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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO
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VIRGĺLIO Diogo DE LEMOS (usou também os heterónimos de Duarte Galvão, Bruno dos Reis e Li Lee Yang)nasceu
em Lourenço Marques, a 29 de Novembro de 1929. Fez parte, juntamente com Noémia de Sousa, José Craveirinha,
Fonseca Amaral, Rui Knopfli, do grupo que nos finais dos anos 40 estabeleceu as bases da moderna literatura
moçambicana. Após dois processos judiciais, exila-se em Paris, onde vive desde então, tendo sido durantre
muitos anos jornalista da RF1. Ainda em Moçambique, foi colaborador assíduo na Imprensa local. Foi
editor, com Reinaldo Ferreira e Domingos de Azevedo, do caderno de poesia Msaho.
DO AUTOR
Poemas do tempo presente. Lourenço Marques, 1960 (esg.) Objet à trouver. Paris, La Difference, 1988
L'obscene pensée d'Alice. Paris, La Difference, 1989 (esg.) L'aveugle et 1'absurde. Paris, La Difference,
1990 Negra Azul. Maputo, Instituto Camões - Centro Cultural Português, 1999
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DO MAR O INCRIADO NASCE
A ilha existe não porque a achasses mas porque a nomeias coração
do vento capaz deste segredo vontade grega de amar o que a alma intui e cria.
E de tal
modo ela seria e é desejo que tudo esqueço para vê-la nua devir do sentido no seu sentido vago
louco amor agreste que a utopia apela.
Na ausência de limites para o que sonhas vacilante
avanço ágil mas sem asas sem medida luz do fragmentado verbo.
Rio e choro sendo a máscara
e o rosto Nomeado língua capaz do que não sei Suspenso o tempo do mar o incriado nasce. (Ilha
de Moçambique, 1952)
A LĺNGUA É O EXĺLIO DO QUE SONHAS O imaginário tem
o rosto feminino, do mar a ilha é a sua voz que explode. Tu és o irreal que paira sobre
os outros as coisas. A força da ausência O que sonhamos e nos foge entre dedos: a areia.
Tu és a réplica do oculto a ilha a beleza cruel o pleno nas dores do vazio. (Ilha de
Moçambique, 1952)
ESTALO DA LĺNGUA
E nesta evocação direi orgia de silabados
nomes estalo da língua contra o palatal sou erotismo na vulcânica geografia dos montes
sinuosas cristas desfraldadas consoantes velas panos e vogais vendavais cometas e a quietude
morna do tempo.
Nomes musicais conchas búzios ecos que se impelem se estreitam cetáceamente
pernas braços dedos vulvas de estremecimentos moçambicanamente mamas mamilos magia
em ponta e na ponta das línguas.
Matemwé Kirimba Kissanga monção nos inventários de Meroé
desejo e voz crepuscular e mineral da errância rituais da invenção Mecúfi Mocujo e Pemba
noites viajantes esteiras e raízes aéreas frangipanis baneanes kifulo-me ouamiso-me iboizo-me
e sendo mil sou eu no império dos sentidos na mais pura tradição submarina da malícia
da ironia mil e uma noites d'Ali do mais feliz dos mendigos estalo da língua no palatal
e para quem sabe e pode testiculares estrelas sopros e saxos e silabados nomes. (Ilha
de Moçambique, 1952)
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GÉNESE DOS POEMAS DA ILHA DE MOÇAMBIQUE Américo Nunes
Com Virgílio de Lemos estamos no
caso de uma "insularidade" muito sui generis, que faz explodir o seu conceito tradicional para abrir
novas vias. Se para Bruno dos Reis, um dos seus heterónimos, a errância está na génese da heteronímia,
esta última, fragmentada e tal num inventário de experiências (create new), é um vulcão de vivências.
Quere-nos parecer, pois que a ilha-mar, metáfora, mulher e finito-infinito - num vaivém elíptico, de
e para - tem do espaço das sensações de um F. Pessoa, e libertam o "inconsciente" individual e colectivo
do mundo. O "imaginário" marítimo é mundial: ele pertence tanto aos povos do Pacífico quanto do Indico,
do Mediterrâneo desce ao Atlântico, e deste ao Pacífico. O Cosmos e suas forças têm as suas viagens dos
seres, das plantas e das ideias. A poesia de Virgílio de Lemos, sendo a dicotomia ilha-mar, é, quanto
a mim, mais ilha que mar, um vaivém permanente entre isolamento e abertura. Mas é, sobretudo, "movimento",
diálogo com o Outro - diálogo com os textos que leu e mais o impressionaram - com a música que escutou
e o fez vibrar - com a pintura e as cores, com a própria musicalidade e luz que ele cria. Note-se
que, a partir do "encontro ao vivo" com as gentes da ilha de Moçambique em 1952, sua poesia ganha uma
outra dimensão. A sua estética se organiza por ciclos e subciclos que se movimentam em elipses. E é o
ano de "Msaho", ruptura com a literatura colonial, ano em que ele alerta para omissões e compromissos
de Gilberto Freyre (Aventura e Rotina), ano em que seu poema dilacerante "Paisagem" não podia ser mais
"agressivo", contundente e"profético", ao escrever "Negro gigante, teu músculo forte/vai-se corroendo
lentamente, inexoravelmente,(...) Aqui, os homens, negro gigante, os homens não se entendem./ Estão cerradas
todas as janelas". Claramente o poeta faz a autópsia implacável do sistema em vigor e do seu "fácies"
dito luso-tropical. Não surgem apenas aqueles ciclos mais conhecidos como "A língua é o exílio do que
sonhas", "Rosto, palavra e mar", "A impudica boca" e "Moura e manuelina, luz branca", mas também os ciclos
das ilhas do Ibo, Quirimbas, Ouamisi, Mutanda e Mutemwe, e outros que se nos impõe arrancar ao ineditismo.
Para se entrar neste seu mundo iboal, é necessária a leitura de dois ciclos de poemas: os poemas de seus
heterónimos, como Lee-Li Yang (1951/53) e os poemas do próprio Virgilio de Lemos, escritos em Durban,
diante da casa onde habitou Fernando Pessoa, sua mãe e seu padrasto, cônsul português ali. Dois ciclos
que seriam a "génese" que conduzira o poeta aos ciclos do Ibo/Quirimbas, "Objecto por encontrar" (1957/59),
as 29 ilhas do arquipélago do Norte, "Deusa kimowene do mar" e a Ilha de Moçambique: Muipiti. "Moura
e manuelina, luz branca". Assiste-se de "A língua é o exílio do que sonhas"(52/57) e outros como "Corpo
a corpo silabar", nascidos da sua revisitação de Muhipiti entre 1994 e 96, a uma série de metamorfoses.
E da "ilha", corpo interior do desejo, o poeta faz dela ilha-mar, uma língua de corpo inteiro. Língua
portuguesa que é recriada num "corpo a corpo", "de sopro em sopro", de corpo de grito em corpo de silêncio.
Silêncio em silêncio... Língua capaz de ser "movimento", vertigem" que eroticamente, não esconde as chagas
da memória e da própria história. E da história de cada um dos povos e civilizações que participaram
na expansão marítima, no tráfego de escravos, no escravismo... O poeta viaja pelo corpo. E pelo corpo
da memória. Seu "eu", seu "outro/devir" não somente é crítico quanto não cola a modelos de poetas,
heróis ou civilizações. De um outro modo, talvez mais ousado e experimental, surgiriam mais tarde poetas
como Grabato Dias, Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim, Eduardo White e Nelson Saúte. No primeiro ciclo
há a fulgurância da sensualidade da mulher crioula ou swahili-makwa, de Muhipiti ao Mossuril e Cabaceira
Grande, a volúpia do seu requebro, a sua voz. E será o próprio poeta a dizer-nos que em tudo isto habita
o silêncio da luz quente, luz que é a preamar da inquietação e o sol cru do esquecimento que tudo apaga
da memória, e tudo leva a renascer". E onde "o mistério e magia daquela mulher penetra o mistério da
própria poesia "' . A partir de 1956 nota-se que a sua poesia reparte para outros voos, do esplendor
do corpo telúrico inscrito no mar ĺndico e no Cosmos nasce o corpo a corpo com a palavra2 .Fluxo do desejo
e fluxo do corpo interior da palavra, seus poemas das lhas do ĺndico ganham uma dimensão singular e universal.
Eles chamaram a atenção de Carmen Tindó Secco na sua Antologia do Mar na Poesia Africana de Língua Portuguesa
do Sec.XX. Vol. III, Moçambique, UFRJ, 1999, e de Fernanda Angius em "A herança de Camões na poesia moçambicana"
Oxford/Coimbra 1998 (Actas do Quinto Congresso da Associação Internacional dos Lusitanistas). Diria que
estamos diante de uma poesia que, sendo Mar ĺndico, é "ilha" errante que se desdobra em arquipélago,
constelação de ilhas de um mesmo Cosmos, mundo doloroso por excelência. No último ciclo "Corpo a corpo
silabar" (1994/96), Virgílio de Lemos, depois de uma "errância " que o leva, nos últimos quarenta anos,
a percorrer ilhas do Dodecaneso às Antilhas, índia e Brasil, cinco continentes com relevo para São Vicente,
Itaparica, Comandatuba (Ilhéus), Rodes, Palmos, Paros, Sicília, Noirmoutier, e outras, sempre numa busca
muito pessoal e singular, "emerge" na ilha que é sua paixão, com a mesma contenção, rigor da expressão
e humildade.
Paris 1999
1 - E note-se que é ele quem nos diz que será talvez a herança
de combinações fragmentadas, telúricas, estéticas, civilizacionais aquilo que faz da mulher makwa-swahili,
"sã", ou sinha da ilha, portadoras de forças cósmicas, e um verdadeiro tratado de vitalidade (energia
e harmonia vital) e de imaginação. Tratado de saber estar e viver. 2 - Atente-se numa primeira leitura
apenas em cinco poemas donde ressalta mais do que a virtuosidade da língua, sua matéria e força espiritual,
em "A ilha de Moçambique pela voz dos seus poetas" de Nelson Saúte e António Sopa, ao lado de Rui Knopfli,
Luis Carlos Patraquim, Alberto Lacerda e Glória Sant'Anna, entre outros. (EdJO.Pavilhão Moç.Expo Sevilha/92)
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