrícola. Se o comércio europeu teve pouco impacto nos métodos de produção, tudo indica ter a sua repercussão política na ilha de Madagáscar sido qualquer coisa de considerável, já que se pensa estar a expansão dos Sakalava, ocorrida durante o século xvm, relacionada com o estímulo económico derivado do comércio dos escravos e das armas de fogo.
Os Portugueses continuaram a basear as suas actividades mercantis no comércio do marfim, desenvolvendo redes de fornecedores e fazendo a sua presença expandir-se cada vez mais para o interior. Tudo aponta para que a política por eles seguida no intuito de desencorajar os outros europeus a negociar com os seus territórios costeiros acabado por se mostrar eficaz. Apesar de, de tempos a tempos, se escutarem rumores sobre a presença de navios ingleses e holandeses na costa, não há quaisquer registos que apontem para uma actividade comercial significativa. A África Oriental foi largamente excluída do comércio desenvolvido tanto por ingleses como por holandeses, tendo assim escapado ao estímulo que os navios das diferentes companhias lhes poderiam ter providenciado. De facto, o que é digno de nota em relação ao desenvolvimento económico desta zona não é de modo algum a sua integração no sistema económico mundial, mas sim o seu isolamento do mesmo, facto que se ficou a dever ao extraordinário sucesso da política de monopólios levada a cabo pelos Portugueses.


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O advento do capital mercantil indiano

Durante o século XVIII, a prosperidade do comércio do marfim levou muitos mercadores indianos até Moçambique, e, em finais do século, as comunidades indiana e afro-portuguesa haviam-se transformado nas classes dominantes. A rede demorou bastante tempo a expandir-se. Claro que os comerciantes indianos de Malabar há muito que se haviam integrado nas redes locais, remontando a sua chegada àquelas paragens a uma época muito anterior à dos Portugueses, e, em 1499, quando Vasco da Gama visitou a Ilha de Moçambique, eram já muitos os mercadores hindus fixados. Com o estabelecimento dos Portugueses em Malabar, em Goa e nos portos a norte de Cambaia, foram inúmeros os canais que se abriram aos indianos que mostrassem interesse em se deslocar até à costa oriental de África. Os indianos de Goa, a quem os Portugueses chamavam "canarins" e muitos dos quais eram católicos, talvez tenham aportado na África Oriental na qualidade de administradores,comerciantes, soldados, mesmo religiosos, mas também aí vamos encontrar indianos provenientes dos portos do Norte, que, no caso de serem hindus, eram designados por banianos. Regra geral, este indivíduos dedicavam-se quase que exclusivamente ao comércio.
Pouco se sabe a respeito das actividades dos indianos em Moçambique durante o período monopolista dos capitães. É evidente existirem muitos mercadores desta etnia em Manica durante os anos de 1560, quando se alega terem eles sido bastante maltratados pelos Chicanga. Houve soldados indianos a combater nas guerras da Zambézia na década de quarenta do século XVII, e, quatro décadas depois, vamos encontrar vários médicos canarins estacionados na Zambézia. Há referência a um brâmane envolvido no comércio do Zambeze nos anos sessenta, e são muitos os mercadores indianos activos nas feiras do ouro na segunda metade do século. Foram os comerciantes indianos em fuga do território caranga que fundaram o primeiro assentamento do Zumbo nos anos noventa, e os canarins que comerciavam na região dos Rios encontravam-se presentes na corte do Monomotapa, tendo ainda ajudado a recrutar soldados no intuito de defender os assentamentos portugueses nos Rios.
Não deixa de ser interessante o facto de a Coroa Portuguesa ter favorecido de forma clara a ideia de uma migração indiana rumo à África Oriental. Uma vez terminado o monopólio do capitão, foram avançadas várias sugestões no sentido de enviar colonos originários de Goa para ajudar os povos dos Rios. No final, e apesar de esta migração de camponeses indianos nunca se ter chegado a concretizar, o capital avançado pelos mercadores indianos acabou por se fazer sentir de um modo significativo. Em 1686, a exploração do comércio entre Diu e Moçambique foi entregue a uma companhia chamada Companhia Baniana de Mazares. Doze anos depois, a queda de Mombaça deu início a um período (o qual iria durar pelo espaço de tempo de uma geração) em que toda a zona norte da costa se tornou realmente instável, e, perante isto, os mercadores indianos resolveram mudar a sua base operacional para a Ilha de Moçambique, onde se foram fixando em números cada vez maiores.
A expansão do capital mercantil indiano ocorrida no início do século XVIII constituiu um fenómeno que afectou de igual modo as comunidades hindu e muçulmana, ambas representadas em Moçambique. A ascensão da classe mercantil indiana fora uma das características do império mogol aquando do seu zénite, no século xvn; os banqueiros indianos financiaram o Estado Mogol, enquanto controlavam o seu sistema de impostos e, em finais do século, tentavam encontrar formas de aplicar as vastas quantidades de capital por si acumuladas. Uma das áreas por eles procurada para aí investirem era precisamente a que englobava o comércio marítimo praticado no mar Vermelho, no Golfo e na África Oriental. Uma outra das vias que lhes pode ter aberto as portas de Moçambique seria terem funcionado como banqueiros do Estado da índia português, que se vira bastante diminuído e empobrecido em finais do século xvn, depois do que dera por si numa situação de dependência dos investidores indianos.
Visto a importação de tecidos e de contas pertencer ao monopólio da Junta, os indianos estacionados em Moçambique tinham três opções: ou passavam a competir com osmoradores, ou importavam artigos que não pertenciam ao monopólio da Junta ou limitavam-se a injectar capitais nos vários empreendimentos comerciais dos Portugueses. O estabelecimento destes mercadores indianos em Moçambique esteve na origem de tensões que, embora tivessem como origem uma série de rivalidades comerciais, acabaram por assumir uma forma de expressão marcadamente lusitana, ou seja, o ódio religioso. Nos anos vinte, a Inquisição tentou servir-se da suaautoridadeparainterferir nos negócios levados a cabo pêlos muçulmanos no continente, e, numa fase posterior, a comunidade baniana queixou-se de estar a ser alvo de perseguições pela parte das autoridades. Tudo indica ter este sentimento anti-indiano aumentado de forma considerável com o fim do monopólio da Junta, facto que permitiu aos Indianos, não só importarem tecidos, mas também exportarem marfim. Em 1758, os moradores cerraram fileiras no intuito de impedir os mercadores indianos de terem acesso às terras do continente, ao mesmo tempo que se esforçavam por restringir as suas actividades comerciais na ilha a apenas doze casas comerciais. O vice-rei de imediato tratou de rescindir semelhantes medidas, mas, em 1763, eis que se efectuou uma outra tentativa destinada a impedir os Indianos de negociar no continente.
Em 1777, e talvez que na tentativa de quebrar o domínio exercido pelos comerciantes indianos em relação ao comércio praticado em Moçambique, domínio este que se tornava possível através da importação de tecidos da índia, o governo português pôs ponto final ao monopólio da Companhia de Mazanes em relação às trocas comerciais efectuadas com Diu. O resultado desta medida traduziu-se por um aumento considerável na actividade comercial dos mercadores indianos, e, nos anos oitenta, eram cerca de cinco os navios que chegavam por ano a Moçambique provenientes de Diu, ao passo que na Ilha de Moçambique viviam cerca de trezentos indianos, que possuíam vinte casas comerciais no território do continente. O facto levou a que, nessa mesma década, se tentasse levar a cabo uma série de acções no sentido de excluir os mercadores indianos, mas, visto serem eles quem controlava a importação de tecidos, actividade esta da qual dependia todo o comércio praticado em Moçambique, tudo ficou sem efeito.
Entretanto, os Indianos haviam-se tornado activos em todos os portos situados na costa moçambicana. Tal como já vimos, Inhambane era em grande parte um assentamento indiano, o mesmo se passando com o Zumbo, no Zambeze. Nas velhas cidades do Zambeze, os Indianos não se limitaram a representar o papel de comerciantes, tendo-se igualmente convertido em titulares de prazos e em donos de lares recheados de escravos e demais serviçais.

As redes comerciais de Moçambique

Apesar de, e com bastante frequência, os documentos nos apresentarem os Indianos na qualidade de rivais dos moradores, ambos os grupos se integravam numa complexa rede de trocas e relações comerciais, rede esta que se estendia bem para o interior do território. O comércio do marfim criara todo um sistema de relações sociais e de comunidades cujas fortunas dependiam umas das outras. Uma das pontas desta rede era formada pêlos grupos de caçadores de elefantes que, no interior de África, perseguiam as manadas, isolavam os adultos com presas, matando-os utilizando métodos que tanto tinham de perigoso quanto de sofisticado. Embora os elefantes pudessem ser caçados pêlos homens de uma determinada aldeia que decidiam ocupar parte do seu tempo dedicando-se a esta actividade lucrativa, tratando também deste modo de conseguir um pouco de carne para as respectivas famílias, vamos encontrar uma série de caçadores de elefantes profissionais, alguns dos quais a trabalhar directamente sob as ordens dos chefes, dos mercadores, mesmo dos detentores de prazos.
Independentemente dos meios utilizados para matar os animais, o chefe territorial da área onde decorria a caçada reclamava uma presa para si - a presa pri ncipal - a qual funcionava como uma espécie de tributo. Foi deste modo que os chefes se transformaram em parceiros de peso no que respeitava ao comércio do marfim, papel este que não paravam de enfatizar, já que tudo faziam na tentativa de controlar as feiras onde o marfim era vendido aos chefes das caravanas. A menos que habitassem numa zona situada a apenas alguns dias de marcha da costa, só muito raramente o marfim era para aí levado por aqueles que o haviam caçado. Assim, eram os chefes das caravanas que iam buscar o material ao interior. No século xvm, e na região do Zambeze, eram os Yao que dominavam as caravanas. Os chefes Yao não paravam de alargar o seu campo de acção, e, a pouco e pouco, acabaram por dominar todas as rotas que se estendiam através do velho império marave desde o mar até ao Luangwa, a ocidente. Em meados do século XVIII, os Yao continuaram a alargar a sua zona de influência comercial, não só rumo às terras situadas a ocidente do Luangwa, como também em direcção àquelas situadas a sul do Zambeze.
As caravanas Yao, por vezes constituídas por mais de mil indivíduos, transportavam o marfim até à costa depois de negociarem a sua passagem através dos territórios dos chefes macuas, os quais, e graças a isto, acabavam por participar nos lucros obtidos com o comércio. À medida que se aproximavam da zona da costa, os Yao penetravam então numa zona onde a rede comercial relativa ao marfim se tornava densa e complexa. Quando ainda lhes faltava percorrer uma boa parte do percurso, eis que lhes surgiam os agentes dos moradores portugueses, mais conhecidos por patamares, os quais estavam autorizados a comprar marfim. Contudo, as rivalidades entre estes patamares eram enormes, o que por vezes os levava a empreender acções violentas contra as plantações e aldeias portuguesas situadas junto à costa. Convém recordar a existência de um sem-número de compradores ilegais de marfim, que operavam por conta dos xeques suaflis, também eles instalados nas regiões costeiras. Contrabandeavam o marfim a partir de uma série de pequenos portos, tentando deste modo evitar o pagamento das taxas exigidas pela casa aduaneira instalada na Ilha de Moçambique. Por seu turno, os patamares encontravam-se ligados aosmoradores, ou, e com uma frequência cada vez maior, às casas comerciais indianas que lhes forneciam uma série de artigos destinados ao comércio em troca do marfim por eles conseguido. Escusado será dizer que, entre estas casas comerciais, os laços de deve e de haver, a cooperação mútua, e, claro está, as rivalidades habituais, constituíam uma constante.

A expansão das comunidades costeiras

Durante o século XVIII, a área costeira que, partindo da baía de Fernão Veloso, se estendia para sul, rumo a Angoche, viu-se polvilhada por um número quase incontável de pequenos portos e comunidades que, de uma forma ou de outra, dependiam do comércio do marfim - quer recebendo os navios que aí aportavam, quer contrabandeando escravos e/ou de marfim, quer ainda enviando toda a espécie de produtos alimentares para o enorme mercado que era a Ilha de Moçambique (Mapa 2).
As comunidades marítimas situadas nestes portos descendiam daquelas famílias de mercadores muçulmanos que, antes da chegada dos Portugueses, negociavam a partir dos portos situados na África Oriental. Quando os Portugueses ocuparam a Ilha de Moçambique, Quelimane, bem como as cidades do Zambeze, a comunidade muçulmana aí se deixou ficar durante algum tempo, tentando coexistir com os recém-chegados. A cidade muçulmana de Sena acabou por ser destruída por Francisco Barreto em 1517, e, em finais do século XVI, existia já na Ilha de Moçambique um subúrbio muçulmano chamado Mogicate. Contudo, quando isto sucedeu, as famílias importantes da ilha já se haviam mudado para o continente, tratando de edificar uma comunidade em Sancul, no promontório que constituía a margem sul da Baía, não muito longe do assentamento português - e que continuaria a funcionar enquanto um importante centro de influência até ao século XIX. Os portugueses fixados em Moçambique dependiam de Sancul enquanto forma de garantir a segurança da margem sul da Baía, mas esta convivência acabou por ser fortemente abalada em 1753, quando, e depois de tanto europeus como muçulmanos se terem unido para lutar contra os Macuas, levando a cabo uma incursão sem quaisquer consequências no território da tribo, um soldado português embriagado acabou por alvejar o xeque. Depois disto, assistiu-se ao crescimento de uma fiada de pequenas aldeias muçulmanas que se estabeleceram ao longo da costa e que, embora se encontrassem dentro do perímetro económico da Ilha de Moçambique, era para Sancul que olhavam sempre que o tema em causa era o comando político e religioso.
Embora o território imediatamente oposto à Ilha de Moçambique estar sob o controlo nominal do chefe macua de Uticulo, o Murimuno, a Baía onde a ilha se situava encontrava-se rodeada pelas plantações pertencentes aos moradores de Moçambique e pelas aldeias onde habitavam os respectivos escravos e servidores, todas elas defendidas de forma precária por uma paliçada (,chuambo).n Já dentro da área continental, havia duas paróquias (em Cabaceira e em Mossuril), as quais se encontravam separadas por algumas aldeias muçulmanas. Muitos dos moradores habitavam a tempo inteiro nas plantações, e, no século XVIII, o governador-geral tratou de construir para si mesmo uma belíssima casa de campo em Cabaceira, e, em 1809, o chuambo foi substituído por um forte."
Na zona imediatamente a norte de Moçambique encontrava-se a baía de Condúcia, ao largo da qual ficava a ilha de Quitangonha (onde havia uma cidade muçulmana), ao passo que na região costeira em frente se situava o assentamento de Matibane. A sul de Sancul ficava a baía de Mocambo com os seus assentamentos costeiros em Kivolane e Quissanga. Um pouco mais a sul estendia-se uma faixa de terra pantanosa e inacessível, onde não existia qualquer assentamento importante para além de Mogincual, situado num vasto estuário de águas baixas, protegido por uma língua de areia. A sul de Mogincual, as populações costeiras tinham tendência a trocar Sancul por Angoche. Aí, as cidades mais importantes eram Sangage, a própria Angoche, e Moma, todas elas situadas perto da entrada de rios importantes.
Durante os séculos XVII e XVIII, os Portugueses desenvolveram uma série de relações profissionais com os xeques das comunidades costeiras, relações essas baseadas numa série de interesses recíprocos. Os Portugueses queriam a todo o custo que os chefes muçulmanos desencorajassem as outras potências europeias a desempenhar qualquer tipo de actividade comercial na costa - o que, e em termos gerais, parece ter sido conseguido. Em 1727, e só para dar um exemplo, alguns navios franceses chegaram à baía de Quitangonha, levando a cabo algumas sondagens. De imediato, o xeque "saiu ao encontro deles acompanhado pormais de duzentos negros armados de arcos e flechas, bem como de algumas armas de fogo, tendo de pronto posto fim a todas as suas actividades". Os Portugueses estavam igualmente interessados em fazer com que os chefes muçulmanos ajudassem os náufragos que conseguiam sobreviver e chegar à costa. Por seu turno, os xeques queriam negociar com os Portugueses, sendo que ambas as partes reconheciam o quanto era importante actuarem em conjunto no intuito de se protegerem contra os possíveis ataques desferidos pêlos chefes macuas ou maraves sediados no interior. De facto, tudo indica estar o medo às incursões maraves na origem do reconhecimento da soberania portuguesa pela parte dos xeques, tornando-se fácil para estes procurar a protecção dos primeiros.
Um dos poucos documentos que se ocupa da zona costeira a sul de Sancul é aquele referente ao naufrágio do galeão São Lourenço, o qual deu à costa em 1649, perto de Mogincual. A maior parte da tripulação e demais passageiros foi salva, e, enquanto um grupo de mensageiros partia para a Ilha de Moçambique, os restantes membros do São Lourenço pediram ajuda aos xeques de Mogincual, bem como a uma outra comunidade chamada Moxingli (a qual tem sido bastante difícil de identificar), no sentido de lhes serem fornecidos alimentos e alojamento, cuidados médicos para os enfermos, e, não menos importante, salvar os bens da Coroa que não se haviam perdido na naufrágio. Segundo o relato de António Cardim, o padre jesuíta, torna-se claro para todos que, embora os xeques se tivessem mostrado prestáveis desde o primeiro instante, estavam igualmente preparados para se aproveitarem da situação, cobrando preços muito elevados pelos alimentos e restantes serviços por si fornecidos. Nenhum destes chefes possuía embarcações maiores que as canoas por eles utilizadas para percorrer o oceano.
Contudo, e independentemente do facto de serem pequenas, estas comunidades encaravam a prática religiosa sob uma perspectiva séria. Assim:
Nunca se esquecem de dizer as suas orações três vezes ao dia, e o xeque que desempenha o papel de cacis lava-se antes de entrar na mesquita, deixando os sapatos no lado de fora, em cima de uma pedra quê se encontra à entrada da mesquita, tudo porque para eles é um sacrilégio entrar no templo calçados ou com os pés por lavar.
Não existiam quaisquer estradas regulares ao longo da costa uma vez que eram muitos os estuários do rio que era preciso atravessar, do mesmo modo que as condições de viagem
estavam longe de ser seguras. As populações que habitavam nestas aldeias viviam no temor permanente das incursões macuas e, sobretudo, daquelas praticadas pêlos Maraves. Assim que estes ouviram falar do naufrágio, enviaram um grupo de guerreiros para a costa, grupo este que, entre outras coisas, tratou de fazer do xeque prisioneiro."
Foi durante o século XVIII que os Portugueses formalizaram as suas relações com os chefes muçulmanos estacionados na costa, conferindo-lhes o título de capitão-mor, intervindo nas disputas relacionadas com os problemas inerentes à sucessão, e tudo fazendo para que eles cooperassem nos assuntos importantes que supunham a manutenção das rotas comerciais que levavam ao interior. Sempre que era necessário levar a cabo uma qualquer acção militar, era suposto os xeques fornecerem os contigentes armados que deveriam acompanhar os soldados portugueses. Os Portugueses nomeavam igualmente um dos afro-portugueses de importância para o posto de "capitão-mor das terras firmes", competindo a este indivíduo zelar pelas terras do interior. Porém, e em termos práticos, as populações fixadas na costa formavam o que se pode chamar uma comunidade comercial autónoma de mercadores e proprietários de plantações de origem afro-portuguesa e suaíli, todos eles possuidores de criados e escravos, sendo o que os governava as leis ditadas pela necessidade de uma coexistência comercial - ou seja, as leis que faziam com que todos se mostrassem interessados em manter aberta uma passagem segura com os territórios do interior, bem como em executar de forma satisfatória a troca de produtos que iam chegando a estes portos.

Angoche

A cerca de cem milhas a sul de Sancul, a meio caminho do delta do Zambeze, encontrava-se a antiga cidade de Angoche. No início do século xvi, e devido à política conduzida pelo seu chefe, que tudo fizera para atrair os mercadores muçulmanos interessados nos lucros conseguidos com o comércio do ouro proveniente do Zambeze, ao mesmo tempo que evitara cair nas mãos do monopólio português estabelecido em Sofala, a cidade gozara de uma prosperidade notável. Contudo, em meados do século, Quelimane desenvolvera-se como o principal porto de acesso ao interior, diminuindo Angoche consideravelmente de importância, embora participasse de um modo algo modesto no comércio do marfim. Os Portugueses mantinham aí um feitor, tendo este começado por comprar marfim em nome da Coroa, depois do que o passara a fazer para o capitão de Moçambique. São poucas as menções feitas a Angoche na literatura do século xvn, e, no século seguinte, sabemos que a feitoria portuguesa acabara por ser encerrada. Deste modo, e durante um período de quarenta anos, nenhum navio português dedicado ao comércio aí parou, pelo menos a título oficial.
No entanto, existiam uma série de laços que ligavam os sultões de Angoche aos portugueses instalados na Ilha de Moçambique. Os sultões receberam dos Portugueses o título de capitão-mor, e, enquanto parte desta relação especial, não pagavam quaisquer taxas alfandegárias relativas aos navios por eles enviados para a ilha. No século xviu, os artigos exportados a partir de Angoche paraallha de Moçambique consistiam quase que exclusivamente em produtos alimentares e nos elaboradíssimos tapetes que, desde o século XVI, haviam tornado a cidade famosa. Porém, é igualmente certo que canoas provenientes de Angoche visitava
m certos assentamentos costeiros situados a sul, onde se dedicavam ao comércio do âmbar e do marfim.
Francisco Moraes Pereira, um juiz português que visitou Angoche em 1752, deixou-nos uma descrição muito agradável deste entreposto independente da cultura islâmica. Por esta altura, e devido a uma série de disputas com os macuas que habitavam a zona continental, a cidade velha fora abandonada, encontrando-se agora Angoche edificada num outro local.

Este novo assentamento encontra-se a uma curta distância da praia, num ponto situado a oriente, onde o terreno é arenoso. As casas são feitas de madeira e têm telhados de palha, mas são bastante confortáveis uma vez que se encontram divididas em compartimentos, isto apesar de, e ao contrário do que costuma acontecer com as casas construídas pêlos mouros, não possuírem janelas viradas para a rua. As habitações pertencentes ao rei são grandes e distinguem-se das restantes não apenas por serem maiores, mas também porque os materiais com que foram construídas são diferentes. Estão rodeadas por uma cerca, sendo que no jardim vamos encontrar muitas laranjeiras e limoeiros, palmeiras e uma enorme variedade de arbustos com os quais se fazem remédios destinados a curar os males de que toda esta gente possa vir a sofrer. O rei tem um trono de onde se dirige ao povo. As suas roupas são feitas com sedas de diferentes tipos, todas elas ricamente ornamentadas, sendo que na cabeça usa uma espécie de coroa enfeitada com franjas douradas.
Na cidade havia ainda uma escola corânica, o que significava ser o árabe falado por quase toda a população. Quanto à casa real, e para além dos contactos que mantinha com a Ilha de Moçambique, estava bastante bem relacionada com Mombaça e Patê.
Moraes Pereira deixa bem claro manterem os Portugueses fortes vínculos com os assentamentos da estrada costeira que, tendo Angoche como ponto de partida, cruzavam o Zambeze até chegar à Ilha de Moçambique. Sempre que o tráfego fluvial se via impedido de funcionar, esta estrada era usada por toda a espécie de mensageiros. É-nos agora bastante claro naufragarem os navios de forma frequente nestas paragens, dependendo os Portugueses da boa vontade dos chefes locais no que se referia a ajudar os náufragos e a recolher os despojos. Eram muitos os povos instalados ao longo desta rota que falavam português, daí que os estrangeiros recebessem alguns pedidos de ajuda no que se tratava de resolver disputas sucessórias ou quaisquer outras lutas internas. O juiz descobriu estar o chefe Mataya ansioso por formalizar uma aliança com os Portugueses, ao mesmo tempo que
[...] gostaria de renovar o tratado firmado entre os seus antepassados e os habitantes de Moçambique, de acordo com o qual um ou dois navios estavam autorizados a aí efectuar viagens anuais no intuito de transaccionar tecidos e marfim destinados ao tesouro real de Sua Majestade, bem como alimentos destinados a abastecer o forte. Para além disto, e na qualidade de bens destinados ao comércio individual, encontrar-se-iam carregamentos de mel, âmbar e outros artigos. [...] A feitoria que aqui existiu em tempos deveria ser restaurada, e, desde que contasse com uma pequena guarnição, por certo em muito favoreceria uma actividade comercial que sempre se traduziu em grandes vantagens para o tesouro de Sua Majestade.
Sem qualquer sombra de dúvida que tanto Angoche como Moçambique constituíam os dois centros de poder político e económico que maior interesse despertavam nas aldeias macuas instaladas na costa. Contudo, nenhum destes assentamentos se mostrava suficientemente forte ou se encontrava em posição de dominar e impor uma determinada ordem política na região. Assim, a zona vivia mergulhada numa espécie de equilíbrio precário no qual as pequenas chefias macuas faziam os possíveis e os impossíveis para se impor umas às outras. Apesar de Mores Pereira se ter sentido impressionado pela densidade populacional da planície costeira, não lhe escapou abrir a fragmentação política característica da zona as portas ao aparecimento de uma série de unidades políticas ad hoc, o que constituía meio caminho para que os bandidos aí tratassem de estabelecer o seu poder. O banditismo constitui um dos grandes temas da história de Moçambique, sendo que desde sempre os chefes destes grupos armados se viram em melhores condições de ascender ao poder que os líderes das muito fragmentadas comunidades matrilineais características da sociedade macua. O que a seguir se transcreve é a descrição clássica que Moraes Pereira fez da ascensão de um chefe bandido. A sua data remonta a um ano anterior a 1750, mas pode perfeitamente aplicar-se a um grupo de soldados da Renamo que por ali andasse nos anos de 1980.
A aldeia de Macambe encontra-se adois dias de viagem da de Matanda, tendo sido fundada em território Matanda. Macambe fugiu para lá quando lhe foi ordenado que se rendesse a António Cardim Froes [o governador de Moçambique]. À sua volta juntaram-se alguns cafres que haviam fugido de Moçambique. Durante vários anos, Macambe actuou como um vagabundo, mas, aos poucos, foi recebendo nas suas fileiras outros cafres fugidos, fortificou-se nas terras por mim já mencionadas, depois do que aí construiu um assentamento que, a avaliar pelo que me foi dito, é muito forte e praticamente inexpugnável. É a partir daqui que ele semeia o pânico nas aldeias vizinhas, levando a cabo toda a espécie de ataques e roubos. A sua audácia atingiu níveis tais, que, ao ouvir que o rei de Angoche [...] o queria atacar, lançou um ataque surpresa à aldeia durante a noite, matou o rei e, junto com ele, cerca de duzentos homens, mulheres e crianças. [...] Este acto insolente transformou-o num ser orgulhoso, temerário e profundamente receado pêlos povos vizinhos, que, embora não o tolerem, não se atrevem a lhe declarar guerra.
No entanto, e em termos gerais, tudo aponta para que, no século xvm, a influência portuguesa fosse aqui suficientemente forte para impedir esta zona de representar todo e qualquer papel independente no campo do comércio internacional de escravos e também naquele relacionado com o marfim. Apesar de existirem alguns registos isolados relativos a algumas viagens a Angoche efectuadas por navios holandeses, esta velha cidade muçulmana, tão importante no comércio do ouro desenvolvido durante o século XVI e posteriormente, no século XIX, um ponto vital no comércio dos escravos, nunca participou de forma activa no tão rentável comércio do marfim. Este continuaria a afluir à Ilha de Moçambique de onde era suposto partir, e, até ao século xix, pouco ou nada se diz arespeito do comércio clandestino de escravos nesta costa.

As ilhas Quirimba

As ilhas do Cabo Delgado, também conhecidas por Quirimba, estendem-se durante cerca de duzentas milhas a sul deste mesmo cabo. Trata-se de um arquipélago constituído por cerca de uma dúzia de ilhas de dimensões consideráveis e por um número incontável de pequenos ilhéus ou excrescências rochosas. As ilhas encontram-se perto da costa, a ela se encontrando ligadas de forma parcial por uma série de barras arenosas, recifes de coral e mangais. Para que se possa navegar entre elas, mesmo uma embarcação pequena e de fundo chato necessita de contar com os serviços de um profissional que possua profundos conhecimentos relativamente aos canais que as rodeiam. Apesar de não existir água em muitas destas ilhas, as de maiores dimensões, nomeadamente Quirimba, Ibo, Materno e Amisa, sempre foram habitadas.
Quando os Portugueses chegaram à zona oriental da costa africana, estas ilhas contavam com um número razoável de habitantes muçulmanos, sendo ainda famosas devido às indústrias de tecidos nelas instaladas. Os panos aí fabricados eram conhecidos enquanto "panos Maluane", tudo indica que derivando este nome do assentamento continental onde haviam começado por ser produzidos, e, durante os primeiros vinte anos da sua estada nestas paragens, os Portugueses conheceram o arquipélago em causa enquanto "ilhas Maluane". Apesar de o nome continuar a ser usado em vários mapas e relatórios elaborados durante o século XVII, a localização exacta de Maluane permanece um mistério. Do Couto estava convencido de que se tratava de um rio existente na zona continental - muito provavelmente na região da actual baía de Quipaco. Como resultado da invasão Zimba dos territórios situados mesmo em frente às ilhas, a comunidade muçulmana de Maluane refugiou-se na ilha de Materno, aí se tendo continuado a fabricar "panos de Maluane" ao longo de todo o século xvn. Tanto os fios de seda como os de algodão eram tecidos e tingidos com o anil cultivado na região. Estes produtos têxteis eram considerados de grande valor nas redes comerciais de Sofala e da Zambézia.4Qufloa, Zanzibar e Melinde, sendo bastante provável que, numa primeira fase, tenham sido os grandes beneficiários da ocupação portuguesa de Sofala e Qufloa. Os mercadores muçulmanos que fugiam às lutas travadas entre as diferentes facções que combatiam entre si nas duas cidades ocupadas pêlos europeus por certo levariam consigo tudo o que caracterizava a sua actividade comercial. Uma vez tendo reconhecido terem-se as ilhas transformado em importantes centros de comércio independente conduzido pêlos muçulmanos, uma enorme expedição portuguesa atacou Quirimba em 1522. A cidade construída na ilha viu-se em ruínas num abrir e fechar de olhos, as embarcações ancoradas no porto foram reduzidas a cinzas, tendo os atacantes levado consigo um saque considerável. O comandante registou ter um canhão sido encontrado na ilha. Apesar de não existirem grandes dúvidas arespeito do principal objectivo dos Portugueses - ou seja, destruir toda e qualquer rede mercantil que aí existisse a actuar de forma independente - estes começaram por se defender dizendo ter sido o ataque motivado pela recusa muçulmana em lhes vender cordas feitas de fibra de coco, facto que sugere serem as ilhas um centro importante no que respeitava ao fabrico deste produto.
Durante o século xvi, alguns portugueses receberam terras pela parte da Coroa, depois do que se instalaram nas ilhas. Em 1590, apenas uma delas não possuía um senhor português a quem a população local fosse obrigada a pagar tributo. Na ilha Quirimba encontramos uma plantação fortificada e uma igreja dominicana que funcionava como centro missionário da área.46 Uma descrição datada de 1609 fala-nos da existência de um assentamento fortificado em Ibo que, em 1630, tudo leva a crer possuir algumas peças de artilharia, ao passo que ainda hoje é possível encontrar as ruínas das grandes casas instaladas nas plantações situadas em Quisiva e Materno. Devido à falta de água, os Portugueses edificaram enormes cisternas destinadas a recolher a água das chuvas, facto que permitiu a criação nas ilhas de cabeças de gado, porcos e cabras. Para além de panos Maluane, a região produzia ainda âmbar branco e a sua variante negra e cinzenta, marfim, carapaças de tartaruga e maná (uma espécie de raiz comestível que crescia em Amisa e Mafia, ou seja, nas regiões mais a norte). A zona acabou também por se desenvolver enquanto fornecedora de alimentos destinados à Ilha de Moçambique. Carne, sogro, feijão e produtos derivados das palmeiras, tudo isto era exportado. Quanto aos senhores das ilhas, também eles enviavam alimentos para a Ilha de Moçambique enquanto forma de pagar as licenças de exploração da terra que lhes haviam sido concedidas. Assim, o senhor de Materno, por exemplo, pagou trinta "fardos" de cereais, os quais seguiram para o forte de Moçambique. É bastante provável que tenha sido o facto de a maior parte dos alimentos enviados para Moçambique serem originários deste arquipélago aquilo que levou a que, em 1609, o vice-rei, Lourenço de Távora, aí decidisse invernar na companhia da sua frota, ao invés de seguir para a Ilha de Moçambique, o porto onde era costume as embarcações passarem o Inverno. A importância do comércio de alimentos destinados à ilha era de tal forma grande, que os senhores das Quirimba chegaram mesmo a reclamar o seu monopólio, facto que levou aque, em 1663, os moradores de Moçambique se vissem obrigados a obter uma ordem directa do capitão onde se confirmava a sua liberdade histórica de negociar com as ilhas.

Quando, em 1593, se criou a capitania de Mombaça, foi Cabo Delgado que formou a divisão entre esta nova capitania e aquela de Moçambique e Sofala. Assim, as Quirimba acabaram por se ver abrangidas pela capitania de Moçambique, tendo o seu destino ficado unido àquele dos povos do Sul, não aos do Norte. Quase nada se sabe a respeito das condições existentes na região continental que se estendia frente às ilhas e ao que nelas se passava nos séculos xvi e xvn. Santos transforma-se quase num poeta lírico quando descreve a agricultura e as riquezas naturais do Norte, zona onde esteve estacionado durante pouco tempo exercendo as funções de padre numa igreja paroquial. As ilhas produziam sorgo e arroz, cocos e muitos outros frutos, bem como grandes quantidades de porcos, cabras, patos e pombos, sendo
estes caçados de um modo quase copioso. Muita desta comida fora cultivada e criada pelas comunidades instaladas na costa, sendo que o marfim só poderia vir do interior do continente africano. Por tudo isto, somos forçados a concluir que o impacto do comércio português em Quirimba por certo se fez também sentir no interior. Santos descreveu a população fixada na costa africana com os adjectivos "pintada" e "bárbara", mas diz ter ouvido falar de um grande reino situado no interior que dava pelo nome de Mongallo. Gaspar Reimão, ao escrever a respeito da sua estada nas ilhas em 1609, conta que os africanos que habitavam a região continental costumavam atacar as ilhas, atravessando para isso os baixios quando a maré estava baixa, devendo então os assentamentos ser fortificados.4''
No século xvm, todas as ilhas estavam ocupadas pêlos Portugueses na qualidade de prazos, obedecendo estes a uma estrutura muito semelhante à que era praticada na Zambézia. Formavam uma comunidade isolada, sem quaisquer contactos regulares com a Ilha de Moçambique, mesmo sem o seu apoio, dependendo por isso de si mesmas enquanto unidades singulares. Nomeava-se um capitão-geral, quase sempre um dos portugueses mais importantes do arquipélago, que, e em termos nominais, ficava à frente das forças locais, tendo acesso às reservas de armas de fogo fornecidas pelo governo. Porém, na prática, cada ilha funcionava como uma pequena república, dependendo a sua defesa dos escravos domésticos e a sua riqueza do comércio com o continente. As ilhas eram dominadas por duas poderosas famílias afro-portuguesas: os Meneses e os Moraes. A primeira remontava à época das inúmeras actividades lucrativas levadas a cabo pelo frade dominicano João de Meneses, que comprara Quirimba logo no início do século e que ali se estabelecera como padre encarregado de uma paróquia e como senhor. João de Meneses possuía um exército privado de escravos, o que lhe permitiu desafiar com sucesso as ordens do vice-rei e dos seus superiores dominicanos, que tentaram fazê-lo comparecer perante um tribunal. Tudo indica ter ele desenvolvido o comércio de escravos com os Franceses, que visitaram as ilhas na década de quarenta precisamente em busca desta "mercadoria". Em 1744, a família Moraes controlava já quatro das ilhas que constituíam o arquipélago, mas era no extremo sul do mesmo, em Quisi vá, que se encontrava o seu principal assentamento, funcionando este como uma espécie de base comercial no que se referia às trocas com o porto de Arimba, situado no continente. Na Segunda metade do século, os Moraes transformaram-se nos "fazedores de reis" entre os macuas fixados na orla costeira continental, e, em 1790, dizia-se "existirem chefes que só ocupam este ou aquele trono porque um Moraes aí os colocou".
Em meados do século xvm, o comércio entre Quirimba e Moçambique continuava a depender das monções, sendo levado cabo em embarcações ao estilo árabe, "as quais os negros usavam antes de os termos descoberto". Estas embarcações transportavam escravos, marfim, arroz, milho, maná, carapaças de tartaruga e caurim. As quarenta barras de marfim enviadas para Moçambique em 1762 constituíram uma parte relativamente pequena do total das seiscentas ou setecentas barras exportadas a partir da ilha, mas o negócio dos escravos constituía algocompletamentediferente. Em meados do século, as ilhas Quirimba começaram a emergir da obscuridade em que haviam estado mergulhadas. O labirinto de característicos canais, enseadas e pequenos portos protegidos revelou-se ideal para a actividade clandestina, e o comércio ilegal de escravos estimulou a vida comercial da região da mesma forma que o comércio ilegal do ouro o fizera durante o século XVI. Navios árabes provenientes de Zanzibar e Qufloa rumavam para sul no intuito de vender provisões e de comprar os escravos disponíveis nas ilhas. Em 1762, consta que o número de embarcações árabes ancoradas em Quirimba rondava as set. Enquanto isso, receava-se em Moçambique que este negócio, próspero, é certo, mas ilegal, não fosse só uma forma de escapar ao pagamento de impostos alfandegários, mas que acabasse por cair nas mãos dos Árabes ou dos Franceses. Em 1765, e depois de uma disputa com o governador, as famílias afro-portuguesas de Amisa, no extremo norte do arquipélago, tentaram colocar-se sob a protecção dos sultões de Quíloa.
Depois de o governo de Moçambique se ter separado de uma vez por todas de Goa, em 1752, o governador-geral deu início à construção de um forte em Ibo, forte este que, em 1763, foi elevado à categoria de município. Os trabalhos de construção da fortaleza foram conduzidos na década de setenta, depoi s do que se criou o distrito de Cabo Delgado, tendo para aí sido enviado um governador. Uma vez construídos os armazéns e a igreja, a ilha viu-se dotada de uma casa aduaneira em 1786. Posteriormente, em 1791, António de Melo e Castro tratou de dar início aos trabalhos de construção de um novo forte. Tratava-se de um edifício muito bonito, em forma de estrela, que se elevava nas margens barrentas que conduziam as embarcações até ao porto de Ibo por um estreito canal de
recifes." O comércio de escravos fez com que Ibo conhecesse uma grande prosperidade. Edificou-se um sem-número de ruas repletas de casas, e, em torno da praça, ergueram-se belíssimos edifícios públicos. No início do século XIX, apenas Moçambique ultrapassava Ibo enquanto centro onde o comércio se caracterizava precisamente pela prosperidade.
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Edição de Novembro de 1997

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