A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



ADELINO SERRAS PIRES



EPILOGO


O Vento de Mudança soprou e desapareceu e, no final do século não há
um único país africano sujeito a qualquer potência exterior. Todavia, há
centenas de milhões de africanos sujeitos à servidão desde o primeiro dia
da uhuru...

- John Qwelane (proeminente jornalista negro da África do Sul).


O telefone tocou. Era Fernando Antoniotti, uma voz do passado distante que frequentara a escola primária comigo em Tete havia quase 60 anos. Lembrava-me bem dele. O pai era de origem italiana, daí o apelido, e a mãe fora uma mulher local. A minha irmã Lucinda era madrinha da irmã do Fernando, Elena, e as nossas duas famílias haviam partilhado muitos dos anos de pioneirismo no Zambeze. Fernando fazia parte da missão diplomática moçambicana em Portugal e tivera algum trabalho para me conseguir localizar. Encontrava-me em Lisboa por acaso, de visita à minha família, quando retomámos o contacto depois de tantas décadas e do drama colectivo que durara toda uma vida.
Para meu grande espanto, Fernando convidou-me a visitar a Embaixada de Moçambique, onde fui recebido com o tapete vermelho e onde me deram um visto gratuito para poder visitar o país às claras e com toda a liberdade pela primeira vez em 20 anos. Depois de tudo o que transpirara a meu respeito, muito em particular no que se referia ao meu activo envolvimento com a Renamo entre 1989 e 1992, não deixava de ser um desenvolvimento inesperado. Manifestei-me tão francamente como sempre, e disse aos meus anfitriões que quem tinha mudado eram eles e não eu. Continuava a defender os mesmos valores que me tinham levado a lutar até ao fim. Sei que chamei a atenção dos diplomatas naquele dia quando disse que, embora tivesse rejeitado o que a Frelimo demonstrara ser a partir de 1975, também precisava de admitir que a Renamo não teria sido uma melhor solução. De facto, teria sido igualmente má.
Entretanto, acontecera muita coisa à Frelimo. Forçada pelas duras realidades - tanto políticas como nas economias interna e externa -, a pagar um preço cada vez mais dramático por urna guerra que não era possível vencer, a par com uma cada vez maior pressão por parte dos verdadeiros senhores do universo, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional via Estados Unidos da América, a Frelimo teve finalmente de esquecer as suas políticas marxistas-leninistas depois de mais de 15 anos desastrosos. Muito convenientemente, as responsabilidades por esses anos foram lançadas única e exclusivamente sobre a guerra civil. O partido não teve outra escolha se não a de adoptar um sistema económico de mercado livre e um sistema político multi-partidário, por muito suspeito que este último ainda seja. Os homens da linha dura da Frelimo tiveram de se submeter à cada vez mais vigorosa neocolonização económica de Moçambique por intermédio daquelas entidades mundiais, e muito em especial por intermédio do poderoso vizinho de Moçambique, a República da África do Sul. Talvez estivesse realmente na altura de regressar para dar uma vista de olhos àquilo em que Moçambique se transformara. Nem sequer me atrevia a interrogar-me sobre o que teria acontecido à vida selvagem.
Voei para a Beira num típico dia húmido de Outubro de 1995 enquanto revia mentalmente a passagem dos anos. Na minha mente surgiram-me imagens da infância, da juventude, dos gloriosos dias dos safaris e do vergonhoso ponto final de toda uma vida naquele mesmo aeroporto onde estava agora a ser recebido de um modo tão caloroso e genuíno. Não obstante a negligência de duas décadas fosse inconfundível nas pinturas a cair, nas ruas esburacadas, nos passeios pouco cuidados e no mau estado geral de uma cidade outrora vibrante, agora com a sua quota de crianças da rua, não deixei de reparar na cordialidade dos moçambicanos, que excedia tudo o que já experimentara noutros pontos de África. Tivera lugar uma guerra amarga, houvera muito sofrimento e morte com perdas irreparáveis para todos os lados, mas, sem excepção, a afabilidade dos locais era notável.
Fui recebido por Francisco "Chico" Brandão, um bom amigo dos velhos tempos que era proprietário do Hotel Embaixador, um dos locais mais conhecidos da Beira, após o que a notícia da minha chegada em breve se espalhou e em breve me vi em contacto com pessoas que haviam desempenhado um papel significativo na minha vida durante muitos anos. Nalguns casos, as conversas e as gargalhadas voltaram a renascer como se não tivessem sofrido nenhuma interrupção. Noutros casos surgiram momentos de constrangimento, enquanto procurámos encontrar palavras capazes de transpor um abismo de duas décadas. Por vezes nem sequer havia palavras e descobri-me a rodear questões para não ter de relembrar acontecimentos. Contudo, aprendi rapidamente que, desde 1975, os moçambicanos vulgares tinham sobrevivido a anos terríveis de opressão política, à guerra, às constantes privações, a secas, a inundações e à fome. As cicatrizes desses anos ainda eram visíveis. Pequenos luxos como os principais campos desportivos da Beira estavam transformados em montes de lixo cobertos de ervas e em latrinas ao ar livre, os empregos continuam a ser escassos, em especial a norte do rio Save, e notei imediatamente um ar de desilusão generalizada.
Apesar de tudo o que ouvi e vi, era estranhamente reconfortante estar de volta. Visitei o túmulo da minha filha no principal cemitério da Beira e pude verificar que tinha sido razoavelmente cuidado, um sinal do forte respeito pêlos mortos que é típico das culturas africanas em geral. Os amigos organizaram-se para me conseguirem levar até à quinta da família e ao túmulo do meu pai em Guro, a 440 quilómetros da Beira, e depois a Tete, no Zambeze, onde as minhas primeiras memórias africanas se encontram ancoradas. Tinha uma verdadeira necessidade de voltar a experimentar a terra que dera forma à minha vida.
Seguimos para o interior, atravessando do rio Pungué por duas vezes, enquanto deixávamos para trás a costa húmida e um milhar de memórias. Os efeitos da guerra civil eram visíveis por todo o lado. O povo fora forçado a abandonar as aldeias e a concentrar-se junto das estradas, onde os povoados miseráveis se haviam amontoado enquanto as pessoas tentavam sobreviver. Matas outrora repletas de árvores haviam sido desbastadas para lenha ao longo de áreas enormes, perturbando seriamente os habitats da vida selvagem.
Ganhei imediatamente consciência de um aumento populacional como nunca vira em todas aquelas décadas anteriores passadas em Moçambique. A maior parte das pessoas que encontrei era crianças ou adolescentes. Os homens capazes andavam por longe, nas cidades, nas vilas, nas minas de outros países, numa tentativa para ganharem a vida, enquanto as mulheres ficavam para trás e tentavam segurar o desgastado tecido social há muito sujeito a grandes tensões. Não obstante tudo o que se passara, a população como que explodira e duplicara, literalmente, durante os meus 20 anos de ausência. A vida selvagem, já dizimada em resultado do sofrimento humano, não iria conseguir escapar aos efeitos daquele drama contínuo. Quem me dera que as coisas fossem diferentes.
Viajávamos por estradas com condições surpreendentemente boas e ia avistando marca conhecida atrás de marca familiar. Naquele dia pairava no ar um silêncio invulgar à medida que tentava absorver o que se desenrolava na frente dos meus olhos. Sentia-me entorpecido e cansado de tantas mudanças. A lógica dizia-me que não se pode voltar para trás nas nossas vidas. Nunca nada se mantém na mesma. A mudança é a única constante nos assuntos humanos... mas as minhas emoções continuavam à espera de ver um vestígio daqueles 40 e tal anos passados que tivesse permanecido tal como eu o recordava.
A serra de Guro ergueu-se na nossa frente. Detivemo-nos num ponto privilegiado para olharmos para o vale e distinguirmos as casas brancas da quinta a destacarem-se contra a serra. A casa desaparecera... tal como a maior parte das árvores que outrora haviam coberto a serra de Guro. Os latidos de aviso dos babuinos ainda podiam ser ouvidos nas suas fortalezas rochosas lá no alto, e a principal atracção para esses animais era agora a manta de retalhos dispostos ao acaso dos talhões de sorgo e milho que se viam no vale. Ninguém falou quando descemos aos solavancos pela estrada que eu percorrera incontáveis vezes para poder chegar à nossa quinta.
Estávamos rodeados por um povoado improvisado com cerca de 60 mil pessoas que viviam nos locais onde outrora havia sido o pomar e as nossas modestas vinhas, onde o milho, o girassol e os campos de algodão haviam sido cultivados, onde tínhamos aberto uma pista de aterragem para salvar a vida do meu pai, onde a caça grossa vagueara à sua vontade, e que se estendia até ao local onde se tinham erguido os alojamentos para os trabalhadores. Havia um montão de tijolos e pedras a marcar o local da grande casa da quinta, que fora despojada de tudo o que pudesse ter valor havia já muitos anos. Saí da viatura e olhei à minha volta, esforçando-me por recordar a bela visão de há tantos anos das matilhas de cães selvagens doidos de excitação quando percorriam as nossas terras atrás dos kudus (gomas), com os seus ganidos agudos a ressoarem no ar límpido daqueles dias mágicos da minha juventude.
Afora, o fumo de lenha de milhares de fogueiras para cozinhar erguia-se no sopé da serra escura e pairava no ar uma atmosfera de negligência que era como uma mortalha a estender-se de horizonte a horizonte. Os animais selvagens tinham desaparecido. As aves, em especial as de rapina que eu sempre considerara como um dado adquirido, tinham desaparecido. Quando segui a pé para o túmulo do meu pai reparei que as árvores que assinalavam o local não haviam sido abatidas. Na verdade, eram até mais altas e grossas do que me recordava. Senti-me estranhamente aliviado ao chegar junto do túmulo para verificar que não lhe tinham mexido. Era claro que fora respeitado ao longo dos anos pelas pessoas, muitas das quais nem sequer faziam ideia sobre quem fora o falecido, mas que possuíam uma profunda compreensão sobre os ritos da morte. O que senti naqueles dias foi demasiado complexo para ser descrito por palavras, e foi demasiado tarde para as lágrimas. Era o bastante estar ali, para recordar.
A notícia de que tinham chegado visitas espalhou-se com a velocidade de um raio, e dentro de pouco tempo já tinham aparecido vários antigos membros do pessoal da nossa quinta. Os seus rostos, tal como o meu, estavam sulcados pela idade e nalguns casos por anos de má saúde. Foi um encontro extremamente emocional à medida que nos saudávamos uns aos outros e recordávamos tempos compartilhados, tempos desaparecidos. Disse que todos os que me quisessem voltar a ver poderiam reunir-se naquele mesmo local daí a três dias, a uma hora determinada, uma vez que iria a Tete e voltaria a passar por ali no caminho de regresso à Beira. Muito em particular, gostaria de me encontrar com os que tinham feito parte do pessoal de caça. Essas pessoas simples que tinham permanecido na área e que, por uma qualquer sorte incrível, tivessem sobrevivido à guerra, à doença e à fome, poderiam dizer-me a verdade a respeito da nossa coutada n.° 9, onde houvera uma tão rica vida animal e onde havíamos passado por algumas experiências de caça verdadeiramente extraordinárias.
Tete e a Caroeira eram como um velha mulher pobremente vestida que tivesse conhecido tempos melhores - e até tempos de grande êxito -, e continuasse a fazer um esforço para se apresentar bem. Se olhássemos com mais atenção, os vestígios da antiga beleza tornavam-se discerníveis à medida que os edifícios outrora familiares nos surgiam à vista: o bar onde eu encontrara John Pondoro Taylor pela primeira vez, a fachada agora suja e a desfazer-se da antiga residência do governador, a nossa enorme casa com a varanda a toda a volta, onde as andorinhas vindas da Europa construíam os ninhos por baixo dos beirais, a escola primária onde fizera os primeiros amigos em África... As recordações arrastavam-se umas às outras tão fluidamente como o fluxo do rio lá em baixo, o Zambeze, aquele poderoso mar da minha infância. Tentei encontrar o local onde os vapores de rodas costumavam atracar e deparei com uma bela ponte que atravessa o rio no local onde a barcaça era a única maneira de chegar à outra margem. Agora, o trânsito flui cada vez mais intensamente para o Malawi e para lá deste através daqueles históricos cruzamentos de estradas dos meus primeiros dias em África.
Na cidade ainda existia um punhado de pessoas que conhecera durante anos e com quem partilhara a minha vida. Ficou muita coisa por dizer naqueles três dias. Era suficiente ver-me de novo entre velhos amigos, sem ter de explicar nada, sabendo perfeitamente que estávamos na parte final das nossas vidas. Todos nós sentimos agudamente a necessidade de recordar e de sermos recordados.
Regressei à nossa quinta em Guro, e quando lá cheguei já um grupo de cerca de 30 pessoas se reunira para me ver. Toda a gente vestira as suas melhores roupas de domingo, incluindo várias mulheres idosas que tinham trabalhado para a minha mãe. Foi uma visão comovente quando as pessoas se amontoaram em volta da comida e da bebida que levara comigo e me começaram a falar daqueles 20 anos e de tudo a que haviam sobrevivido.
Foi a habitual história deprimente tão típica de África: fratricídio, ganância, promessas quebradas e destruição. Interrogaram-me a respeito dos membros da minha família e quiseram saber quando regressaríamos a Guro. Expliquei-lhes que tínhamos perdido tudo em Moçambique e que a terra em que nos encontrávamos, onde a nossa quinta fora e onde tantos dos presentes tinham trabalhado e vivido durante anos nos tinha sido tirada pela Frelimo e pertencia agora ao Estado, pelo que não podíamos voltar para começar tudo de novo. Era demasiado tarde. As hienas haviam chegado e partido... e já nem sequer restavam as carcaças das nossas vidas anteriores. Apenas recordações. A multidão murmurou a sua compreensão.
Tinham aparecido vários dos antigos membros do pessoal dos safaris. Tendo em conta as circunstância em que haviam sido forçados a viver naquelas décadas, fiquei francamente surpreendido por os ver a todos. Quando lhes fiz perguntas sobre os animais da região, em particular na coutada n.° 9, Moisés, um dos meus pisteiros, levantou as duas mãos num sinal de desespero. A maior parte dos animais desaparecera. Tinha havido uma guerra e muitas pessoas com grandes armas. Tinha havido falta de comida e até fome. Agora, ainda havia muita gente com grandes armas. Os soldados, tanto da Frelimo como da Renamo, tinham morto muitos animais. Ninguém os conseguira deter. Dito aquilo, despedimo-nos uns dos outros, conscientes de que seria improvável que nos voltássemos a ver.
Tive um grande sentimento de desperdício e de fim irrevogável enquanto seguia em direcção à Beira.
Aí chegado, enviei um mensageiro com dinheiro à aldeia de Radio, o chefe dos meus pisteiros. Tinham-me garantido que continuava vivo e era um dos poucos sobreviventes da minha equipa de caça original. Tratava-se de um facto notável, porque a região onde a sua aldeia se localizava fora particularmente atingida durante a guerra civil. Pedi ao mensageiro para que, quando voltasse, trouxesse o Radio com ele. Não me podia ir embora sem o ver. Partilhara alguns dos anos mais significativos da minha vida e fora uma das poucas pessoas em quem eu pudera confiar implicitamente. Tendo em conta o meu controverso envolvimento recente com a Renamo, não me arriscava a viajar até uma fortaleza do partido nem a criar problemas às pessoas que lá viviam. As noções a respeito de políticas pluripartidárias ainda se encontram num estado embrionário na maior parte de África, e os partidos da oposição ainda estão sujeitos a desconfianças... e a coisas piores. Só a pressão do mundo desenvolvido levou à introdução em África de conceitos como a democracia e os sistemas multipartidários. No entanto, os pontos de vista gerais são ainda grandemente totalitários.
Radio apareceu. Tinha um aspecto frágil mas ainda razoavelmente saudável, e ficámos ambos muito comovidos quando nos vimos um ao outro. Falou-me da terrível fome dos anos de 1980, da morte de muitas pessoas precisamente pôr causa dessa fome e também por causa da guerra. Em certa altura, Radio estivera gravemente doente, mas uma das suas esposas conseguira mante-lo vivo cozinhando raízes de bananeira e fazendo uma espécie de papas.
Falou-me da destruição da caça na Reserva da Gorongosa e no abate das suas antigas árvores. Descreveu-me em pormenor a matança das outrora enormes manadas de elefantes existentes na região por causa do marfim, e nem sequer os elefantes jovens haviam sido poupados. Tanto a Frelimo, como a Renamo, os homens do Zimbabwe e da África do Sul tinham estado envolvidos no assunto. Ninguém tinha as mãos limpas. O marfim fora trocado por armas, de modo a ser possível prosseguir com a guerra civil.
Radio confirmou-me a matança dos búfalos na planície de Marromeu para alimentar as tropas do Zimbabwe, que também tinham criado problemas no país. Descreveu-me como haviam utilizado helicópteros para abaterem os animais a partir do ar. Falou com resignação. A vida estava pior, muita gente morrera e muitas outras pessoas continuariam a morrer. O trabalho era mais escasso do que nunca e as pessoas estavam zangadas porque as suas vidas não tinham melhorado depois de tantos sacrifícios. Ninguém do Maputo aparecia ali, no mato, para falar com elas, para lhes dizer o que se passava ou o que iria ser feito pela região. Ninguém se ralava. Estavam sozinhos e entregues a si mesmos.
Que podia eu dizer? Ofereci medicamentos e dinheiro a Radio, para que pudesse regressar à aldeia em segurança. Disse-lhe que sempre o recordaria e ao seu povo, e que estava profundamente triste por saber o que lhe acontecera, bem como ao pequeno bocado de mundo que ambos havíamos partilhado. Perguntei a mim mesmo o que teria sido feito do seu hostil filho, se ainda estivesse vivo. Continuaria a ser um revolucionário tão convicto depois de ver todo o sofrimento que a família tivera de suportar? Contudo, não lho perguntei.
Regressei a Moçambique várias vezes desde 1995, e fui até locais tão a norte como Pemba, a capital da província de Cabo Delgado. Faz fronteira com a Tanzânia e a separação entre os dois países é feita pelo rio Rovuma. Na região da bacia do Rovuma ainda resta alguma vida selvagem, em especial de elefantes, mas a crescente caça furtiva constitui uma ameaça séria e contínua para o que resta da caça.
Em 1997, num desenvolvimento especialmente irónico, o meu nome veio novamente ao de cima em Maputo, a capital de Moçambique. Pediram-me para falar com o governador da província de Cabo Delgado, que era também o vice-ministro da Agricultura, Pescas e Vida Selvagem, para discutir planos para a conservação da vida selvagem naquela região. Sempre gostei de desafios. Porque não mais um? Isto levou a ter sido directamente responsável, em 1998, pela apresentação da direcção do Safari Club Internacional ao governador, José Pacheco, educado nos Estados Unidos.
Depois de uma série de viagens a Cabo Delgado, pagas do meu bolso, descobri-me subitamente posto de lado sem me ter sido dada qualquer explicação. Certas entidades, impelidas pelo ego e pela ganância, estavam mais interessadas em concessões de caça e em ganhar dinheiro rapidamente do que no estabelecimento no terreno de uma força anticaça furtiva viável, ou em iniciativas a longo prazo para a conservação da caça.
Correram boatos, e boatos a respeito de boatos, de caçadas feitas de helicóptero, de gente que excedia as quotas e de contrabando de marfim. Até esta data continuam a circular histórias a respeito do que se passou na região de Cabo Delgado em 1998. Não tenho conhecimento de que, nessa área, tenha sido instalado algo de significativo no terreno para o combate à praga da caça furtiva. Tenho bons motivos para pensar que os meus esforços iniciais, empreendidos com toda a boa-fé, não irão dar qualquer resultado.
O Sul de África foi atingido por uma nova e terrível catástrofe quando já estavam em curso, em Nova Iorque, as negociações finais com os editores deste livro. Os furacões Eline e Gloria devastaram a região e causaram as piores inundações de que há memória. O país mais gravemente afectado foi, de longe, Moçambique, em especial a parte sul. As imagens do terror entraram nas salas dos lares de todo o mundo quando a televisão capturou o medo e a devastação de muitas centenas de milhares de pessoas nas suas patéticas tentativas para escaparem às lamas mortais dos rios enlouquecidos que galgaram as margens e afogaram aldeias inteiras na sua feroz caminhada para o mar. Milhares de pessoas nas planícies costeiras baixas, desde bebés a frágeis idosos, procuraram os terrenos mais elevados ou foram puxadas para o cimo das árvores onde se agarraram à vida durante dias, hipnotizadas pelas águas que não paravam de subir, dominadas pela fome, pela sede e pelo receio de serem novamente abandonadas aos seus destinos.
Desidratada, faminta e no fim do tempo de gravidez, a mãe de Rosita Pedro deu à luz na copa de uma árvore antes de ser avistada e puxada para a segurança por um helicóptero sul-africano. O dilúvio prosseguiu durante dias, matando pessoas, gado e animais selvagens, destruindo as reservas alimentares e as posses, deitando abaixo infra-estruturas, e trazendo na sua esteira a ameaça da fome e das doenças, em particular a malária e a cólera. A chuva ainda caía sobre grandes partes de Moçambique duas semanas depois dos furacões se terem afastado.
O primeiro país que se precipitou a ajudar Moçambique foi a
África do Sul, cujas tripulações de helicópteros salvaram mais de 12 mil pessoas, enquanto o resto do mundo se limitava a olhar. O vizinho outrora pária foi o único país africano capaz de intervir imediatamente para ajudar um outro país africano impotente para pôr em marcha, por si só, uma qualquer missão de salvamento. Os países europeus, a que se juntou a América, o Canadá e um pequeno conjunto de Estados africanos, acabaram por chegar em massa para auxiliarem às operações de salvamento e para darem alguma esperança a pessoas novamente empurradas para a beira de um novo abismo de medo e de miséria, forçadas a palminhar mais uma vez os trilhos de lama, em direcção a lado nenhum, enquanto tentavam manter-se vivas num continente onde o sofrimento parece continuar a ser a marca característica da existência humana.
Os meios de comunicação, de Moçambique e de muitos outros países, publicaram relatos de certos políticos moçambicanos, e também de ex-políticos do passado desse país, a choramingarem por aquilo que definiam como sendo a resposta tardia do mundo ocidental ao seu sofrimento. Investiguei atentamente os meios de comunicação em busca da mínima sugestão a respeito da chegada de um qualquer tipo de apoio, vigoroso e visível, sob a forma de alimentos, medicamentos, aviões e pessoal treinado para emergências, que tivesse sido fornecido pêlos antigos camaradas de armas do bloco oriental com quem alguns moçambicanos haviam marchado alegremente sob a mesma bandeira vermelha.
Começaram a circular relatos de corrupção a alto nível em Moçambique, e a respeito da ajuda alimentar internacional estar a desaparecer para voltar à superfície no mercado negro a preços exorbitantes. Outras ajudas e os medicamentos nem sempre chegavam aos seus destinos, que deveriam ser os apinhados campos de emergência onde as pessoas caíam doentes e onde as crianças, muito em particular, sofriam de má nutrição grave, onde a água limpa, para beber, era uma raridade, e onde os trabalhadores da ajuda internacional, médicos, enfermeiros, paramédicos e pessoas de genuína boa vontade batalhavam contra essa corrupção endémica, sem rosto e letal.
O presidente da Organização de Unidade Africana admitiu a quase completa falta da capacidade do continente para lidar com aquele tipo de calamidades naturais. Nos jornais moçambicanos, que recebo diariamente por e-mail, começaram a surgir relatos prejudiciais a respeito de certos elementos das forças armadas do país que teriam vendido, contrabandeado ou roubado motores de aviões e peças sobressalentes para obterem ganhos pessoais, ao ponto de Moçambique ter ficado sem meios aéreos para lançar a sua própria operação de socorro antes da chegada das forças estrangeiras. No que se refere a este assunto, o mundo foi iludido com frases como "Estamos a investigar"... e este é o país constantemente exibido pelo mundo como constituindo uma história de êxito em África! No meio desta calamidade, as autoridades moçambicanas também acharam apropriado cobrar altas taxas de aterragem no Aeroporto de Maputo aos aviões estrangeiros que levavam auxílio e pessoal.
Os efeitos desta tragédia irão ser sentidos durante anos e criarão novas oportunidades para a entrada de estranhos. É indiscutível que há muito interesse por parte de estrangeiros nos projectos a desenvolver em Moçambique, em particular da parte dos sul-africanos, que transformaram o Estado vizinho num satélite económico, o que até nem é mau. Contudo, os desenvolvimentos económicos significativos têm quase sempre lugar a sul do rio Save. O Norte continua com falta de investimentos, subdesenvolvido e negligenciado a favor do Sul, que é povoado pela tribo dominante da região, que também domina a hierarquia da Frelimo. O desenvolvimento de Maputo faz um grande contraste com a pobreza da Beira, e ainda mais em relação a todas as outras cidades e povoados do Norte... e isto não é por acaso.
Nos primeiros meses do novo milénio a agitação prossegue em muitas partes de África. No continente há mais de 20 países num estado de guerra declarada ou numa situação de extrema tensão. O Sudão pode servir de exemplo, uma vez que é aí que se desenrola a guerra civil mais prolongada de África. Esta continua a sofrer com os tiranos, as crianças soldados, os genocídios de cariz tribal, as limpezas étnicas e a deslocação de populações. O espectro da severa falta de alimentos, que pode redundar numa fome em grande escala, paira sobre grandes áreas do continente e ameaça directamente o que resta da vida selvagem. A África subsariana é cada vez mais marginalizada na economia global em virtude dos riscos envolvidos, e é agora vítima de uma nova servidão, a pós-independência.
O jugo da tirania política, da corrupção, da fome, da iliteracia, da pobreza e das enfermidades galopantes é cada vez mais pesado. A África subsariana é o epicentro da pandemia de SIDA, que só irá ser sentida com toda a força, assim o afirmam os especialistas, durante a próxima meia dúzia de anos. Mais de 70 por cento das vítimas da SIDA vivem na África subsariana. A África do Sul, de longe o país mais avançado do continente sob todos os aspectos, já está envolvida no pesadelo cada vez maior dos órfãos da SIDA e nos bebés portadores do HIV que são abandonados. As consequências socioeconómicas e sociopolíticas deste facto são evidentes.
Desde os anos 1960 e do princípio do processo de descoloni-zação, a África sofreu mais golpes e mais revoluções violentas do que qualquer outra parte do mundo.
Muitos países africanos trocaram uma forma de domínio e exploração por um mal muito maior, o domínio e exploração por parte do seu próprio povo. Mobutu, no Zaire, foi o exemplo clássico do molde do "presidente vitalício". Milhões de africanos sob governantes despóticos vivem em casulos de medo para onde os oportunistas estrangeiros, tal como chacais a quem já cheira a sangue, se mudaram rapidamente a fim de explorarem, agarrarem e fugirem, deixando o povo a enfrentar uma nova ruína. Vem-me à mente Angola e a sua florescente indústria do petróleo. As riquezas minerais de África condenaram-na a este destino e a vida selvagem é um bem sacrificável. A caça furtiva tornou-se num negócio nas mãos dos sindicatos internacionais do crime, ajudados por uma vasta corrupção. Os soldados e as AK-47 não são uma mistura feliz para o povo africano... nem para a vida selvagem do continente. Não é possível falar de conservação aos esfomeados, desalojados, doentes e desesperados.
Fala-se de um "renascimento" africano e da possibilidade do ano 2000 anunciar a chegada do "século africano." À luz do que teve lugar anteriormente, não compartilho desse optimismo. Limito-me a repetir as palavras de Wole Soynka, o eminente autor nigeriano, laureado com o Prémio Nobel da Literatura, em 1986, que afirmou em 1999: "lá não podemos falar de guerras no continente, mas apenas de arenas onde se desenrola uma verdadeira competição de atrocidades."
Há uma pergunta inevitável: que estou eu ainda a fazer em África? Já agora, que tenho quase 72 anos e estou à espera de Deus, posso aguardar mais um pouco para ver se surge algo de realmente novo em África. Espero para ver se a África e o mundo deixarão alguma vez de manipularem a verdade e encararão os factos a respeito da corrupção, da ganância e na inépcia ao mais alto nível. Espero para ver se a África alguma vez começará à procura de soluções com uma base sustentável no interior do continente, e se livra de uma mentalidade que cria um complexo de dependência em relação aos dadores estrangeiros e às condições que estes impõem. Espero para ver se a África começa a limpar a podridão nas fileiras da sua liderança e inicia o longo e difícil caminho para uma autodependência básica.
Espero para assistir à exposição das hienas humanas do oportunismo que estão a destruir África a partir do interior. Espero para ver se a África começa a libertar-se das grilhetas e a caminhar sobre os seus próprios pés. Espero para ver esgotar a fossa dos maléficos interesse pessoais e assistir à emergência sem medo de um cada vez maior número de filhos e filhas de África, honestos e talentosos, que ajudarão a arrastar o continente para fora deste esterco velho. Espero um fim para os argumentos cediços a respeito da África ser sempre a vítima impotente e o estrangeiro ser sempre o explorador culpado de tudo.
Embora não acredite que as AK-47 sejam derretidas e transformadas em arados, ou que o leão venha deitar-se ao lado da gazela - pelo menos durante os tempos mais próximos, não deixa de haver um clarão de esperança. Nelson Mandela, que não tem par em toda a África no que toca à autoridade moral e ao respeito internacional de que goza, afastou-se do discurso que preparara para o dia 6 de Maio de 2000 em Joanesburgo, durante o lançamento do Fundo de Parceria Global das Nações Unidas para as Crianças. Fez uma clara referência aos déspotas de África e declarou: "Os tiranos de hoje podem ser destruídos por vós (o povo)... temos de ser impiedosos na denúncia desses líderes."
Embora logo no dia seguinte alguns africanos tivessem denunciado Mandela nos meios de comunicação com sendo um "não africano", o seu apelo para um maior respeito pelos direitos humanos e por tudo o que eles implicam não deixou de passar. O Bispo Desmond Tutu, o internacionalmente respeitado Prémio Nobel da Paz sul-africano, também levantou a forte voz numa condenação aos líderes africanos corruptos. As sementes da política multipartidária estão a germinar em África. A liberdade de imprensa é agora maior do que era há uma mera década, as pessoas começam a ter menos medo de falar, e de manifestar o seu direito a uma vida melhor e a serem governadas por líderes mais transparentes e responsáveis.. Os jovens estão cada vez mais bem informados a respeito do que se passa noutros lugares do mundo mundo e a era da tecnologia da informação faz com que seja muito mais difícil que os tiranos passem desapercebidos e sem serem controlados. Tudo o que ajude a estabilizar a situação so-ciopolitica em África beneficiará os esforços para a estabilização e conservação do que resta da herança africana no campo da vida selvagem.
Muitos líderes africanos foram denunciados publicamente e estão agora sob investigação por causa das suas gordas contas bancárias offshore, obtidas à custa do saque dos cofres nacionais enquanto os seus povos sofrem. Os países dadores desenvolvidos começaram a revelar sinais de cansaço no que se refere às infindáveis tragédias que tem lugar em África, à quase incapacidade desta para lidar com as crises, à corrupção e ao constante abuso a que as ajudas são sujeitas. É posta uma cada vez maior ênfase na necessidade de governos africanos mais responsáveis que comecem a cultivar as suas próprias capacidades com mais vigor para poderem sobreviver e progredir. Só poderemos falar num renascimento quando a África, como um todo, se tornar mais auto-sustentada.
Agora que estou a chegar ao fim da picada, depois de uma vida cheia e aventurosa, compreendo com mais clareza que foi a minha geração, sem qualquer dúvida, que experimentou o melhor de África e da sua incomparável vida selvagem.
A verdadeira luta pela regeneração política, económica e moral de África só agora começou.

Edição em Português de Abril de 2002

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