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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO
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PREFÁCIO Os editores têm sempre a mania de exigirem uma pequena resenha das nossas vidas. Somos
obrigados a abrir algumas estradas e enveredarmos por carreiros que só a nós nos diz respeito. É
assim a vida. Mas vamos a ela: Nasci em Inhaminga, distrito de Cheringoma(província de Sofala) a
um de Agosto do ano 57. Nunca assentei as arraias por largo tempo num determinado local. Andei pelo país
inteiro (exceptuando Tete). De formação tenho um bacharelato que sustenta o Ungulani. De livros posso
mencionar Ualalapi. Orgia dos Loucos e Estórias de Amor e Espanto. Pronto. Cá está parte do meu percurso.
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Capítulo I
Ela pressentiu o momento da mudança ao sentir-se invadida por um exército de minhocas
em cio. Mas tal sinal redentor que aguardava havia mais de treze anos não a perturbou, pois deixou-se
estar sem sobressaltos na mesma posição de todas as tardes da sua velhice monótona e rememorativa. O
sol caia. O vento, entrando pelas frestas da palhota grande, foi ocupando a sala com a lentidão dos camaleões
sem o mimetismo do medo e do disfarce; e com a leveza dos espíritos nunca vistos passou o corpo pelo
tampo da mesa, estendeu as mãos pelas cadeiras sem pés e braços, atirou os olhos sem as íris aos velhos
trastes em agonia, roçou com a língua a esteira esburacada, desarrumou os copos e os pratos partidos
no tempo da fartura, descolou das paredes de adobe as fotografias dos ascendentes perdidos no emaranhado
indestrinçável das lianas do tempo, espantou as baratas em cio, expulsou o ar amordaçado da sala desde
os tempos de vozes ciciadas pelo medo da autocrítica pública-reprimenda que consistia na confissão pública,
entre outros males, das modalidades extraconjugais ante o riso e avidez dos chefes fardados com a balalaica
única do partido único que exigiam dos infractores a reconstituição pela fala e pêlos gestos do coito
que ia do chio da lebre, passando pelo zurro do burro, o grito da águia, o relincho do cavalo, o choro
do crocodilo, até à lassidão das lombrigas, e embrenhou-se no corredor dos passos desconhecidos, enquanto
o ar da memória pulverizava a porta sem dobradiças e contava a todo mundo os segredos por todos conhecidos.
A velha, um pouco impaciente, ia acompanhando o vento na sua deambulação pêlos nostálgicos tempos da
juventude. Apercebeu--se do seu lento caminhar pelo corredor onde outrora circulara com os seios hirsutos
a caminho da alcova; ouviu o assobio de admiração quando os baús e as malas se franquearam com o fragor
decrépito de ossadas dos museus em trespasse, e imaginou as capulanas carcomidas por bichos que nunca
soube nomear pelos próprios nomes a rejuvenascerem. a tomarem a forma primeira nos círculos de Xingomane,
nas rodas extasiantes de quadris em rotação permanente, nos braços em movimento de ballet nunca compreendidos
e estudados, nos seios despontando efusivamente das tiras que os enclausuravam, nas árvores a atirarem
desesperadamente os seus tentáculos aos corpos incandescentes das moças, e nos arbustos das margens do
rio a servirem de suporte às capulanas no momento em que elas, nuas, se aproximavam das águas, deixando-se,
por momentos, possuir pelo falo interminável da luz que as envolvia, aquecendo-as, excitando-as, e, algumas,
não suportando mais o deleite estelar, às águas se atiravam, arfando de gozo. A cama rangeu. Fiapos
de luz desabaram sobre o leito. A língua do vento, num movimento calculado, atirou-se aos cabelos brancos,
circulou pela floresta devastada por fogueiras descontroladas da juventude, e calcou com prazer as cinzas
de folhas e lianas e troncos carcomidos pela idade. A janela de madeira entreabriu-se. O sol tornara-se
vermelho. As copas das árvores iniciaram os seus gemidos de rolas desesperadas. E o vento, numa exaltação
febril, ia revolvendo as cinzas da floresta com a língua seca, crua. As mãos, de uma leveza mágica,
percorriam a encosta escarpada, cheia de escamas de crocodilos, saliências, covas, troncos semi--queimados,
falsos precipícios, planícies lunares e termiteiras abandonadas por formigas esqueléticas. Chegados à
zona dos lagos dos arcanos da vida e da morte, as mãos e a língua detiveram-se bruscamente. As águas,
cristalinas, tomaram repentinamente a cor negra como que a prevenirem os incautos das profundidades insondáveis
dos segredos da vida. Segundos depois, perturbados pêlos reflexos dos lagos dos deuses, seguiram, encosta
abaixo, em direcção ao bosque dos espíritos do prazer. O silêncio pairava no quarto. Jonasse, moço de
pastoreio, metia o gado no curral. Os pássaros, em gorjeios tristes, davam os últimos voos. Um pouco
retirada da zona, entrincheirada na palhota da sua desgraça, Feniasse, moça de encantos perdidos na espera,
não se alarmou com a revoada dos pássaros e muito menos com o canto triste do vento, pois sabia que tais
prenúncios, aguardados há mais de treze anos, trariam à sua cubata o homem predestinado a possuí-la pela
primeira vez nos vinte anos de espera em terra firme. O vento, soltando murmúrios ásperos, ia percorrendo
a grande planície onde outrora se erguiam dois promontórios que perderam a virilidade com as intempéries
incontroláveis dos trópicos da desgraça. As mãos, num gesto desprezivo, calcaram os montículos de uma
fluidez de pântano e seguiram, céleres, em direcção ao bosque dos espíritos que cercaram com a cautela
de sempre. O falo, empertigado, nervoso, prenhe de estrias, penetrou no poço dos espíritos da vida. O
gado inquietou-se. A terra estremeceu. As mãos tremeram. A língua, tal como a do camaleão, vagueou deses-peradamente
pelo quarto. Um grito abriu as portas da noite. Vai chover, pensou Jonasse enquanto se dirigia à pequena
cubata que ficava nas traseiras da palhota grande onde a sua avô, designação que outro significado não
tem, em casos de não consanguinidade, senão o de respeito, remoçava no tumulto do vento feito espírito.
Feniasse, sentindo os abalos do vento no corpo, ergueu-se da esteira e foi fechar a porta de paus com
receio de que as bátegas de chuva não humedecessem a couraça angustiante da espera. Mal ouviu as primeiras
bátegas suicidarem-se no tecto de capim, a velha soergueu-se, pegou na bengala que fora do seu marido,
endireitou as cartilagens do corpo, ajeitou a capulana de tons escuros, olhou em redor, tossiu, e em
movimentos pausados, foi afastando com a mão direita o vento feito espírito á medida que caminhava em
direcção à porta pulverizada pelo ar da memória. Pela primeira vez, em cinco anos de clausura voluntária,
a velha pode enxergar a noite no espaço da sua liberdade. Por momentos, e com os olhos arregalados, deixou-se
petrificar pela noite em que a Lua, cheia como um lago, confraternizava com a chuva miúda e persistente.
Jonasse, entretido com as armadilhas para os ratos selvagens, apercebeu-se de algo estranho quando ouviu
os mugidos inquietantes do gado bovino. A velha, num esforço desmesurado, ia retirando os paus da
entrada do curral. - O que é se passa, vovó? - Nada. Retirados os paus da entrada do curral,
a velha, sorridente, colocou a bengala na axila esquerda e dirigiu-se, com a bosta pendendo nos artelhos,
ao animal mais velho, um boi totalmente negro e com os chifres virados à terra. O boi, de nome Chibindzi,
levara a nascença o nome do filho mais velho, homem que sempre labutara nas minas do Rand durante anos
penosos, regressando, depois, a casa com uma tuberculose e um candeeiro, único bem da contrapartida do
trabalho, que ostentava nas noites de chuva, de luar, de batucadas e de espanto, pois pouco se vira por
essas terras tal magia florescer de uma lata que não criava cinza e muito menos as belas faúlhas que
se libertam do útero, tomando rumos incertos na noite, no qual os homens, agachados e sentados em redor
do fogo real ofertado pela natureza, comentavam tudo, chegando a afirmar que o lume que Chibindze carregava
nos seus passeios solitários mantinha-o em vida, apesar da transparência de cadáver e dos escarros de
sangue que formavam lagos secos na cubata e no carreiro que percorria todas as noites em direcção ao
rio onde se banhava a sós, com o nítido receio que vissem, ainda em vida, os intestinos totalmente acorbardados
nos círculos intermináveis da sua defesa, o fígado britado pelo álcool, os pulmões gretados e negros,
os ossos desarticulando-se de fadiga, o pénis reduzido à inocência da virgindade, e as costelas feitas
hostes à beira do rio em tardes de vento. A pele tornara-se tão transparente que o crânio ostentava
com minuciosidade os seus baixos e altos relevos cobiçados pêlos feiticeiros que se digladiavam em plenas
manhãs de sol pela posse dessa relíquia viva que lhes daria definitivamente o poder sempre almejado de
controlar a mente humana. A mãe, receosa, outra coisa não fez que espalhar pós e mezinhas de esconjuro
na cubata e na rota de todos os dias do seu filho, esquecendo-se do rio onde os crocodilos-encarnação
dos espíritos de muitas linhagens-, menosprezando o esqueleto andante, se deleitavam em inalar os odores
além tumulares que Chibindzi desprendia daquele corpo diáfano, vivo, que se banhava no rio com um sorriso
sempre cadavérico. A certeza de que o ndzilo, nome que o fogo leva, o mantinha em vida, confirmou-se
no dia da sua morte, pois o lume fora-se também, e este facto, por si revelador, fez com que a mãe decidisse
que o ramo do canhe, planta da família das anacardiacea, não fosse empregue, como manda a tradição, como
travesseiro, mas o candeeiro, pois é sinal, dizia, que os espíritos de Chibindzi materializavam-se no
fogo, argumento não acatado pelos velhos que afirmaram que o caracol não deita fora a sua concha. O canhe
serviu, serve e servirá sempre de travesseiro aos mortos, independentemente dos espíritos protectores,
ao que ela retrucou dizendo de forma altiva que cada grilo canta no seu buraco, E eu não preciso dos
vossos conselhos, o filho é meu e será enterrado como eu e os meus espíritos entenderem, Palavras sonoras
e reveladoras da irreversibilidade da velha que pouco espantou os velhos, acostumados àquela contundência
imperativa desde o dia em que o marido desaparecera da aldeia, e ela assumira os destinos da sua estirpe.
Mas os velhos, querendo sair de forma airosa da palhota dos pêsames diseram, em uníssono, à mãe do morto,
que aguentasse com o búfalo agora que o agarrou pelos chifres, dito que não levou a peito, preocupada
que estava com o filho que adquirira a leveza dos anjos. A mão escorreu pelo lombo, reteve-se na garupa,
inflectiu para a inserção da cauda, fez pequenas cócegas, levantou a cauda e levou a vassoura à nádega,
espantando as moscas que dormitavam ao longo do flanco. Jonasse, espantado, viu o boi a sair do curral
e lançar-se furiosamente ao bosque, deixando atrás de si o ruído descontínuo de ramos e arbustos a quebrarem-se.
A vassoura balançou, embateu na ponta da anca, deslizou pelo flanco, e repousou na jarrete. A capulana
colou-se à barbela. A velha falava com o seu neto Lotasse, um boi possante de cor castanha. O diálogo
reportava-se aos tempos em que ainda tinha paciência e saúde de se sentar à fogueira e contar histórias
de ogres, animais e tudo, ante o espanto dos netos que a olhavam, incrédulos, medrosos, acobardados.
Pegou na ganacha. Filipana, filha de Lotasse, mugiu, desconfiada, e aproximou-se. A velha não se preocupou
com a sua presença, como em vida pouco se preocupara com ela desde que a soube bisbilhoteira, correndo
de cubata em cubata, trocando notícias, desvirtuando factos, alterando datas, tocando no intocável, perguntando
o imperguntável. Filipana aproximou-se, passou a língua pelas omoplatas da velha. Vai, Filipana, afasta-te!
sai do curral! A mão da velha embateu na garupa da Filipana. Ela saiu do curral. Mas porquê vovó? É preciso
sangue novo Lotasse. Sangue!... Não percebo. Já viste um rio velho? Já! O sangue também chega a esse
ponto. Não consegue transpor as pedras. Tem dificuldades em comer as areias que vão encurtando as margens;
os troncos vão-se acumulando no leito, as plantas resistentes vão ocupando espaço, a luz já não vai ao
fundo; os peixes de cores vivas e alegres fogem da zona... E a música, aquela música encantatória, já
não a ouves com a mesma sonoridade. O rio começa a ter os tons fúnebres da noite. Os bichos acoitam-se
nos locais mais profundos e escuros. Os maus espíritos passeiam à vontade; tocam os batuques do mal,
acercam-se das casas, matam, comem. A paz deixa de existir. - E por que é que são os jovens os escolhidos?
- Os ramos tenros são abatidos na poda - Ah! E agora vai, Lotasse, vagueia pela pela noite até
ao dia da luz. E o boi abanou a cauda e saiu do curral. Lágrimas escorriam pelas faces da velha e do
Jonasse. A Lua sorria. A chuva abrandava. Jonasse olhava, incrédulo, para o curral. A velha, num gesto
brusco, virou-se para o único boi que restara no curral e disse em tom profundo e sentencioso, ao moço
do pastoreio: - Trata bem do Pedro! E saiu do curral.
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Edição de Novembro de 2002
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