CHANFUTA PATRÃO!
Por outra vez encontrava-me acampado na região do Alto-Limpopo, havia
já um mês, e dirigi-me à cantina comercial que distava dali sessenta quilómetros, para me reabastecer
de petróleo para o candeeiro petromax, sabão, vinho e outras pequenas coisas que se haviam esgotado!
O cantineiro, sr. Sebastião, e a esposa receberam-me com manifestações de alegria e agrado, como
era natural, devido ao grande isolamento em que viviam. Na realidade, estes homens e mulheres
que faziam o comércio de troca de produtos no interior do país eram a verdadeira guarda avançada na penetração
desse interior, muitas das vezes inóspito, sofrendo estoicamente duras solidões e carências de toda a
ordem. Alguns deles viviam embrenhados na profundeza dos sertões, com as suas famílias, meses e meses,
sem qualquer contacto com a civilização e, quando aparecia "um branco", uma vez no ano, era para eles
uma festa. Enfim, depois dessas manifestações de satisfação, e como era natural, a conversa recaiu
sobre a caça e, fatalmente, sobre os elefantes. Queixou-se o Sebastião de que esses "malditos"
não o deixavam em paz. Quase todas as noites lhes rondavam a casa, atraídos pelo cheiro da água que guardava
avaramente na sua cisterna de água das chuvas e que ficava mesmo encostada à cantina. Já lhe haviam rebentado
com a tampa de cimento que fechava a abertura da chisterna, para introduzirem a tromba e roubar-lhe a
preciosa água que, naquela época de seca, era vital para eles e algumas famílias de negros vizinhos.
As papaias que cresciam no seu quintal, algumas abóboras e outros produtos hortícolas que cultivava
para seu consumo já tinham sido devorados e, o que era pior, totalmente destruídos. Disse-me ainda
que nem sequer podia assustar os animais, porque se tinham acabado os cartuchos para a caçadeira, com
a qual costumava caçar umas galinhas-do-mato para a sua alimentação. De há uns tempos para cá
nem podia circular, no camião, pelas redondezas, para fazer as suas trocas, depois do pôr-do-sol, porque
tinha receio de encontrar os elefantes na estrada, como já lhe acontecera. Nessa noite pernoitei
na cantina e resolvi esperar pêlos assaltantes para lhes pregar um bom susto, e lembro-me de que a esposa
do Sebastião fez os impossíveis para me servir um jantar melhorado de galinha guisada com as últimas
batatas que tinha e um arroz-doce delicioso, tudo temperado com uma cativante hospitalidade. Aliás, isso
era apanágio de todos esses obscuros heróis da ocupação portuguesa em África. Acabámos de jantar
eram umas dez horas, quando um ajudante da cantina nos veio informar de que os elefantes se estavam a
aproximar. Saímos para a varanda aberta da cantina, onde reinava já uma certa excitação e, de facto,
a restolhada que faziam na mata ouvia-se cada vez mais próxima. Deixei-os aproximar até uns oitenta
metros, onde pararam em silêncio para auscultar o terreno, e disparei alguns tiros na sua direcção, mas
para a copa das árvores que se entrepunham entre nós, para evitar qualquer ferimento. O barulho
do vendaval do costume acordou o mato à nossa volta e foi--se perdendo ao longe. Por essa noite e outras
mais estava o caso resolvido. Para evitar novas investidas, deixei ao Sebastião uma caixa de cartuchos
calibre 12 para caçar galinhas-do-mato e espantar os elefantes. Mas o "telégrafo do mato" trabalhara
depressa e as gentes em redor já sabiam que o caçador se encontrava na cantina do Sebastião.
No dia seguinte, um homem que morava a poucos quilómetros dali veio informar-me de que os elefantes bebiam,
todos os dias, nuns poços feitos por ele e outros habitantes daquela área e dos quais tiravam a água
para o seu sustento. Aliás, era a única água de que dispunham num raio de muitos quilómetros e pedia-me
por tudo para espantar dali os incómodos visitantes. Para me impressionar afirmava, como sempre,
que havia cambacos com "matinhos" (dentes de marfim) muito grandes e - como sempre também - apontava
os dois indicadores para o chão e abarcava com as duas mãos a parte mais grossa das coxas, para significar
uns dentes compridos e grossos... Resolvi ir no dia seguinte observar esses elefantes e, já que
mais não fosse, espantá-los para que fossem beber noutro lado, pois sabia o que a água significava para
aquela pobre gente. Para os elefantes, ir beber água mais longe era um simples passeio. Cumpri
a minha promessa. Naquela noite havia um pouco de luar suficiente para poder distinguir os elefantes.
Instalei-me, ainda de dia, perto do local, com o vento a correr para mim, e onde podia observar bem os
acontecimentos. E tive ocasião de ver cenas espectaculares de elefantes desembocando sorrateiramente
da floresta, como fantasmas pintados pelo luar, para logo se lançarem sofregamente sobre os poços de
água tão apetecida. Tratava-se de uma baixa arenosa com um lençol de água subterrâneo, onde os
negros haviam escavado uns buracos e para onde escorria uma água límpida, ressudada dos areais que constituíam
o subsolo. Rodeavam estes buracos com sebes feitas de fortes ramos de micaias capazes de manter
em respeito tanto homens como gado, mas uma brincadeira de crianças para os paquidermes. E era
um espectáculo ver os animais adultos e mais poderosos correrem pressurosos para a água e disputar a
sua primazia com berros estridentes logo seguidos de tremendas trombadas e empurrões nos mais pequenos,
que se afastavam "ganindo" como cães escorraçados! Ali não havia nada que se parecesse com a chamada
organização social dos elefantes, nem qualquer espécie de piedade pêlos mais fracos e menores. Aliás,
"piedade" é coisa que não faz parte da vida selvagem. Primeiro bebiam os grandes e poderosos, os "mapfôguès
(machos adultos mas novos) e as fêmeas velhas, enquanto os mais jovens se aproximavam temero-samente,
tentando a sua sorte, e se arriscavam a levar uma trombada sonora no lombo e se contentavam em chupar
as areias molhadas em redor dos buracos. Chegava a ser doloroso observar a desdita daqueles desgraçados,
mas eu nada podia fazer para corrigir as coisas da natureza que, sendo magnânima, é também cruel!
E assim se explica que, durante as grandes secas da África, os primeiros animais a sucumbir são sempre
as crias e os muitos jovens, até por razões lógicas e naturais, porque, para garantir a continuação da
espécie, é necessário que prevaleçam os animais progenitores. Entretanto, eram onze horas, os elefantes
tinham-se retirado para as matas e nós retirámo-nos também com a intenção de, no dia seguinte, procurar
abater um bom macho nas redondezas, para os afugentar e proporcionar às populações próximas um festim
de carne de que tanto necessitavam. Mas logo um problema se me pôs. Eu não tinha ido ali para caçar e
só agora me lembrava de que na minha espingarda .425 W. R. apenas me restava um cartucho de bala devido
aos tiros que fizera em casa do Sebastião, na noite anterior. E agora, eu, o Salvador, o pisteiro
e o homem da terra tínhamos de atravessar quase dois quilómetros de matas cerradas que circundavam os
poços para atingir o carro que ficara do outro lado e onde deixara as munições. E estas matas estavam
pejadas de elefantes... O certo é que não havia outro remédio senão fazer o percurso, só que teríamos
de caminhar com cuidado e atenção para não colidirmos com eles. A lua descaíra bastante e a escuridão
era quase total nas partes mais cerradas da floresta. E aconteceu que, depois de caminharmos umas centenas
de metros, sentimos que os elefantes se encontravam na nossa frente e, pêlos sons que aumentavam gradualmente,
compreendemos que caminhavam direitos a nós e na direcção da água que ficara à nossa retaguarda. Era
certamente outra manada que vinha de longe e em marcha rápida, excitados pelo cheiro da água. Procurámos
evitá-los descrevendo um círculo e em breve nos sentimos fora do seu alcance. Mas, embora o perigo
fosse bastante remoto, o que é certo é que um só cartucho na arma me dava algum desconforto, que aliás
se estendia aos meus companheiros: estes, em voz baixa, comentavam o facto e deixavam transparecer os
seus receios e eu sentia-me tão culpado como um menino que faz tropelias... Durante tantos anos
a caçar nos sertões africanos, percorri milhares de quilómetros, caminhando de noite e de dia e dormindo
"por cima e por baixo de toda a folha", enfrentando perigos demasiadamente reais para serem desprezados,
mas... sempre com a arma nas mãos, de tal modo que ela se tornava parte integrante de mim. E não
só eu mas qualquer caçador, nestas alturas, sem uma arma, se sente como que desnudado. E era assim que
me sentia naquele momento e era assim que eu pensava ao caminhar no silêncio da noite. Resolvi
por isso acalmar os homens dizendo - em voz baixa, como convinha - que não havia perigo, pois os elefantes
já se tinham afastado e não era a primeira vez que caminhávamos de noite. Mas não cheguei a terminar
o meu discurso, porque um grande susto nos fez arrepiar os cabelos e dar um salto para trás! Um
forte estalo de um ramo quebrado com violência soou a poucos metros de nós e só um animal, no mundo,
é capaz de provocar um tal ruído, naquelas circunstâncias e àquela hora: um elefante! Isto, quer seja
a atacar, quer seja a fugir! Recuámos uns passos e tive a noção não muito animadora de que os meus companheiros
se esgueiravam por entre o mato, deixando--me só na arena. Mas eu é que era o caçador e tinha uma arma,
mesmo com um cartucho apenas... E eu apontava a espingarda para o escuro da noite e - lembro-me
bem - com a preocupação de só atirar pela certa. Mas... o ridículo também mora na selva, mesmo em matas
cerradas e à noite. O silêncio e o vazio eram as respostas para a minha expectativa e nem um único
sinal de vida se manifestava à minha volta, a não ser logo uma ruidosa exclamação de espanto e satisfação
do homem que nos acompanhava: "Ih, ma chanfuta, patrão!" E seguiu-se a descontracção e o riso e, para
mini, também uma certa decepção. "Eh patrão, imaca à chanfuta!", repetia o homem.
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