A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



BENEDITO BRITO JOÃO



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NOTA
A tradição oral apresenta duas versões quanto às razões da imigração de Abdul Kamal para estas regiões. Segundo a primeira versão, Abdul Kamal teria ido para Mocímboa da Praia e Ibo essencialmente para ali procurar um emprego junto dos A.kunya (brancos) ou dos comerciantes indianos instalados no local. De acordo com a segunda versão, esta deslocação teria tido por fim principalmente a sua formação islâmica. A primeira versão (procura de emprego) parece-nos a mais provável. Os dados obtidos junto dos filhos de Abdul Kamal em Chiúre, Mecúfi e Pemba, indicam que a deslocação do seu pai para Mocímboa e Ibo foi motivada pela procura de emprego. Quanto à sua formação islâmica, ela teria tido lugar em Mecúfi, junto do shéhé (ou cheikfí) e mrva-limu Abdul Magid. Mesmo que a primeira versão seja a mais provável, subsistem incertezas. Segundo as fontes recolhidas, Abdul Kamal foi primeiro empregado de uma família portuguesa. Depois poderá ter trabalhado para um capitão da Marinha portuguesa, mais tarde promovido a Governador Geral de Moçambique. Trata-se de Gabriel Teixeira. De acordo com outros testemunhos obtidos no Ibo, Abdul Kamal não foi empregado de Gabriel Teixeira. Trabalhou antes como "moleque" de Mariano João Gonzaga, um médico de origem goesa em serviço na ilha do Ibo. Todos os informadores são unânimes em afirmar que, nessa época, a vinda de jovens do continente próximo em busca de emprego em casa dos Akunya, indianos ou outros propritários no Ibo, era muito frequente.
Arquivo Histórico de Moçambique


Introdução
Este trabalho foi desenvolvido no quadro de um conjunto de programas de pesquisa conduzidos pelos Arquivos do Património Cultural (ARPAC). Esta instituição compreende hoje uma estrutura central e quatro núcleos provinciais organizados em equipas (brigadas) de pesquisa de terreno com os seus próprios temas de estudo.
Os objectivos gerais do núcleo para a Província de Cabo Delgado são o estudo de três grupos que apresentam características sócio-culturais diferentes: Maconde (Makondé), Ki-mwani e Macua (Makhuwa). Foram especificados inicialmente da seguinte maneira: 1) A evolução da sociedade Maconde, a partir da história da sua arte estatuária, em particular o impacto que teve sob o colonialismo; 2) A história das sociedades costeiras e das suas actividades marítimas: construção e utilização de barcos; 3) As transformações políticas e económicas no sul da Província, onde predominam grupos Macua.
O programa de Chiúre, em que participei e de que revelo aqui uma parte dos resultados, deriva do terceiro ponto. Centra-se no estudo do personagem de Abdul Kamal-Me-gama, penúltimo chefe da dinastia Ekoni Megama e régulo de Chiúre-Velho (c.1940-1965).
O estudo reporta-se a uma época precisa que começa com a montagem do sistema administrativo da Companhia do Niassa, continua com a ocupação e a colonização portuguesa e termina com o início da luta armada de libertação nacional.
No tempo da Companhia do Niassa (1891-1929), a região estudada pertencia ao Concelho do Lúrio,1 cuja sede se encontrava em Mecúfi.
Após a extinção da Companhia do Niassa, uma disposição do Governo Geral (Diploma Legislativo no 182 de 14 de Setembro de 1929) redefiniu os limites e os princípios da organização territorial daquilo que antes fora o Niassa, entretanto colocado sob a tutela directa do Estado português. Foram criados os Distritos de Cabo Delgado e Niassa. O Concelho do Lúrio foi dividido, nos anos 1960, em duas Circunscrições, Chiúre e Lúrio (Mecúfi). Esta divisão administrativa permanecerá em vigor até 1974, data do fim da ocupação colonial portuguesa.
O que motivou o meu interesse pelo estudo desta região nesse período?
De início, segundo os primeiros dados do inquérito preliminar, a minha hipótese era que a dinastia de Megama teria sido uma das principais forças políticas no conjunto da hierarquia do Ekoni, grupo instalado na região do Metto, e teria assim desempenhado um papel' determinante na resistência à ocupação e à colonização portuguesas. A morte de Abdul Kamal, penúltimo chefe Megama, assassinado nos últimos anos da colonização, parecia-me ser consequência dessa luta.
Para além disso, constatara que Kamal se converteu ao islamismo antes de subir ao poder e parecia-me que ele teria exercido um papel particular na hierarquia muçulmana da região. Assim, parecia-me importante tentar compreender as formas através das quais Abdul Kamal tinha subido ao poder e o tinha exercido.
Um dos métodos principais adoptados para responder às questões colocadas foi o trabalho de terreno, a fim de recolher a tradição oral junto das populações locais, dos parentes de Kamal, das pessoas que tiveram uma relação directa com ele e, ainda, daqueles que estavam bem informados sobre a história dos Ekoni, dos Megama e da região em geral.
Dirigi a minha atenção para os antigos Matnwene/Mahumu do mutthettbe (território) de Megama, ou seja, os chefes locais que se encontravam sob a sua dominação e aqueles com que os Ekoni-Megama tinham cooperado.
Uma grande parte do trabalho de inquérito foi realizada entre Maio de 1985 e 1986. Sublinho que o trabalho de terreno na região foi seriamente limitado pela falta de segurança. Ao longo deste período foram realizadas várias entrevistas com o filho de Abdul Kamal-Megama, Adelino Sani-na Megama, herdeiro das lojas de seu pai. Outras entevistas foram realizadas com o actual shéhé de Mecúfi, Athwa Abdul Magid, filho herdeiro do shéhé Abdul Magid, mwalimu de Abdul Kamal.
Tive também entrevistas com pessoas originárias de Chiúre e das regiões vizinhas - Ancuabe, Mecúfi, Monte-puez, Namuno e Pemba -, com trabalhadores da antiga plantação de sisal de Muaguide/Metuge, dos quais a maior parte foi recrutada na época de Abdul Kamal, tanto no Chiúre como nas regiões acima citadas.
Outras entrevistas, ainda, foram efectuadas entre Julho-Agosto de 1987 e 1988. Em 1988 desloquei-me à Ilha do Ibo, o que muito contribuiu para esclarecer uma grande parte das dúvidas que na altura tinha.
Para além do trabalho de terreno, consultei documentação de arquivo. Dediquei-me particularmente aos relatórios de inspecção coloniais. Estabeleci finalmente uma bibliografia de trabalhos antigos e actuais, que explorei bastante sistematicamente.


Capítulo I
O Aparecimento da Dinastia Megama e a sua Fixação no Chiúre


                     Até à última década do século XIX, o poderio português no Norte de Moçambique era fundamentalmente marítimo. Faltavam-lhe meios para ocupar e administrar os territórios do interior. Portugal viu-se assim forçado a acantonar-se em espaços restritos, todos localizados na costa (as seis vilas costeiras de Mocímboa, Pangane, Lumbo, Quissanga, Montepuez e Arimba) e nas ilhas e ilhéus do Oceano ĺndico, como o Arquipélago das Querimbas (Kirimbd).
Analisando o período 1858-1894, Pélissier (1984 I: 265) constata que nos 36 anos correspondentes à primeira fase da sua administração no Distrito de Cabo Delgado, os portugueses não sairam da costa. Apenas estenderam o seu domínio através da conquista de Palma e Tungue, também situadas na costa. Mesmo assim, não conseguiram evitar as incursões Nguni nem impedir as ameaças das populações Macua.
Dois outros aspectos mostram bem a ausência portuguesa do interior de Cabo Delgado: a livre circulação dos traficantes de escravos e a passagem não controlada dos britânicos. Assim, o interior de Cabo Delgado permaneceu em poder de quem lá vivia e por lá circulava.
Não necessitamos portanto de ter em consideração a presença portuguesa no exame da questão tratada neste capítulo: a avaliação da importância da dinastia Megama no quadro do poder "tradicional", até ao fim da Companhia do Niassa (1929).
Para aí chegar, parece-me necessário começar por recordar os principais factores que marcaram a história da região à época, e que estão na origem das reorganizações das che-faturas tradicionais e da emergência da dinastia Megama: a luta pelo controle das rotas comerciais do interior para o litoral e a desestabilização permanente, ambas provocadas pelas caravanas provenientes do interior; e a passagem dos guerreiros Nguni e a sua influência na deslocação das populações locais.
Dada a insuficiência do material recolhido no terreno sobre esta época relativamente remota, tratarei esses aspectos a partir dos diferentes estudos existentes. Devo entretanto assinalar que esses trabalhos não focam de maneira evidente o Chiúre. Falam de uma maneira geral dos fenómenos que ocorreram ao longo do rio Lúrio (L,ulí). Ao apresentá-los, procurarei, na medida do possível, localizar a região que nos interessa.
1. Factores da reorganização das chefaturas no Norte de Nampula e no Sul de Cabo Delgado na segunda metade do século XIX
/. /. A.S rotas comeráais do interior p ara o litoral e o seu controle "Durante todo o século XIX o panorama político e económico do norte de Moçambique foi (...) dominado pela captura, transporte, comercialização e exportação de escravos. As populações de origem Macua-Ló-mwè foram as principais sacrificadas (...). Centenas de milhares de vitimas indefesas foram implacavelmente acossadas pelas classes dominantes dos reinos afro-islâmicos litorais, dos Estados Ajaua do planalto do Niassa, dos reinos Macua e por mercadores portugueses, indianos (...). Dezenas de milhar de Macua foram exportados para as Ilhas Mascare-nhas, Madagáscar, Zanzibar, Golfo Pérsico, Brasil e Cuba" (Departamento de História 1988 I: 102).'
A região de que nos ocupamos - o Meto (Metto)2 - é atravessada por uma das principais rotas das caravanas que transportavam o marfim e os escravos entre o Niassa e a costa do norte de Moçambique. Quanto ao Chiúre, era tambem uma das zonas de passagem dessas caravanas de longa distância, cujos parceiros principais foram os Ajaua (Yaó) e os Ameto.
Geffray (1984), ao analisar as estruturas pré-coloniais no Eráti (norte de Nampula), constata que as vias comerciais que se dirigiam de Oeste para Este correspondem a cadeias de alianças políticas. Estas alianças permitem "por um lado, manter abertas as vias de acesso das chefaturas do interior às mercadorias da costa, mas, por outro lado, ligam grupos políticos cuja relação com as actividades mercantis é diferente (...)" (Geffray 1984: 27). O autor distingue dois tipos de organização política, de acordo com o lugar dos grupos na rede comercial e com o facto de serem do interior ou das proximidades da costa. Os grupos localizados no interior, embora tenham acesso aos terrenos de caça de elefantes e às zonas da selva propícias à aquisição de borracha e de cera, têm problemas de acesso aos mercados. São obrigados a proceder a uma "organização mais centralizada: reagrupamento no tempo (...), constituição de caravanas para o transporte e necessidade de organizar a auto-defesa (...), grande facilidade de controle das actividades de compra e venda efectuadas pêlos seus subordinados que, por sua vez, dependiam de poderes centrais (...) para o transporte dos seus produtos até à costa" (Geffray 1984: 27).
Ao contrário, os grupos mais próximos da costa experimentavam grandes dificuldades na obtenção do marfim, da cera ou da borracha. Para esses grupos, a actividade agrícola é a mais importante. Não têm necessidade de organizar sistematicamente caravanas para o litoral. Integram-se na rede comercial como mercadores.
Geffray constata que havia, entre Pemba e Mossuril, três rotas comerciais a que correspondiam três redes de alianças entre chefaturas locais: a primeira, sob o domínio do clã Ekoni, parte do Mwakya, liga os chefes Mweri e Matiko (nas regiões de Balama, Montepuez e Namuno) e termina em Pemba, passando pelo chefe Mugabu (em Ancuabe); a segunda rede parte igualmente do Meto, mas segue uma rota mais meridional até Mecúfi, passando pelo chefe Megama (em Chiúre); a terceira e última rede era assegurada pelas chefaturas Maravi (do nihimo Djikoni) e Shaka (nihimo Laponi) e pela chefatura Namissière (nihimo Mulima), e atravessava regiões a sul do Lúrio. Esta rota também se dirigia para Mecúfi e para a foz do Lúrio.
Por sua vez, Medeiros (1986) afirma que desde o período anterior a 1853, a frente costeira Pemba-Lúrio era frequentada por negreiros e outros comerciantes "ocasionais" que vinham adquirir escravos e produtos regionais. Nos anos 1853-1875 esta região é ainda um centro de produção de cera, sésamo e borracha para o mercado internacional. Assim, as regiões de Mecúfi e da foz do Lúrio transformam-se em centros importantes de comércio a longa distância.
No que se refere às rotas comerciais, Medeiros afirma que a região do Meto, muito povoada e dispondo de uma agricultura muito desenvolvida, era para além disso a principal região por onde passavam as rotas das caravanas do interior em direcção à costa. Constata também, como Gef-fray, que essas rotas foram organizadas de acordo com dispositivos políticos. Assim, havia a rota de Niassa em direcção a Quissanga e às regiões costeiras vizinhas. Esta rota liga as chefaturas do Mwaliya (na região de Balama), do In-quinjiri (N'Kindjirí) e Mweri (em Montepuez), e do Mugabu (em Ancuabe). A segunda rota importante em direcção a sudeste também passava nas terras do Mwaliya e por outras chefaturas: Matiko, Mwembe (Mwempe), Namuno e Meloco (Me/okó), na região de Namuno. Atravessa o rio Lúrio, na região de Ocua, e dirige-se depois para Memba e Mossuril.
Em 1880, a região sul do Lúrio conhece um forte tráfico de escravos. Os Ajojo (Adjodjòf circulam sob a protecção dos chefes locais para comprar escravos. Medeiros refere-se ao Mwene Mazeze, originário de Ancuabe e subordinado a Namissiere, como sendo um desses chefes protectores.
Por outro lado, Medeiros indica uma multiplicidade de rotas de caravanas, mudanças de itinerários provocados pela concorrência e sobretudo pêlos ataques realizados pêlos Shaka5 ao longo do rio Lúrio. Assim, a sul do Eráti (Nampula), novas rotas caravaneiras são estabelecidas assim que a passagem é impedida por guerras (ou ataques). Essas rotas continuavam a dirigir-se para Memba e Mossuril.
Medeiros indica também que a região do Chiúre, anteriormente uma zona perigosa para as caravanas, será, a partir da fixação Ekoni-Megama (1875?),6 uma das zonas de passagem das novas rotas que iam directamente de Meloco para o litoral (Mecúfi e foz do Lúrio), porque ali as caravanas provenientes do Niassa e do Meto se encontravam fora do controle dos Shaka.
Para além disso, ainda segundo Medeiros, a partir de aproximadamente 1853 foram criadas no litoral sucursais de firmas comerciais e armazéns "volantes" pertencentes a indianos e a afro-europeus, onde se comercializavam produtos oleaginosos e outros artigos de origem animal e vegetal.7
A tradição oral designa o trajecto das caravanas com destino a Mecúfi e à foz do Lúrio8 a partir dos "locais de repouso" das caravanas.
De Oeste para Este, é a seguinte a lista recolhida junto dos nossos informadores: Mecolane (Mekulanï), Nathura, Chiúre-Velho, Nayola, Megaruma (rio), Nthukoni, Simaya, Namuali (riacho), N'lema (afluente do Megaruma).
Ainda segundo a tradição oral, o tráfico de escravos na região fazia-se paralelamente ao comércio de produtos como o marfim, a cera e a borracha, sobretudo no final do séc. XIX e no princípio do séc. XX.
Por outro lado, a passagem das caravanas nas rotas mais a sul do rio Lúrio (as que se dirigiam ao Mossuril), na região de Nacaroa, não era fácil por causa dos frequentes assaltos, principalmente nas zonas do rio Mecubúri e Nameluco (Na-matheko), mais a sul9.
No quadro das trocas comerciais com a costa, constatámos que na região do Chiúre, e noutras regiões vizinhas, se praticava a venda de produtos locais. Refere-se a comercialização de produtos agrícolas (mexoeira e tabaco, entre outros), de kalup'a (ou kalumba - tubérculo de cor amarela), de nthunthu, utilizado para tingir, e de namelele (um fruto), trocados por sal, tecidos (kepura, e'pura), e quinquilharia de vidro. Refere-se também à compra de armas de fogo (nan-luko, ekumé) e de pólvora (pkã) para a guerra.
Segundo as fontes orais, havia estabelecimentos comerciais de comerciantes indianos e baneanes em Mecúfi e na foz do rio Lúrio (Medeiros 1986; Vilhena 1905). As populações fixadas mais para o interior vêm aqui trocar os seus produtos.
1.2. Os efeitos da presença nguni no norte de Moçambique
Os dados de que dispomos a respeito das migrações nguni no norte de Moçambique são bastante fragmentados.
Os nguni são designados no Chiúre pelo nome de mangoni (ou mankonï). Mas têm outras denominações: mashitu no .....................................................................................................

Edição de Agosto de 2000

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