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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO
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Poética
A posição da Ilha de Moçambique, reflectida aqui, é verdadeiramente trágica.
É um estágio, cuja solução se fica a dever à solidariedade de toda a sociedade, na sua esmagadora maioria.
Aqui, além do alheamento humano, que transcende qualquer vazio de sentido, solidariza-se com ela e, de
igual modo, ao evocá-la, como símbolo mitológico, configura-se o artifício de uma evocação cantante sob
a esteira genesíaca da nação, hoje encruzilhada em nojenta agonia. Embora o espelho impulsionador
e difuso do seu passado, de ouro e escravos, seja a memória mais fiel deste lugar onde tudo parou, não
havendo nela, por estranheza ou indiferença, mais alguma motivação que suscite o sonho, pelo amor, se
desinventa um espaço onde o onírico e o mistério permitem a realização afectiva, impulsionadora de fusões
de signos, corpos viris e marcas universais da Ásia, Europa e América e Oceânia. É contra o alheamento
da sociedade, para a qual a voz singular do poeta, que comporta outras milhares de vozes sintonizadas
com a tragédia, se dirige num clamor de amor e ódio, atentado a todas frentes, às moucas e frígidas vertentes
do olhar e audição, sinédoque dos que muito competem pelo poder. Pois se assim o fosse o destino desta
alma não escaparia a essa mão aterradora do tempo e estranhamento que a demole, angustiosa e amaríssima,
há muitos anos, quando afinal todos nós podemos nos constituir numa firma de seguro de existência que
lhe falta. Todos os dias é o fogo, uma pedra, uma parede, uma patrimonial e bela cidade que se consome.
Rui-se e incendeia-se um amor, ante a nossa visão cúmplice, porque uma mão apertada a outra, uma mão
abraçada a outra, no lugar de redimir-se, pode salvar o amor que todos anseiam. Este amor configurado
ao humano e ao encontro das culturas e civilizações desde o oriente ao ocidente e desde ocidente ao oriente
banto, como já se disse, chama-se Ilha de Moçambique, porque ainda sobre o antagonismo da dupla substância:
ruína e ternura, ainda pulsa, respira e vive esperançosa no devir. E jamais será tarde para reerguê-la
e reequipá-la. Eis o motor impulsionador da criação, a fina-flor, para onde a memória e os pensamentos
como os do poeta viajam. É esse o seu destino, ainda que esteja eventualmente demarcado sobre o espectro
de outro rumo, a Grécia, que pelo sentido e pela verosimilhança patrimonial, convergentes e actuantes
entre si, apenas são o contraponto de vários destinos, tantas culturas, tantas civilizações, tantas escritas
e tecidos epidérmicos de povos, milenariamente dispostos em comunhão, e, uma vez mais, aqui ressuscitados.
É exactamente isto que se pretende esboçar nestes versos. Sei que muitos irão perguntar porquê Viagem
à Grécia? Viagem à Grécia, mais do que invocação é a celebração de Muípiti no sentido ascendente, uma
viagem que fica pelo imaginário, porque apenas é o espírito de quem escreve que viaja, a confirmar que
com os modestos actos de ler, imaginar, sonhar e pensar também se viaja. Eis como, à realidade circundante,
e pela poesia, se concretiza e se realiza a evasão de todo um sonho e desenfreada ânsia de voo.
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A uma mulher que podes ser tu. Ilha, mãe, amiga, namorada, amante e helénica companheira, que não és
divina, mas sufragas e viajas na raiz divina do amor.
A todos os poetas exilados comigo na poesia.
A Greta-Stina, a lembrar-me do teu nome, a Creta da Grécia que ao Muípiti me traz de volta a sua
memória. ...............................................................................................................................................................................
"Onde o mar, com paredes de vidro, rodeia o centro inviolável: a Ilha" Natália Correia
"Na
Ilha estão os deuses. Some um, logo outro nasce" Natália Correia
"Tudo o que a memória não
guarda/ se dissolve. Morre,/ como se o passado não tivesse contado,/ como se sublime e luminoso, o sangue/
não tivesse sido promessa./ Não há maior tristeza, nem maior consolo/ que viajar só, na tua solidão,/
a brisa que morre,/ ilusão". Virgílio de Lemos
"O mais belo dos amores é aquele que nasce,
cresce, floresce e morre como uma planta, como uma árvore, como um homem... como uma árvore bela, como
a velha nogueira do meu pomar de Besse com os braços já coagulados no limite de um voluptuoso alongamento...ou
de uma dolorosa crispação" Roger Vailland
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1 um
A Ilha é mágica e misteriosa, tu sabes, e eu gosto dela assim pura. Ilha - caminho para
o oriente. Ilha - Mitologia, magia vibrátil, contagiante, em sua esteira aérea e calorosa, desces-me.
Como a luz atravessas-me. Tu que és os ritos, o entreposto e a rota para a índia, a Arábia Saudita, teu
folclore encandeia-me o horizonte. Teus seios geminados eu reparo e não sei mais que fazer, a casa do
meio que tu me és espanto só de ouvir-te, e que milagre, que magia nasce das tuas mãos, dos teus poros.
Palavra que como o fogo aqueces-me o corpo, irreconheço-te só de navegar-te, mulher, meu pulmão, minha
respiração, motor que eu quero impulsionante pelo sangue adentra-me, que é de amar, meu ofício, meu vício,
que existo, pátria, pandora, paquete, palanque meu que podes ser a ideia do moinho ao centro da mó e
na esfera à cabeça do Mediterrâneo. Agora entre as mãos e a língua levo-te como uma donzela à passagem
iniciática do menstruo, como a doce cantiga embrulhada na fogueira levo-te os genes carregados de bateria
e frutos de afecto, ainda aquela memória solar do voo.
2 dois
Cá dentro sinto-me fora.
Mós que te quiero. em abundância, te quiero. Hoje te quiero e sê vinho fabricando-me vertigens e tonturas
de bebedeira. Ou então passa-te por mesa, sustenta a ração toda, eu sou a boca que busca em ti os trabalhos
de amor: beijar-te, sugar-te e sorver-te. Não te desfaleças, o âmbar em tua caverna explode, com os gestos
meus quase te arrebentas. Mós que te quiero, te quiero. Te quiero mágica como a magia que me acolhe ao
teu lugar sagrado e de respeito. Antes que o préstito lhe visite o santuário agora, antes que a manhã,
os pássaros e as pedras se rompam aos gritos pêlos véus doar, te quiero anunciando as odes dos amantes
te quiero neste Fevereiro sem praias, sem limites nem horizontes, te quiero com a luz espia descendo-te
pelas entranhas, ao primitivo berço Polinésio ou banto, antes que sejas o meu sublimado barco, te quiero
meu Tífon que se empresta à insónia, como o sol te quiero nas mãos que te arrasto comigo e junto um povo,
os sábios, uma Grécia inteira pousada ao peito e o legado daqueles que sempre adoraram este lar, mãe.
3 Três
Cada palavra traz consigo um nome, reluzente objecto prenhe de simbologia. É como
um alimento que alivia o sofrimento da carne ou da alma. Eu gosto do nome que é a Ilha, que me traz a
ilhoa, a mulher que tu és, a baba de imaginar-te somente, meu reino de vícios, de riso que perfilas.
Gosto dela e do ar que aqui se respira, gosto do aconchego em que te resumes ao encontro da índia, que
me acorda o seu rico odor perfumado, também da China, ao deus Buda, depois as especiarias deste oriente
ainda virgem como tu. O nome dela traz-me o refúgio, casa, sol, pão. Deus, virgem Maria, rapariga, por
isto lugar da concórdia, lugar dos deuses e adivinhos, motor da criação, por isto agradeço-a, com ela
órfão jamais serei, enquanto a Ilha viver não serei apátrida. Gosto de ti quando me pastoreias os sentidos,
como o vácuo dentro do sangue gosto que tu me sejas. Com a Ilha em meu peito acendem-se-me os mil desejos,
ilusões e esplendores, a tua escultura esbelta/ macua liberta do criador. Por isto, sobrelevo-te à Grécia,
e, antes que desmaies, olha para mim, olha-me por dentro, ó Grécia, gosto de saber-te internamente desde
o chão à fronteira da atmosfera. Aos goles gosto de beber-te e migrar-te da fonte até a lonjura convexa
que me acendes com o teu corpo, se é daqui onde se extrai o produto da abelha mestra.
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66 sessenta e seis
Somos accionistas desta emersa terra. Partimos daqui como chegámos. Tudo
foi bom enquanto durou. Mas é já sem tempo. É sem tempo, devo deixar-te, Miskebijc* meu. Adeus.
*Antiga grafia que leva à designação Moçambique
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Nota:
O original desta obra, intitulado apenas "Viagem à Grécia" foi submetido pelo autor ao
concurso literário "Prémio Revelação AEMO de Poesia", 2001. O Júri decidiu por maioria considerá-lo
vencedor do concurso. Aconteceu, porém, que o autor, por lapso, não enviou o envelope que, interiormente,
conteria a sua identificação, apresentando apenas o pseudónimo no envelope exterior. Essa falta obrigou
o júri a excluir o trabalho, obedecendo ao preceituado no regulamento. Posteriormente, na AEMO foi identificado
ADELINO TIMÓTEO como seu autor. Mais tarde, o original foi apresentado a esta editora que tomou fidedigno
conhecimento da ocorrência e, reconhecendo-lhe a originalidade e o apreciável nível estético, decidiu
publicá-lo, o que o Instituto Camões certamente teria feito, na qualidade de patrocinador do concurso,
se não tivesse acontecido aquela falha de procedimento. O autor decidiu acrescentar ao título original
as palavras "através da Ilha de Moçambique" por lhe parecer necessário em relação ao conteúdo. Destaca-se-lhe
o domínio da poesia em prosa, invulgar entre nós, que constitui uma variante ao seu estilo usado na obra
"OS SEGREDOS DA ARTE DE AMAR", publicado pela AEMO em 1999.
(AEMO= ASSOCIAÇÃO DOS ESCRITORES MOÇAMBICANOS)
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