A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



JOSÉ C. PARDAL



O  PISTEIRO AFRICANO

   Neste capítulo, O HOMEM E A CAÇA, há, em meu entender, um lugar de honra para um tipo de caçador injustamente esquecido na literatura sobre caça grossa: o pisteiro africano.
   Seria injusto, e este trabalho ficaria lamentavelmente incompleto, se falasse do homem e da caça sem me referir aos pisteiros africanos, na sua qualidade de caçadores que são, no sentido mais puro da palavra, e do papel importante, essencial mesmo, que desempenham no exercício da caça em África.
   Um bom pisteiro, neste género de caça, tem um desempenho quase tão importante como o do caçador. Costuma dizer-se até que um bom pisteiro é meia caçada feita.
   Para além do aspecto humano, isto é, das relações de amizade e de companheirismo que se estabelecem entre o caçador desportivo ou profissional e os seus pisteiros, há todo um papel importantíssimo que desempenham na procura, perseguição e orientação na caça; e tão importante que, não tenho dúvida em afirmar, nós, os caçadores, nada poderíamos fazer, sem eles, na selva africana.
   O conhecimento que têm dos terrenos da caça e de todos os seus segredos; a adaptação ao meio; a tendência natural e atávica que possuem para reconhecer, interpretar e compreender todos os pormenores que se relacionam com a vida selvagem e o comportamento e reacções dos animais; o seu sentido inato de orientação, a habilidade para ler os rastos, a sua resistência física à fadiga, as suas qualidades de carácter e a paixão que nutrem pela caça fazem deles companheiros inestimáveis, que aprendi a admirar e a estimar durante tantos anos de convívio.
   Ao recapitular toda uma vida nas andanças da caça não poderia deixar de evocar os grandes pisteiros, que também foram grandes amigos e companheiros de aventura, que conheci e a quem justamente pertence uma parte dos modestos méritos deste livro que não teria sido possível sem a sua colaboração. É que eu, como caçador, nada seria sem eles, pelo muito que me ensinaram e ajudaram.
   O meu primeiro pisteiro foi o velho Davide. Bom, generoso, educado e cheio de dignidade, desemburrou-me com um carinho, como se ensinasse um filho. Acompanhava-me no momento em que sofri a maior carga de elefantes da minha vida e em que fui considerado morto. Vi lágrimas de alegria pura nos seus olhos, quando constatou que eu escapara a uma morte certa.
   Esta é uma galeria dos nomes amigos que evoco com saudade: DAVIDE, FILIPE MUNDAU, VALENTE MATIMISSA, ZUCA, JOSÉ CANZIANE, QUEMANE, VALENTE BIRISSANE, FENIASSE CHILALUQUE e o maior de todos, o grande JIMO.
   De todos aprendi alguma coisa; de todos recebi amizade, calor humano e ajuda na vida difícil dum caçador de elefantes. E, acima disso tudo, não posso esquecer que trataram sempre os meus filhos com carinho de pais e, mais tarde, com a camaradagem de irmãos mais velhos.
   Entre inúmeros episódios memoráveis que com eles vivi, lembro-me dum caso passado com mestre Valente Matimissa, que me deixou embasbacado e cheio de admiração. Este caso de habilidade rara para ler e seguir rastos é duma lógica tão elementar como a lógica elementar dum "Sherlock Holmes"!
   Eu ferira um grande cudo com uma bala .300 H. H.. Mag. de 180 grãos, expansiva, com ponta de chumbo. O tiro, feito a duzentos metros, fora bem colocado e atingiu-o na espádua, sem contudo apanhar o coração ou qualquer outro ponto sensível. O ferimento era bastante grave, mas a resistência destes animais é simplesmente incalculável.
   Ao cabo dumas duas horas de procura e perseguição em terreno muito difícil e cheio de rastos de outros animais, eu soltei uma exclamação de contentamento quando descobri o rasto do cudo, que havíamos perdido mais atrás, e que se distinguia agora pelo seu tamanho e frescura.
   O Matimissa, que procurava o rasto perdido, um pouco afastado de mim e numa moita fechada, veio logo ao meu encontro e analisou com interesse o rasto que eu lhe mostrava, muito satisfeito por poder mostrar também as minhas habilidades de pisteiro. Sem alardes e sem ironia, para não ferir o meu entusiasmo, afirmou com naturalidade: - "Aióna, mulungo" (Não é este); este rasto é duma fêmea grande! Fiquei admirado e incrédulo a olhar para ele. Cheguei mesmo a julgar que estava a brincar comigo. Mas o Matimissa, com a paciência dum pai que ensina o filho, explicou-me na sua língua misturada com o português: - Estás a ver? Este cudo esteve aqui a urinar; as pegadas traseiras estão afastadas e a urina caiu para trás!... Ora se fosse um macho a urina caía para a frente! Porque o macho urina para a frente e a fêmea urina para trás, não é assim?!
   A minha reacção foi um misto de assombro e respeito por tanta sabedoria e habilidade para analisar as coisas tão simples da natureza, mas muito difíceis para a nossa mentalidade complicada e preconcebida. Escusado será dizer que ele acabou por descobrir o verdadeiro rasto e encontrou o cudo já morto.
   Doutra vez, depois de uma longa caminhada no mato, eu estava cansado e tinha acabado a água do cantil, porque fazia um tempo excepcionalmente quente. Então o Matimissa disse-me que íamos fazer um pequeno desvio para ir beber água boa que ele guardava num sítio só dele conhecido. Fiquei naturalmente intrigado, mas daí a uma meia hora de marcha chegávamos perto duma árvore que tinha em baixo, junto ao tronco, umas pedras colocadas de modo intencional. Tirou-as com cuidado e pôs a descoberto um buraco no tronco, que comunicava com um reservatório de água, dentro do próprio tronco. A água era razoavelmente límpida, fresca e saborosa. Depois de bebermos um pouco, voltou a tapar o buraco com todo o cuidado e a dispor as pedras pesadas à entrada.
   Perguntando-lhe como descobrira aquele tesouro, no meio do mato, seco e esbraseado, disse-me que, há muitos anos, tinha visto os macacos-cães a beber naquele reservatório e então guardara-o só para ele, utilizando-o quando andava nas lides da caça.
   O outro Valente, o Birissane, caçou comigo durante mais de vinte anos, acompanhando-me sempre para áreas longínquas e desconhecidas, onde utilizava os seus singulares dotes de orientação. Em regiões desérticas, completamente desconhecidas para ele, era capaz de ir direito a um elefante abatido dez ou mais dias antes, a mais  de vinte quilómetros de distância!
   Quando a região era particularmente difícil para se orientar, utilizava processos distintos de marcação do caminho, conforme a natureza do terreno ou da vegetação. Quando o solo era mole, arrastava o pé direito, de três em três passos, num batimento natural e sem esforço, ou arrastava um pau que deixava um risco inconfundível. Se atravessávamos florestas, marcava as árvores com um machado ou partia pequenos ramos que deixava pelo chão, como pista infalível. Se passávamos por planícies de capim alto, juntava as espiga mais altas num feixe e dava-lhe um nó, espaçando-os, mais ou menos, cinquenta metros uns c'os outros.
   Por vezes, como se tratava de distâncias muito grandes, acontecia termos de atravessar todas estas espécies de terrenos e vegetação e aplicava, para cada um, o processo próprio.
Isto torna-se necessário na caça dos elefantes, porque, muitas vezes, são abatidos a muitos quilómetros do acampamento base e é impossível, no mesmo dia, arrancar os dentes, cortar e esvaziar as patas, esfolar a pele, que eu aproveitava completamente, e a própria carne. Algumas vezes dormíamos junto dos elefantes abatidos, ao calor duma boa fogueira. Mas, se não tínhamos carregadores, água e suprimentos, éramos obrigados a regressar ao acampamento e voltar no dia seguinte.     Se a distância era muito grande, só lá voltávamos uns oito a dez dias depois, quando as populações rurais já tinham feito o aproveitamento integral dos despojos, principalmente da preciosa carne de que tanto gostam.
   Nas zonas desérticas e muito distantes tornava-se impossível aproveitar totalmente os despojos dos elefantes, como era meu hábito, e para mim de uma ética elementar.
   Ainda nestes casos, avisava as autoridades gentílicas das terras onde caçava para mandarem gente recolher a carne possível. Aliás, toda a carne dos meus trofeus era entregue às populações locais, sob orientação dos chefes de terras e dos régulos.
   Aqueles processos de orientação não eram exclusivo do Valente Birissane; mas ele era, de facto, um especialista.
   Para mim ele ficou memorável e fez jus ao meu eterno reconhecimento quando, corajosamente, me ergueu nos seus ombros, para eu poder abater um elefante em plena carga, uma das cargas mais apertadas e perigosas da minha vida e que descrevo noutro capítulo.
   Jamais poderei esquecer a sua generosidade nata, a sua abnegação e coragem e, sobretudo, a confiança que depositou em mim, naquele momento crucial. Se eu não matasse o elefante, certamente morreríamos os dois no mesmo embate...
   Um outro episódio, o último, mil vezes mais dramático e doloroso do que os momentos emocionantes que vivemos juntos na caça, foi a minha partida de Moçambique. O Valente Birissane ouviu dizer, lá nas suas terras, que eu "também" ia deixar Moçambique. Apanhou o primeiro transporte e apareceu-me em Lourenço Marques, na minha casa, que ele usava como se fosse sua, e perguntou-me, comovidamente, se era verdade e por que partia...
   Em palavras simples, que me lembro de ter proferido debaixo de grande emoção, expliquei-lhe as verdadeiras razões da minha partida, que nem ele, nem o bom povo de Moçambique, naquele momento, podiam compreender.
   Com grande emoção pediu-me que não partisse e essa era também a mensagem das gentes das suas terras!
   Onde quer que estejas agora, meu grande amigo, lá naquelas terras saudosas do Moine, por tudo, bem-hajas!
   Jimo! Este nome, quando o evoco, traz-me à memória a palavra "Cambaco"! É que ele era também um "cambaco" entre os homens e os caçadores! Era fiscal de caça auxiliar e chefiava a brigada de controlo da caça na região de Mapai-Pafúri. Por isso ele trabalhou comigo, durante tantos anos, não só em operações de controlo mas também como pisteiro e companheiro, nas minhas caçadas particulares como caçador-desportivo.
   Eu costumava dizer-lhe que ele era da família dos elefantes e por isso os compreendia tão bem e adivinhava os seus intentos e as suas reacções.
   Lembro-me bem de que, quando fazíamos a aproximação dos elefantes, para o momento decisivo do tiro, e ele despia a sua jaqueta de cabedal com uma certa solenidade, balbuciando palavras inaudíveis, como se estivesse a falar sozinho, mas que eu conhecia muito bem, é porque as coisas poderiam não correr bem e pressentia que os elefantes estavam de mau humor ou excepcionalmente desconfiados.
   Dizia-me então, devagar e gravemente: - Eh "mulungo, bassopa, tindlhôfo"!: (Cuidado com estes elefantes!...)
   E quantas vezes os acontecimentos confirmavam as suas previsões...
   Um dia fui injusto para com ele, pois, apesar da minha já longa prática na leitura dos rastos, não podia, por vezes, acompanhar a sua técnica, que era insuperável!
Seguíamos o rasto dum grande elefante, apanhado, muito fresco ainda, num charco de água e lama, no meio do chanato; eram seis horas da manhã.
   Ele tinha pensado um pouco e dissera-me: - Este elefante vai muito longe. Vai ficar lá nas matas de simbirre do régulo Zarolho; temos de andar muito e depressa para o apanhar.
   E lá fomos em marcha rápida, seguindo o seu rasto. Mas ao cabo de cerca duma hora, seguíamos por um caminho de elefantes bastante marcado, duro e limpo, onde as patas não deixavam qualquer sinal visível da sua passagem. Por mais que procurasse não lobrigava a mais pequena marca e cheguei a convencer-me de que havíamos perdido o rasto tão precioso.            Chamei-lhe a atenção para o facto e ele respondeu-me, impaciente, que deixasse, porque sabia o que estava a fazer. - Ele passou aqui e a gente há-de "contrar"; não pode falhar! - acrescentou.
   Quase me resignei, mas ao fim de algum tempo não pude mais e, perante aquela caminhada estafante que me parecia inútil, pois estava convencido de que havíamos perdido o rasto, insisti com ele para parar e procurarmos o rasto que eu não via.
   Então,   com   muita   paciência,   mas  já   meio agastado comigo, retorquiu: - Está bem, eu "há-de" mostrar "meconzo" (rasto da pata). E continuou, mais atento ao caminho que percorríamos.
   De repente, parou, baixou-se e apanhou do chão, com extremo cuidado, qualquer coisa muito pequena que depositou na palma da mão e chamou-me: - Eh, "mulungo, wavóna" (olha aqui) - e mostrou-me um pequenino pedaço de lama quase seca, do tamanho duma cabeça de fósforo, e explicou-me que a lama se havia entranhado nas gretas das patas do elefante e, pelo caminho, ele ia deixando pequenas partículas dessa lama escura que contrastava com a brancura da areia, lavada pelas chuvas, que cobria o caminho numa pequena camada!!! Era por esses indícios, que só os seus olhos podiam ver, que ele seguia o rasto do elefante...
   Fiquei arrasado com tal demonstração de virtuosismo e não tive outro remédio senão pedir-lhe desculpa por ter duvidado, por momentos, da sua capacidade insuperável de grande pisteiro.
   Noutra ocasião, perseguimos uma manada de elefantes durante cinco horas, o que perfazia, uns vinte quilómetros.            Quando estávamos já a fazer a aproximação, perto  duma pequena lagoa, surgiu-nos uma manada de búfalos em que não estávamos nada interessados e o maior macho da manada, com uma armação magnífica, saiu da manada e, sem a mais pequena provocação, carregou-me furiosamente. Não me deixou alternativa e tive de o abater, perigosamente perto, com um tiro certeiro da .425 W.R., com bastante pena porém, porque não o podíamos aproveitar totalmente por estar muito longe do acampamento. Além disso, tínhamos espantado os elefantes, que debandaram ruidosamente pelo mato fora!
   Tivemos de nos resignar e, depois de cortarmos uns bons pedaços da carne para o acampamento, regressámos a passo acelerado porque a noite estava próxima. O Jimo fez questão de carregar uns vinte e cinco quilos de carne, embora eu lhe dissesse que era muito peso para tão grande caminhada. Mas ele teimou e, dependurando a carne nas pontas dum pau de chanato, à moda chinesa, atirámo-nos ao caminho.
   A noite caiu e a escuridão era total, debaixo das nuvens que tapavam a fraca luz das estrelas. Eu não vejo nada de noite. Sou um "night-blind", e era para mim um martírio caminhar em tais condições. Por isso colava-me ao Jimo e pisava onde ele pisava e seguia-o cegamente, embora levasse constantemente com os ramos na cara. Nestas alturas eu caminhava com uma das mãos em frente dos olhos para evitar as vergastadas. O prazer da caça também tem os seus espinhos!...
   A cerca de meio caminho arrisquei-me a perguntar ao Jimo se íamos no bom caminho; se ele não se perdia no meio daquela escuridão, até porque era uma região desértica. Respondeu--me com a segurança do costume que íamos bem na direcção do acampamento.
   Daí por uns dez minutos de marcha, parou, pousou a carne no chão, para descansar um pouco, e disse-me: - Mulungo, não "lembra aqui?".
   Está claro que lhe respondi que não, pois não enxergava nada à minha volta!
   Disse-me então que estávamos no mesmo local onde, durante o dia, havíamos parado para almoçar, quando seguíamos o rasto dos elefantes e, procurando no chão, apanhou uma ponta de cigarro e mostrou-ma como prova!
   Parece uma história de embalar, mas não é; é uma verdade simples da vida de um pisteiro africano.
   Ele era também um grande caçador de elefantes; para mim, o melhor entre os melhores.
   Só tinha um defeito: atirava relativamente mal, mas mais por vício do que por defeito. É que atirava tão perto que nunca precisava apurar a sua pontaria! Aliás, a sua .375 nem tinha ponto de mira e nem era preciso! Fiz questão de lhe colocar um novo, o que ele considerava um luxo.
   O Jimo tinha razão para não gostar dos mapfônguès, pois que um atirou com ele para o hospital durante quatro meses. Vale a pena contar a história, que conheço em todos os pormenores.
   Um dia perseguiu um cambaco que encontrou dentro duma mata muito fechada perto dum grupo de povoações onde vinha fazendo estragos. Chegar ao pé dele e esvaziar o carregador no coração do bicho era a sua especialidade. Mas, quando julgava que tudo tinha acabado, foi quando tudo começou, e mal, para ele, infelizmente. Um mapfônguè, que se mantinha escondido e que "estava ao lado", carregou--o com rapidez fulminante e o Jimo só teve tempo de disparar o único cartucho que lhe restava no carregador, mas sem qualquer efeito visível. Correu então para salvar a pele com o mapfônguè viciosamente atrás dele, para matar.
   Em plena corrida conseguiu tirar do bolso uma caixa de cinco cartuchos "Kynock", mas, quando rasgou a caixa com os dentes, caíram três dos cartuchos no chão, ficando somente com dois na mão. Atirou um para dentro da câmara e, voltando-se para trás, rapidamente atirou à cabeça do elefante que estava quase em cima dele. O animal não acusou qualquer efeito e continuou a sua carga furiosa. Continuando a correr, Jimo meteu o último cartucho na câmara, virou-se e, desta vez, apurou mais a pontaria e enfiou-lhe a bala no cérebro. Mas o preço daquela paragem foi bastante alto. O elefante, morto naquele mesmo instante, foi cair em cima dele com a embalagem que levava.
   O pobre do Jimo ficou entalado entre a queixada do bicho e a areia mole, mas de tal modo que fracturou a bacia, entre outros traumatismos graves que sofreu.
   Valeu-lhe um companheiro que tinha ficado fora da mata e que foi em seu auxílio. Escavou a areia por baixo dele e conseguiu tirá-lo daquela posição crítica. Foi depois buscar socorro à povoação mais próxima, a fim de o levarem ao hospital, onde ficou internado quatro meses.
   Foi uma proeza notável, só possível para um caçador da sua estirpe.
   Uns anos depois, quando abatia caça na região do Mapai, para abastecer uma Missão de Estudos, foi colhido por um búfalo que o pôs às portas da morte.
   Meteu-lhe três balas .375, sólidas, uma no ombro e duas no peito, que não impediram o animal de lhe causar ferimentos graves, marrando, espezinhando e mordendo com fúria de búfalo, até cair, por sua vez, morto. Valeu-lhe esta aventura mais três meses no hospital, mas não lhe arrefeceu a paixão pela caça.
   Eu adorava ouvir as histórias maravilhosas da sua extraordinária vida aventurosa de caçador de elefantes e que ele contava com uma singeleza encantadora, mas com um poder descritivo admirável. Era um verdadeiro homem do mato, e durante os sete anos que cacei com ele muito me ensinou e muito aprendi, mas decerto que uma das lições que melhor assimilei foi a de aprender a admirá-lo como um caçador nato e uma alma de eleição. O muito que aprendi sobre elefantes a ele o devo.
    Quando andávamos na pista dos elefantes, quase sempre o Jimbo caminhava bastante à nossa retaguarda, para ouvir melhor qualquer barulho que denunciasse a presença dos elefantes. Era uma técnica muito dele, pois que junto de nós não podia distinguir pequenos ruídos que se confundiam com o restolhar dos nossos passos e o roçar das roupas pelo mato.
   Assim, liberto dessa confusão, podia identificar ruídos longínquos, que muitas vezes nos denunciavam a presença dos elefantes: um clique abafado, um "sopro" que se confundia com o vento; um "ggrrôôô" que parecia vir dos nossos próprios sentidos; um baque que tanto podia ser um tronco derrubado por poderosa tromba como uma vagem de chanfuta a estalar com a mudança de temperatura; um pequeno vagido que tanto podia ser o arrulhar duma rola como o grito de fêmea ou de mapfônguè soltado a quilómetros de distância!...
   Um dia, Jimo caminhava atrás de nós, como sempre, e, de repente, assobiou o sinal já muito conhecido e que sempre me fazia estremecer de emoção, porque significava a possibilidade de acção.
   A esse assobio todos nós parávamos completamente, para ouvir e deixar-lhe ouvir melhor qualquer ruído que lhe tivesse chamado a atenção.
   Desta vez esperámos por um momento e, de facto, ouvi vagamente uma espécie de vagido muito estranho, mas que me pareceu o berro de elefante muito longe dali. Mas, de repente, o Jimo, dando mostras de grande alarme, avisou-nos imperativamente: - Eh "mulungo", não mexe! Fica quieto mesmo e não mexe nada!! "Bassopa Nhoca"! (Cuidado, cobra!).
   Ficámos pregados ao chão! Aproximou-se então cautelosamente, apanhou um pau seco, aproximou-se mais, sorrateiro e, num salto felino, vibrou uma valente paulada mesmo junto às pernas dum dos nossos companheiros, matando uma grande víbora-sopradora (Bus arietans arietans) que estava em atitude de ataque, prestes a lançar o seu bote perigoso!
   Na realidade, o sopro gutural e arrastado, mas muito indefinido, pode induzir-nos em erro e assemelhar-se a um grito de elefante, muito longe e enfraquecido pela distância.
   Assim, eu não podia deixar de exaltar, neste livro, as virtudes desses companheiros de mato e de aventura, a quem todos os caçadores africanos devem grande parte dos méritos que lhes são creditados.

Edição de 1979

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