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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO
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LILIA Maria Clara Carrière MOMPLÉ, nasceu a 19 de Março de 1935, na Ilha de Moçambique. Fez o ensino
secundário na então Lourenço Marques. Devido às altas classificações obtidas , pôde conseguir a ida para
Portugal para prosseguir os estudos, requentou o 2° ano de Filologia Germânica e licenciou-se em Serviço
Social no Instituto Superior do Serviço Social de Lisboa. Depois de, em 1964, viver algum tempo em Londres,
voltou, em 1965, a Moçambique. De 1968 a 1971, viveu com seu marido, em S. Paulo e Baía, Brasil. Regressada
a Moçambique volta à Ilha até 1981 em que, ingressando na Secretaria de Estado da Cultura, veio para
Maputo. Actualmente é Directora do Fundo para o Desenvolvimento Artístico e Cultural de Moçambique e
Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos, de que anteriormente
foi Secretária-Geral Adjunta e Membro do Conselho Fiscal. É membro do Núcleo de Formação do Conselho
Coordenador dos Escritores da África Austral (Southern African Writers Council). Em 1994
participou no Workshop de Escritores integrado na Feira Internacional do Livro do Zimbabwe, proferindo
duas palestras. Em 1997 foi seleccionada, junto com 35 escritores de todo o mundo, para participar no
International Wríting Program, na Universidade de Yowa, nos Estados Unidos. Ganhou o 1º Prémio
de Novelística no Concurso Literário do Centenário da cidade de Maputo, com o conto "Caniço". "Ninguém
matou Suhura", contos, foi o seu primeiro livro, 1988, a que se seguiu o romance "Neighbours", 1995.
Tanto estes dois livros como este agora publicado, são sempre inspirados na vida quotidiana de Moçambique
desde o tempo colonial até à actual. "Ninguém matou Suhura", encontra-se traduzido em italiano pela ETS
e em inglês pelo Congresso dos Escritores Sul-Africanos.
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A AMANTE DO MAJOR
A amante do major-general crava os olhos no homem que está sentado
na varanda do 2º- andar mesmo em frente e sibila, indignada: "bêbado". Consegue vê-lo perfeitamente,
recostado na cadeira de napa meio encardida, Xiríco na mesinha ao lado, copo de cerveja na mão. "Bêbado",
repete ela, sem desviar os olhos do homem "toda a tarde vai beber". E, com estas palavras, procura escamotear
de si própria o motivo real da sua indignação. O homem vai beberricando a cerveja com uma sofreguidão
mal contida, a atenção centrada no copo e no Xiríco. Por um instante, por um brevíssimo instante, a amante
do major-general supõe que ele dá pela sua presença mas logo se apercebe que, como sempre, aquele olhar
resvalante a exclui do seu campo de visão, inteiramente preenchido pelo Xiríco e pelo copo de cerveja.
É domingo e, como acontece todos os domingos a esta hora, a amante do major-general vem até à varanda
que dá para a rua. Almoçou sozinha, na enorme sala comum que poderia ser alegre e arejada, dadas as suas
dimensões, a cor branca das paredes e a ampla porta envidraçada que comunica com a varanda. É, porém,
um local sombrio, tal a profusão de mobiliário de precioso e escuríssimo jambire, alcatifas, bibelots
de metal, maples de veludo e pesados cortinados. Até mesmo a poeira parece circular na sala agitadamente,
ansiosa por se libertar de tamanha ostentação. A sala é, na verdade, um lugar que suscita, nos visitantes
de espírito mais sensível, uma melancolia insidiosa e funda que, por vezes, no meio de uma conversa,
os leva a despedir-se, acossados de pressa, como se, de súbito, lhes falte o ar, naquele ambiente, onde
o luxo, aliado a um notório mau gosto, produz um efeito de extrema opressão. E os próprios visitantes
se espantam com a urgência que os move a demandar a rua, pois ignoram que a melancolia acumulada assim,
inconscientemente, chega a ser mais insuportável que a própria dor. Contudo, para a amante do major-general,
a sua sala é o seu reino, repleto de móveis, alcatifas, cortinados e bibelots que ela própria escolheu
e que o major-general comprou sem regatear os altos preços e a duvidosa serventia. Por isso ela se sente
ali perfeitamente, como ainda há pouco, enquanto almoçava, sentada à enorme mesa de jambire, servida
por um empregado silencioso e eficiente e sentindo subir-lhe à cabeça a embriagadora sensação que sempre
lhe provoca o facto de constatar que tudo quanto os seus olhos abarcam lhe pertence. Depois do almoço,
o relaxante ritual de se vestir e maquilhar não fez mais do que aumentar-lhe a momentânea boa disposição.
Ritual a que ela se entrega com o zelo das mulheres que vivem sós e procuram, com a sua aparência cuidada,
compensara solidão, provocando nos outros admiração, invejas e secretos desejos. Já no quarto de dormir,
despiu o robe que envergara depois do banho matinal, com o qual tanto lhe agrada deambular pela casa
nas manhãs de domingo. Trocou-o então pelo vestido que já havia escolhido de véspera. É de shantung de
seda, verde-mar, colado ao corpo, com um generoso decote que se repete nas costas, abotoadas, até à cintura,
por minúsculos botões forrados. A nota moderna é dada pelo cinto largo e pelas mangas muito franzidas
nos ombros, terminando, bem justas, um pouco acima dos cotovelos. Depois de vestida e calçada, a amante
do major-general olhou-se ao espelho aprovativamente, ciente de que o vestido se adapta perfeitamente
ao seu corpo delgado e sinuoso e a cor verde-mar lhe realça a ambarina pele de mulata clara. Passou
então a loção adstringente pelo rosto e aguardou que esta fosse totalmente absorvida. Espalhou depois
a "base", primeiro com pancadinhas leves e rápidas, seguidas de sábias massagens circulares, até que
a pele adquiriu aquele aspecto luminoso que só os produtos de qualidade podem dar. Foi depois a vez de
fixar o pó de arroz, finíssimo e perfumado, passar um toque de blush pelas maçãs do rosto e realçar o
contorno dos lábios com o baton vermelho-ocre. Finalmente, a maquilhagem dos olhos requereu todo o cuidado
para combinar o jogo de sombras nas pálpebras e desenhar o impecável traço de eye-liner, bem rente às
pestanas, por sua vez alongadas com um pouco de rímel. Só então, depois de passar uma derradeira gota
de perfume pelo lóbulo da orelha e de mirar, mais uma vez aprovativamente, a imagem que o espelho lhe
devolvia, a amante do major-general se considerou pronta para sair do quarto. Encontra-se agora, como
todos os domingos à tarde, desde que vive nesta flat, à espera do amante, na varanda que dá para a rua,
oferecendo-se entretanto, qual trofeu desejável e inacessível, à contemplação de transeuntes e vizinhos.
A esta hora, a rua encontra-se quase deserta e pesa no ar um tédio morno, latente durante os dias
de semana e que, nas tardes de domingo, se torna quase palpável. Tédio talvez segregado pelos prédios
e vivendas, construções incaracterísticas, de uma beleza fácil e cansativa, concebidas, ainda no tempo
colonial, por empreiteiros portugueses, com muito dinheiro e duvidoso gosto, os quais imprimiam, nas
suas obras, a marca da própria vulgaridade. Mas pode também acontecer que até sejam os moradores dos
prédios e vivendas os causadores deste tédio. Uns já aqui viviam na época colonial. São, na sua maioria
portugueses que, embora não tenham abandonado o país depois da independência, guardam um amargo ressentimento
contra todos os moçambicanos e recordam com saudade o tempo em que nenhum negro se atrevia sequer a passear
nesta rua. Outros são cooperantes das mais desvairadas origens europeias e americanas. Mal se vêem
na rua pois entram e saem de casa nos seus carros reluzentes e, nos fins-de-semana, voam para a África
do Sul ou Suazilândia ou então empanturram-se de álcool, na companhia de outros cooperantes, nos "complexos
turísticos" e "boites" da cidade. São criaturas muito temerosas dos "instintos roubadores" dos moçambicanos
e, por isso, resguardam-se atrás de muros gradeados, protegidos por cães ferozes e por guardas que mantêm
de plantão, dia e noite. Outros ainda são negros, famílias inteiras, oriundas dos subúrbios. Chegaram
logo após as nacionalizações dos prédios, com a cabeça repleta de sonhos e esperanças, como se o facto
de virem ocupar estas casas lhes conferisse, automaticamente, o direito de levarem a mesma vida regalada
dos colonos que as abandonaram. A realidade porém, mostrou-se bem avara em benesses e hoje vivem na miséria,
permanentemente preocupados em desenrascar a vida, à custa de expedientes que contrariam a sua vivência
de gente pobre mas arreigada a princípios morais herdados de geração em geração. Esses mesmos princípios
leva-os a acolher todos os parentes que chegam do mato, aos magotes, fugidos da guerra, trazendo apenas
os andrajos que lhes cobrem os corpos estropiados e, nos olhos alucinados, as imagens de horror que os
levaram a abandonar as suas terras. Constituem uma autêntica sobrecarga humana na cidade hostil que deles
não necessita, porquanto tudo o que sabem produzir se relaciona com o campo, onde deixaram as suas raízes
e, por vezes, até o gosto de viver. Finalmente, um outro tipo de gente tem vindo a instalar-se nesta
rua: São os compradores de chaves, indivíduos de todas as raças a quem, geralmente, o dinheiro não custa
a ganhar e que, a troco de alguns milhões, conseguem que os verdadeiros inquilinos abandonem as suas
casas, passando, fraudulentamente, os contratos de arrendamento para seu nome. A amante do major-general
é, indirectamente, uma compradora de chaves. Viveu toda a sua vida numa flat da Malhangalene mas, logo
que se tornou amante do major-general, passou a queixar-se de que não suportava mais aquele lugar tão
impróprio, com problemas de água, de lixo, de insegurança, de má vizinhança, enfim. Até que um dia, numa
das suas visitas dominicais, o major-general, mesmo antes de a saudar, lhe disse triunfante: "Venha ver
a casa onde vais morar agora". Havia comprado, por bons milhões, as chaves desta flat, em pleno Bairro
da Polana, a um casal de funcionários públicos que, estrangulado pelo constante aumento do custo de vida,
resolveu regressar à sua suburbana Mafalala, passando, ilegalmente, o contrato de arrendamento da sua
flat para o nome da amante do major-general que aqui reside há mais de dois anos. Agora, da varanda,
ela abarca com o olhar um longo troço da rua que, como sempre, não lhe oferece nada de novo. As mesmas
crianças brincando desconsoladamente nos passeios, os mesmos carros, alguns de ostensivo luxo, deslizando
em silêncio, com os seus ocupantes muito cientes da alta conta em que eles próprios se têm. Os mesmos
chapas, quase vazios por ser domingo, mas rangendo penosamente, jamais refeitos do peso das pessoas que,
durante a semana, têm que transportar, apinhadas como gado. E ainda os mesmos grupos de visitantes
dos doentes internados no Hospital Central que fica mesmo ao fundo da rua. É, em geral, gente modesta,
para quem estas visitas são, simultaneamente, um dever e um passatempo domingueiro. Lá vai agora um grupo,
o homem um pouco à frente, apertado no seu velho casaco puído, o rosto brilhando de suor da longa caminhada
desde os subúrbios, o andar meio bambo de cansaço e dos sapatos cambados, salpicados de lama. Um pouco
atrás seguem três mulheres, arrastando as chinelas de plástico. Duas levam marmitas amarradas em desbotados
lenços de cabeça e a outra, um pouco mais jovem, parece exausta de carregar um filho nas costas e outro
no ventre. De vez em quando conversam entre si mas logo se calam para melhor caminhar, meio inclinadas,
como árvores batidas pelos ventos da vida. A amante do major-general contempla tudo isto com
um enfado mortal. Não fosse o homem sentado na varanda em frente, já se teria retirado para a macieza
dos seus sofás de veludo e aí esperaria o amante que não tarda a chegar. Mas algo mais forte do que ela
a retém de pé, travando esta luta surda e inglória que se arrasta desde o primeiro domingo em que, depois
do solitário almoço, ela se vestiu, maquilhou, perfumou e veio para a varanda. Nesse primeiro domingo,
já lá estava o homem, sentado na cadeira de napa encardida, absorto no Xirico e na cerveja que, ao longo
da tarde, iria bebendo. Ela agradou-se logo daquele rosto grave e melancólico, não obstante a extrema
juventude dos seus traços. E também das mãos, ossudas e nervosas, que seguravam o copo de bebida com
a delicada firmeza de quem tange as cordas de um instrumento. O homem, porém, ignorou a presença daquela
mulher que, da sua varanda o observava, toda oferecida e convicta do seu poder de sedução. E continua
a ignorá-la, todos os domingos, ao longo de dois anos. Tivesse ele, uma única vez, demonstrado algum
interesse e a amante do major-general esquecê-lo-ia, talvez, imediatamente. Assim, pelo contrário, e
à revelia da própria vontade, pôs-se a desejá-lo com um frenesim inteiramente estranho à sua natureza
fria e calculista, passando mesmo a espiá-lo às horas em que ele entra e sai de casa, apressado e grave,
com a pasta debaixo do braço. E, quantas vezes, ao sentir as rechonchudas mãos do major-general percorrer-lhe
o corpo, ela imagina como deve ser diferente o dedilhar dessas outras mãos ossudas e nervosas. E, quantas
vezes, no breve lapso de um beijo, ela procura, no rosto desgastado do amante, esse outro rosto muito
jovem e já tão profundamente tocado de melancolia. A amante do major-general é a primeira a reconhecer
a insensatez deste desejo por um homem praticamente desconhecido. Dele sabe apenas que é professor do
ensino secundário, casado, pai de quatro filhos e que tem a casa a abarrotar de parentes fugidos da guerra.
Calcula ainda que, apesar de letrado, é, sem dúvida, muito pobre. E ela que, toda a sua vida, nutriu
uma institiva repulsa por gente pobre, incluindo a própria família, dá consigo a embonecar-se, todos
os domingos, especialmente para um professor pelintra que nem a vê, E o mais enervante, para a melindrosa
mulher, é o facto de já não encontrar consolo nos olhares cobiçosos de outros homens pois é deste que
ela reclama a confirmação da sua feminilidade e beleza. Por isso agora, radiosa no seu vestido verde
mar, ao vê-lo todo entregue à bebida e ao Xirico, a amante do major-general continua a fixá-lo com um
olhar branco de rancor. O mesmo olhar que um dia, num futuro não muito distante, sentado no banco dos
réus, ele irá captar e o levará a interroa"'--se, cheio de preplexidade, "porque me odeia tanto esta
mulher que mal conheço?" Com efeito, terá dela apenas uma ideia vaga e imprecisa, de alguém que, casualmente,
se avista de relance. Nesse dia, a amante do major-general será a única testemunha de acusação. Nem
mesmo os familiares da esposa do réu se prestarão a depor contra ele, porque, apesar de campónios analfabetos,
carregam em si uma sabedoria antiga que lhes permite distinguir um criminoso de um homem acuado pelo
desespero. A amante do major-general, porém, logo que tiver conhecimento da tragédia, ousando mesmo
contrariar o amante, apresentar-se-á como testemunha de acusação, aproveitando-se da privilegiada situação
de vizinha do réu. E, nessa hora de vingança, incriminará o professor com afirmações temerárias e falsas.
E, a certa altura, dirá mesmo, peremptória: "O réu cometeu o crime premeditadamente. Ele não gosta de
mulheres, eu acho!" Tal afirmação provocará uma onda de risos na assistência e levará o juiz a ordenar
à testemunha de se abster de emitir opiniões pessoais, fora do contexto do interrogatório. Ela abster-se-á
de emitir opiniões pessoais mas continuará a fixar o réu com os olhos brancos de rancor. Rancor que dará
lugar a um brilho de triunfo quando, apesar de todas as atenuantes, for lida a pesada sentença de quinze
anos de prisão. Todavia, nesta tediosa tarde de domingo, a amante do major-general ignora ainda que,
num futuro não muito distante, viverá a sua hora de vingança. Por isso continua a observar o professor
com o mesmo fulgor maligno no olhar e só dá pela chegada do amante quando este acaba de sair do seu potente
Volvo. Corre então para dentro de casa pois ele gosta de ser recebido à porta da sala. Cumprimentam-se
quase cerimoniosamente, sem beijos nem abraços, porque o major-general, casado há mais de vinte anos
com uma mulher que ama à sua maneira, tem sempre muita dificuldade em adaptar-se à situação de amante,
fora da cama. Aí todo ele se derrete em carícias, com um ímpeto quase feroz. Mas fora da cama prefere
assumir o papel de amigo protector que se preocupa com o bem-estar da amiga, exigindo apenas gratidão
e respeito. O major-general é um quarentão pequeno e nervoso que conserva ainda resquícios do aprumo
dos seus tempos de guerrilheiro da FRELIMO. Aprumo que permaneceu notável durante os primeiros anos de
Independência e que se foi diluindo à medida que a guerra "civil" se eterniza e ele vai sendo promovido
a postos cada vez mais elevados. Actualmente, não só o aprumo mas os próprios ideais que o nortearam
durante a luta de libertação, e pelos quais estaria disposto a sacrificar a própria vida, foram-se diluindo
também, dando lugar a uma ânsia desenfreada de usufruir tudo o que na vida lhe dá prazer. Não admira
pois que o ventre, atafulhado de boa comida e farta bebida, se apresente agora volumoso e flácido, projectando-se
do corpo como uma caricata gravidez. E que o rosto, outrora de contornos quase ascéticos, esteja agora
deformado pela camada de gordura que, ao longo dos últimos anos, se vem instalando sob a pele macerada.
E que o próprio olhar tenha adquirido a baça frieza da maioria dos abastados deste mundo. Como sempre
que acaba de chegar, passeia-se pela sala, com as mãos nos bolsos, embora não tenha muito espaço de manobra
e se veja obrigado a esquivar-se, ^constantemente dos móveis espalhados em profusão. Acomoda-se, por
fim, num dos maples de veludo, junto da mesinha de tampo de mármore, onde a amante dispõe OG copos e
as bebidas que vai buscar à bem recheada garrafeira. É ela quem prepara o whiskyduplo com gelo para
o major-general e um campar/' para si própria. Há muito que desistiu de convencer o amante a preparar
e servir as bebidas (segundo as revistas mundanas, cabe ao homem essa tarefa) pois ele recusa-se a aceitar
tal norma de etiqueta, "própria para maricas", como afirma. Sentados frente a frente, bebem devagar,
em pequenos goles, como convém a quem, ao almoço, se fartou de vinhos de boa marca. Conversam pouco,
de assuntos triviais, mas agrada-lhes a mútua companhia, sobretudo pela antecipação de pecado que ela
contém. Para a amante do major-general é também muito lisonjeiro que este lhe reserve as tardes e
as noites de domingo pois, só em ocasiões excepcionais, ele as passa com à esposa e os filhos. Assim,
embora não o ame, trata-o sempre com uma deferência atenciosa. Agrada-lhe ainda a perspectiva de jantar
fora, num restaurante de luxo, como é hábito desde que se tornaram amantes, e até, lá mais para a noite,
partilhar com um homem a sua cama. Neste momento, beberricando o seu campari e conversando de
coisas agradáveis (nada de guerras e outros enfadonhos assuntos), ela quase consegue libertar-se da obssessão
pelo homem que continua sentado na varanda em frente e que, todos os domingos, a ignora e humilha. Entretanto,
o professor, alheio às aflições e raivas que provoca na amante do major-geneal, escuta com atenção o
relato de futebol enquanto bebe a cerveja que hoje encerra, no seu travo amargo, uma ponta de remorso.
Remorso que o acompanha desde manhã, quando a esposa o viu chegar com as duas "médias" que fora comprar
ao quiosque da esquina. "Não te esqueças dos livros e da roupa para as crianças. Qualquer dia começam
a apanhar faltas", disse ela, fixando intencionalmente as garrafas de cerveja. "Está bem. Amanhã trato
disso", retorquiu o professor, arrumando apressadamente as garrafas na geleira vazia. Aborrece-o,
não tanto a implícita censura da esposa mas, sobretudo, o facto de se ver obrigado a mentir para a sossegar.
Sabe perfeitamente que amanhã não vai ter dinheiro para comprar os livros escolares e a roupa para os
filhos, provavelmente mal poderá alimentá-los. Daí este sabor a remorso no travo amargo da cerveja
que o professor vai bebendo devagar, para a fazer render até ao fim do relato. Embora também não ignore
que, sem estas curtas horas de evasão ao domingo, uma espécie de ritual de que o relato de futebol e
a bebida fazem parte, não poderia suportar a monótona correria dos seus dias. Desperta sempre com
a sensação de que já está atrasado, arranja-se a correr e a correr engole a chávena de chá quase amargo
(o açúcar é caro) e o pedaço de pão seco. Fica-lhe sempre uma vontade aguda de tomar café que muito aprecia,
sobretudo de manhã, mas não pode dar-se a esse luxo. Corre então para a Escola Secundária onde lecciona.
Vai a pé, porque quase não existem machimbombos na cidade e o preço dos chapas é proibitivo para a sua
bolsa. Chega à Escola transpirado e ciente de que grande parte das suas energias já foram gastas antes
de iniciar o trabalho. Sempre gostou de ensinar e é um dos poucos professores de Escola que seguiu
a carreira de docente por vocação. Mas todo o seu entusiasmo inicial se vem desgastando perante turmas
de cinquenta alunos, amontoados pelas salas, sem um mínimo de condições para assimilar a matéria. São,
na sua maioria, adolescentes que desprezam o estudo e os próprios professores, sobretudo os que não aceitam
subornos, como ele. E que, por esse motivo, se apresentam com a roupa puída, os sapatos cambados e até
rotos, comparecendo, todos os dias, ofegantes e suados, por não possuírem carro próprio nem dinheiro
para chapas. Quando, cerca das 13 horas, as aulas terminam, o professor corre para casa onde o espera
o minguado almoço que mal lhe dá forças para preparar as aulas, corrigir exercícios e ainda leccionar
no Ensino Nocturno. Finalmente, perto da meia-noite, regressa a casa, extenuado e amargo e estatela-se
na cama como um ébrio, para no dia seguinte despertar com a eterna sensação de que já está atrasado.
E a corrida recomeça, de manhã à noite, inglória corrida que mal dá para a família não morrer de fome,
estranha recompensa para tamanho esforço e tantos anos de estudo. Ah! ultimamente tem havido algumas
surpresas. São os familiares, fugidos da guerra, que encontram abrigo certo em casa do professor, porquanto
este bebeu no leite materno o espírito de hospitalidade que o leva a acolhe-los e a repartir com eles
o pouco que possui. A última foragida foi uma tia que, por ser viúva e sem filhos, vivia na Manhiça,
zona intensamente afectada pela guerra, com o pai, avô materno do professor. O velho devia ter mais de
oitenta anos e recusou-se sempre a abandonar a palhota e o lugar onde se encontravam sepultados os seus
mortos. Com efeito, dir-se-ia até que, lá do outro mundo, estes o protegiam, porque nos frequentes ataques
da RENAMO àquela região, fora sempre poupado, provocando mesmo, na população, algumas suspeitas de que
se entendia com os "matchangas". Um dia, porém, estava ele sentado à porta da palhota, com as pernas
estendidas para as aquecer ao sol, quando surgiu, de repente, um grupo de "matchangas", munidos de espingardas
e catanas. Um deles, provavelmente o chefe, ordenou-lhe: - Velho, dá lá qualquer coisa para comer!
O avô que dormitava um pouco, acordou ainda absorto nos seus sonhos e encarou os homens, sorrindo com
a boca desdentada. - Velho, dá lá qualquer coisa para comer! - exigiu de novo o que parecia ser o
chefe. Os olhos embaciados do avô mal distinguiam os recém-chegados e muito menos o seu esgar cruel,
as espingardas e catanas; tão pouco os seus ouvidos alcançaram aquelas palavras ríspidas e urgentes.
Portanto deixou-se estar, sorrindo sempre, mesmo quando o homem que falava, já irado, rosnou: "Este velho
já está-me a chatear!", depois do que, sacando de uma "experiente" catana, lhe decepou a cabeça. Esta
caiu, direita como um trofeu, de olhos vítreos e boca escancarada, ao lado do corpo que continuou encostado
à palhota, encharcando-se lentamente de sangue. Tudo isto observou a tia do professor, por uma fresta
da janelinha de madeira do seu quarto, tudo isto ela observou, tremendo de medo e indignação, sem poder
socorrer o velho pai, nem sequer gritar. Os "matchangas" acabaram por entrar na palhota e ela só teve
tempo de fugir pelo quintal e correr para o esconderijo no meio do mato, onde permaneceu até aqueles
partirem. Quando regressou à palhota encontrou-a completamente saqueada. E, qual lúgubre sentinela, o
velho pai lá estava, o corpo hirto e ensanguentado, encostado à palhota, a cabeça ao lado, com a boca
escancarada, sorrindo para a eternidade. Gemendo de aflição, a tia enterrou o velho com as próprias
mãos, debaixo do cajueiro onde repousam os mortos da família. Depois da solitária cerimónia não descansou
um instante e, movida pela dor e pelo medo, andou sem parar nem distinguir os dias das noites, até que
chegou a Maputo onde, depois de inúmeras vicissitudes e desesperos, acabou por encontrar o sobrinho.
Este acolheu-a naturalmente, embora já tivesse a casa superlotada de parentes seus e da mulher, e a tia
fosse mais uma boca para alimentar e mais um corpo a dar guarida. É assim que a vida do professor
não é propriamente vida mas uma contínua luta para "desenrascar" o sustento da família, com um mínimo
de dignidade. Por isso ouvir o relato de futebol bebendo cerveja, nas tardes de domingo, constitui para
ele o único oásis de despreocupação, no deserto dos seus agitados dias sem perspectiva. Houve tempos
em que alguns colegas traziam as suas cervejas e juntavam-se aqui a ouvir o relato de futebol. Mas a
cerveja tornou-se cada vez mais cara e, um a um, os colegas foram optando por se reunir em casa de um
vendedor clandestino de tontonto, onde se divertem por menos dinheiro. Desafortunadamente, o professor
não suporta nem o cheiro de tontonto e acabou por ficar sozinho com a sua cerveja que agora se reduz
a duas médias. A esposa sempre lhe compreendeu a necessidade de evasão nas tardes de domingo. Porém,
à medida que as privações se agudizam, vai diminuindo também a sua compreensão. E esta manhã, pela primeira
vez, criticou-o tacitamente, lembrando-lhe a compra urgente de material escolar para os filhos, com os
olhos fixos nas garrafas de cerveja que ele precipitadamente arrumava na geleira. E agora, também pela
primeira vez, aproveitando a ausência de toda a família que ao domingo à tarde se sente na obrigação
de dar um passeio, a mulher invade-lhe o espaço sagrado da varanda e, postando-se à sua frente, reclama
os livros e a roupa para as crianças e até a roupa para si própria ela reclama, o que aliás é compreensível,
dado que possui apenas dois vestidos desbotados. . "Mas, aqui não, por favor, agora não", roga o professor
dentro de si, embora permaneça silencioso, tentando ouvir o relato por entre as reclamações da mulher.
"Passe em profundidade de Chiquinho" ... "As sapatilhas já estão completamente rotas"... "Pontapé de
baliza pertencente à equipa do"... "Qualquer dia chumbam por não terem material"... "Goolo, goolo, goolo
de" ... Sinceramente até sinto vergolha de sair à rua" ... "Avança, faz o cruzamento e oferece o golo
a ...". Já não é possível seguir o relato porque a mulher, cuja paciência parece ter alcançado o ponto
de rotura, entrou agora num estado de frenesim e grita sem parar, abafando completamente a voz do relator.
Lentamente, muito lentamente como quem se move numa outra dimensão, o professor levanta-se da cadeira
e dirigindo-se à mulher que o fita preplexa, com ambas as mãos apodera-se-lhe da garganta que vai apertando,
apertando, até que ela deixa de estrebuchar e, escorregando, acaba por cair, inerte, no chão. Assim
a deixa o marido que se instala de novo na cadeira de napa, ouvindo o relato até ao fim e beberricando
a cerveja até à última gota. Só então parece dar pela esposa, estatelada no chão e, ao aproximar-se dela,
vê o seu próprio espanto reflectido na expressão incrédula e magoada do rosto da morta. Com gestos de
autómato ergue-a do chão e leva-a nos braços para o quarto onde a estende, com infinito cuidado, na desconjuntada
cama de casal. Um pouco mais tarde, já na esquadra da polícia, dirige-se ao agente de serviço e confessa,
num murmúrio: - Venho entregar-me. Matei a minha mulher. - Matou a sua mulher? - pergunta o polícia,
atónito, pois não consegue relacionar aquele homem de aspecto tão pacífico com um crime de morte. -
Sim, matei - murmura de novo, o professor. - E porquê? Qual foi o móbil do crime? - insiste o polícia,
num tom já mais profissional mas ainda incrédulo. - Não sei. Acabo de a matar. - Não sabe? Então
acaba de matar a sua mulher e não... - Não sei... talvez porque eu próprio já não consigo viver -
responde o professor, tirando do bolso um velho lenço, com o qual tenta ocultar as lágrimas que, teimosamente,
lhe brotam dos olhos.
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GLOSSÁRIO
APIYAMWENE - Mulher mais respeitada pela comunidade, espécie de conselheira.
BAGIA - Pastel de farinha de grão ou feijão nhemba com cebolinha, malagueta, e temperos. BUNDA
- Nádegas avantajadas. CANTINEIRO - Proprietário de lojas rurais. CHAMUÇA - Pastel de massa tenra
e recheio de carne, camarão, peixe ou vegetais e temperos CHAPA - Transporte semi-colectivo muito
usado em Moçambique. CHIGUINHA - Prato típico do sul de Moçambique confeccionado com mandioca,
feijão nhemba, cacana e leite de amendoim. CH1MA - Farinha de milho ou mandioca cozida com água e
sal. CONTINUADOR - Termo utilizado pela Frelimo para designar crianças e adolescentes. CULIMAR
- Cultivar a terra. FEIJÃO NHEMBA - Variedade de feijão, de vagem longa, muito cultivado em Moçambique.
KHULO - Irmã mais velha da mãe. LANDEVA - Mulher natural da província de Maputo. MACALA - Fruta
silvestre existente em todo o território Moçambicano. MACUTE - Folhas de palmeira secas muito utilizadas
para a cobertura de palhotas. MATABICHO - Primeira refeição do dia. MATAPA - Folhas de certas
plantas cozinhadas com coco ou amendoim. MATCHANGA - Termo muito utilizado pelo povo para
designar bandido armado. MICUNE - Lençol feito de capulana. MUCATE - Bolo de farinha de arroz,
leite de coco, açúcar e especiarias. SURA - Líquido que brota do tronco de certas espécies de
palmeira. TORRITORI - Doce de amendoim ou gergelim torrado com açúcar em caramelo. XIRICO
- Rádio portátil, muito popular em Moçambique.
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Edição de Outubro de 1997
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