A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



ADELINO SERRAS PIRES



CAPITULO X

CONSEQUÊNCIAS


Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos.
- Charles Dickens, A Tale of Two Cities


O senhor Embaixador Reino passou uma boa parte do nosso voo entre Dar es Salam e Zurique a tentar fazer-me uma lavagem ao cérebro, embora com uma grande subtileza diplomática, para que mantivesse calado a respeito das nossas experiências recentes e horrendas. Pediu-me para me recordar que o futuro de Portugal jazia nas suas ex-colónias, que precisava de pensar nos meus filhos e netos, e que estes podiam muito bem desejar regressar a essas mesmas ex-colónias. Quanto mais falava, mais eu ficava a ferver por dentro. Achei que era uma tristeza ver aquele homem, uma pessoa educada e viajada, a advogar o comportamento cobarde do Portugal pós-colonial.
Esteve em curso uma conspiração de silêncio pós-colonial, do tipo da mudez induzida pela vergonha que era vulgar entre as vítimas de violação até há muito pouco tempo. Ninguém tinha a coragem de se opor, de dizer a verdade e de enfrentar Lisboa. A minha família, eu e toda uma geração de moçambicanos, negros e brancos, havíamos sido sujeitos a uma sublevação de que muitos não iriam ser capazes de recuperar por ter acontecido demasiado tarde nas suas vidas.
Fui informado dos planos para sermos alojados na residência do senhor Embaixador, para aí passarmos a noite. A sua esposa, a senhora Embaixatriz mandaria preparar uma refeição tradicional portuguesa em nossa honra e poderíamos recuperar o fôlego antes de voarmos para Lisboa no dia seguinte. Aterrámos em Zurique ao fim da tarde e fomos levados para o salão dos VIP, onde o senhor Embaixador Reino fez diversos telefonemas. Encontrava-me sentado suficientemente perto para o poder ouvir. Falou com a Presidência da República, com o gabinete do primeiro--ministro e com o Ministério dos Negócios Estrangeiros. O Embaixador Reino assegurou a todos eles que tínhamos chegado em segurança, mas admitiu que "temos um problema." O senhor Dr. Reino, um homem agradável que mais tarde foi Embaixador de Portugal em Espanha e que acabei por conhecer bastante bem, limitava-se a seguir a linha diplomática oficial e eu compreendia esse facto. Não tenho a menor ideia sobre o que Lisboa terá aconselhado o nosso Embaixador Reino a fazer, mas a verdade é que ele não voltou a tocar no assunto. Eu, pela minha parte, não tinha palavras para desperdiçar.
O meu irmão mais novo, José Augusto, fora a Genebra ao nosso encontro e informou-nos pormenorizadamente a respeito dos acontecimentos durante os nossos cinco meses de encarceramento, bem como sobre o que poderíamos esperar em Lisboa. Ele e a família tinham reunido extensos livros de recortes cheios de artigos de jornais, apontamentos, relatórios, cartas, postais, bem como alguma outra documentação não pública relacionada com a nossa provação e que tenho em meu poder. O meu irmão aparecera na televisão portuguesa para nos defender das acusações de terrorismo, tráfico de armas, actividades de resistência e tudo o mais que as imaginações férteis e fétidas dos nossos inimigos tinham conseguido sonhar. Ficámos cada vez mais desanimados ante as revelações do José Augusto.
Ele, o Tim-Tim o Caju e o Rui seguiam num carro à nossa frente; o Embaixador e eu num segundo carro enquanto éramos levados para a residência diplomática para lá passarmos a noite. De súbito o carro da frente parou e vi o meu filho deitado no chão gelado de uma rua de Genebra. Todos nós continuávamos a usar roupas de Verão. O meu filho parecia ter sofrido qualquer espécie de indisposição no carro, perdera a consciência e fora por isso que o motorista parara. Tim-Tim não reagiu quando tentámos reanimá-lo, pelo que nos precipitámos para um hospital, onde foi admitido em grave estado de choque. A sua condição estabilizou passadas algumas horas, e teve alta na manhã seguinte, a tempo de voar connosco para Lisboa.
Que se passara? José Augusto começara por dizer ao meu filho e aos outros que se encontravam no carro que uma das principais razões - numa curiosa sintonia com o caso Potgieter - porque tínhamos sido apanhados, raptados, torturados e metidos na cadeia durante cinco meses fora por causa do acto traiçoeiro de um certo Mário Ferro, um jornalista a trabalhar em Maputo. O facto deixou-me sem palavras. Ferro andara na escola com o meu filho e era um velho amigo da família que em 1975 escolhera ficar para trás em Moçambique, na altura em que a maior parte dos brancos se fora embora.
Ferro, tal como foi publicado nos meios de comunicação em Portugal, tornara-se num aprendiz de agente da SNASP. Fora nessa capacidade que visitara Portugal em Junho de 1984, onde contactara com a minha irmã, Maria José, a mãe do Caju, e vira outros membros da família. Muito convenientemente, encontrou Tim-Tim e Caju "por acaso", quando estes iam a caminho de Madrid e da Tanzânia, para se juntarem a mim na nossa nova operação de caça. Como éramos ex-moçambicanos, pareceu natural que ficasse satisfeito por encontrar pessoas de Moçambique que ele conhecia havia anos. Ferro ficou até tarde depois do jantar em casa da Maria José e de repente perguntou se a família o podia receber para a noite. A minha ex-esposa ofereceu-lhe com satisfação o quarto do nosso filho, que já partira para a Tanzânia. Como é natural, Ferro ouviu tudo a respeito dos planos em nome da Hunters África, que iríamos pôr em prática nesse país. Não tínhamos nada a esconder.
Pois bem, para justificar a visita perante os seus amos espiões, com o zelo de um recém-convertido ansioso por ser aceite, esse tal Ferro elaborou um relatório secreto para o Presidente Samora Machel, datado de 24 de Junho de 1984. Houve uma fuga de informações no gabinete de Machel e uma cópia desse relatório acabou por ser enviada - por um moçambicano negro desiludido que tinha acesso aos segredos de Estado e cuja identidade conheço -, à minha família em Lisboa durante o nosso cativeiro. O relatório menciona um certo número de pessoas consideradas como perigosas para Moçambique tendo ido ao ponto de sujar o nome da família Serras Pires.
Trata-se de um relatório repleto de mentiras e imprecisões, que afirma, por exemplo, que a operação de caça na Tanzânia pertencia a um italiano. Diz que as concessões de caça da empresa se iriam situar perto da fronteira entre Moçambique e a Tanzânia, enquanto as mesmas se encontravam a mais de 1600 quilómetros dessa fronteira. Para além disso, acusa-nos, ao meu filho e a mim, de pertencermos a bandos armados, o que era ridículo.
Para além disso, o relatório declara que a minha família estava "enraizada na era colonial na região de Guro", como se isso fosse um crime contra a humanidade. É um tanto fértil de imaginação em particular vindo de um ex-comando do Exército Português que foi empregado de Jorge Jardim, o homem de Salazar em Moçambique, e aceitava alegremente o salário mensal das suas mãos. Até o facto de o meu filho ter obtido uma licença de piloto nos Estados Unidos é exibido como prova de subversão no conto de fadas inventado por este aprendiz da SNASP. O relatório também declara que a nossa família tinha "fugido" de Moçambique.
Ferro excede-se a si mesmo quando menciona a minha amizade com "o antigo presidente da França, Valéry Giscard D'Es-taing", numa linguagem que sugere algo de sinistro. Para concluir esse exercício de sabotagem, que quase nos matou a todos, Ferro encerra o relatório com a sugestão de que a nossa presença nas concessões de caça da Tanzânia se destinava a "agitar os moçambicanos que vivem na Tanzânia a fim de os recrutar".
Foi com estes factos a rodopiar na minha cabeça que o senhor embaixador Reino nos acompanhou até ao Aeroporto de Genebra e durante todo o voo para Lisboa.
Lisboa foi outra história. No aeroporto havia uma enorme multidão de membros da família, amigos, funcionários do Estado, jornalistas e equipas de televisão à nossa espera. Contei os factos, nus e crus, logo na primeira de várias entrevistas com a imprensa. As minhas palavras a respeito do rapto, tortura e grosseiros maus tratos encheram os cabeçalhos de vários jornais no dia seguinte, sobrepondo-se aos relatórios altamente prejudiciais que haviam circulado a nosso respeito durante meses, não apenas em Portugal mas também noutros pontos da Europa, nos Estados Unidos e também, como é evidente, em países africanos.
Revelei o que eu próprio acabara de saber: que no princípio de Setembro de 1984 Caju conseguira enviar clandestinamente um bilhete para a mãe, em Lisboa, com a ajuda de um guarda da Prisão de Machava, em Maputo, dizendo que havíamos sido raptados e levados para Moçambique. Para aumentar ainda mais o drama, o bilhete fora escrito numa carta com o timbre da SNASP! Para além disso, o sobrescrito exibia o carimbo dos correios de Maputo. Lisboa fora imediatamente informada pela minha irmã de que nos encontrávamos cativos em Moçambique, mas as autoridades nada fizeram. A minha família foi deixada mergulhada na angústia enquanto os seus membros, e a comunidade internacional da caça, se esforçavam pela nossa libertação antes que morrêssemos.
O Governo português fora impelido à acção graças apenas à constante tenacidade de estrangeiros, a começar por John e Vicki Ray, de Dálias, no Texas, que foram abandonados em pleno sa-fari quando os membros da minha família tinham sido raptados na concessão de Ugalla. Os Ray voaram para Lisboa e começaram a abanar o barco antes de regressarem à América para prosseguirem com a sua campanha. O meu filho conseguira entregar a Vicki o número do telefone da mãe em Lisboa quando já estava a ser metido no Land Rover. Vicki foi a estrela por ter sido ela quem alertou o mundo a respeito do nosso rapto.
Gordon Cundhill, da Hunters África, juntou-se à batalha. Voou para Lisboa para ver a minha família e estabeleceu uma ligação pessoal e contínua com pessoas altamente influentes de vários países, a fim de pôr as coisas a mexer em Portugal, na Tanzânia e em Moçambique para conseguir a nossa libertação. Foi uma fonte de tremendo conforto para toda a minha família.
A fraternidade internacional da caça também participou na luta. Numa convenção mundial em Madrid, em Outubro de 1984, os caçadores de todos os continentes assinaram uma petição em massa e depois, num esforço muito publicitado, enviaram-na a Nyerere, na Tanzânia, proclamando o nosso bom nome de há muito e exigindo que nos pusessem em liberdade. Houve um par de indivíduos que se recusou a assinar... e estou a recordar-me, muito em particular, do espanhol de olhos azuis com uma habilidade incomparável para se auto-engrandecer a fim de mascarar a sua profunda sensação de insegurança. A todos os outros caçadores que se mantiveram a nosso lado e nunca desistiram, manifestamos o nosso apreço até ao fim por tudo o que fizeram colectiva e individualmente para tentarem ajudar--nos. Foi uma ajuda que contou... e contou muito.
Um dos manipuladores de segunda linha responsáveis pela divulgação de relatos durante o nossos cativeiro foi um certo Alves Gomes, outros dos que ficaram para trás em 1975. Trabalhava para a Agência de Informação Moçambicana, a AIM. Gomes teve a audácia de me receber como se eu fosse um velho amigo quando regressei à Beira em 1995, depois de uma ausência de 20 e tal anos muito difíceis. É um dos boys da Frelimo e os seus relatórios vieram à superfície nos jornais The Observer e The Guardian, em Inglaterra, por exemplo, e numa grande variedade de publicações em todo o mundo.
Em Janeiro de 1985 fiquei surpreendido ao ver alusões com-pletamente erróneas a nosso respeito no África Notes, uma publicação do Centro para os Estudos Estratégicos e Internacionais, da Universidade de Georgetown, em Washington DC,  uma instituição que se supõe ser um dos mais prestigiados centros dedicados aos assuntos internacionais no mundo Ocidental. Outros jornais chegaram mesmo a inventar histórias sobre a minha suposta prisão no Zaire por tráfico de armas, antes de ter sido "preso" em Arusha.
   Éramos suspeitos de estarmos ligados ao envio clandestino de armas para a Renamo, a partir da Arábia Saudita e Omã, via Somália e Comores, onde teriam sido embarcadas para o Norte de Moçambique, e daí a suposta ligação ao mercenário francês Bob Denard. Estas alegações surgiram na altura em que a África do Sul estava, de facto, a fornecer assistência militar clandestina à Renamo, tal como acabou por ser revelado.
Graças a uma coincidência funesta, Theo Potgieter estava muito atarefado a espalhar boatos a nosso respeito no interior da Tanzânia para os seus próprios fins nefastos. Tudo isto resultou numa mistura letal de associação fortuita de acontecimentos e insinuações malévolas que nos arrastaram para uma provação de cinco meses.
Hoje, ainda há indivíduos que acreditam que fui sempre culpado das acusações que nos fizeram... e alguns desses indivíduos têm assento no Parlamento português. O meu filho também foi torturado em Moçambique durante acusações falsas e repetidas de que fizera parte do ataque de Agosto de 1976 a Nyadzonya, em Moçambique, pêlos Selous Scouts, durante o qual morreram mais de mil guerrilheiros. Nos dias imediatamente após a nossa libertação iria tomar conhecimento de cada vez mais pormenores chocantes relacionados com o nosso rapto e tortura.
O telefone nunca parou de tocar durante vários dias, enquanto eu folheava o volumoso maço de documentação relacionada com a nossa provação. Anne Aymone, a esposa de Giscard d'Estaing, telefonou-me para me expressar o seu alívio por estarmos vivos e fora da Tanzânia. Fora uma das celebridades que defendera a nossa causa e a sombra do seu marido pairara sobre os nossos interrogatórios. A esposa do presidente Eanes também telefonou, tal como fizeram muitas personalidades proeminentes de vários países logo que a notícia se espalhou.
Devíamos as nossas vidas a esforço internacional e concertado que acabou por também envolver a Liga da Cruz Vermelha e as sociedades do Crescente Vermelho, a Internacional Hunting and Game Conservation, com sede em Paris, bem como a Amnistia Internacional. Para além disso, os serviços secretos de vários países também foram arrastados para o escândalo. O gabinete do rei de Espanha demonstrou um interesse directo e activo no nosso destino graças à intervenção da família Aznar, por intermédio da mãe, Loli, marquesa de Lamiaco, a quem este livro é dedicado.
Fomos formalmente convidados para um encontro com o presidente de Portugal e aceitámos, porque o deputado José Gama me assegurou que o presidente interviera, fizera tudo o que pudera e recebera garantias da nossa absoluta inocência em face do falso communiqué tanzaniano divulgado quando da nossa libertação. José Gama apresentou-nos, os quatro, ao presidente Eanes. No fim, uma típica audiência presidencial de dez minutos, no máximo, transformou-se em hora e meia de conversa sem a presença de outros funcionários.
Recusei um encontro com o senhor Dr. Mário Soares, o primeiro-ministro português, autor da infame expressão "descolonização exemplar", e não quis estar na sua companhia nem sequer por cinco segundos. Não tinha qualquer desejo de lhe apertar a mão depois da nossa viagem ao inferno. Agora, a vida era demasiado preciosa para ser desperdiçada em formalidades com alguém que não fizera absolutamente nada por nós. Ele e os seus associados socialistas/comunistas tinham pura e simplesmente entregue as colónias portuguesas aos revolucionários comunistas, destruindo muitas vidas durante esse processo e causando prejuízos a longo prazo a milhões de pessoas simples, na sua maioria negras, que foram abandonadas ao seu destino. Também me recusei a ver o ministro dos Negócios Estrangeiros porque também ele nada fizera e sujeitara a minha família e amigos a meses da mais negra das angústias.
Regressei à sede da Hunters África em Midland, no Texas, durante algum tempo. Clayton Williams, o proprietário, mostrou-se ansioso por ver publicado um livro que narrasse as minhas experiências. Contudo, não era o momento apropriado para um tal empreendimento. A raiva era ainda demasiado forte para me permitir ver as coisas numa perspectiva correcta. De qualquer modo, só alguém que conhecesse a África por dentro, que há muito estivesse interessado sobre as políticas subsarianas e compreendesse as complexidades da minha vida estaria em condições de enfrentar uma tal tarefa. Teria de ser alguém que "sentisse" o assunto e em quem eu pudesse confiar, porque seria necessário levar a cabo muitas conversas off-the-record.
A vida é feita de interlúdios. Em Outubro de 1986 já estava de volta a Espanha havia algum tempo, e encontrava-me de facto em Barcelona quando ouvi a notícia de que Samora Machel, o presidente de Moçambique, morrera na queda de um avião perto da fronteira entre Moçambique e a África do Sul. A queda do aparelho nunca foi devidamente esclarecida e as alegações a respeito de sabotagem pelos sul-africanos, de uma tripulação russa bêbeda e de misteriosos faróis programados para desviar o aparelho do seu curso e fazê-lo cair ainda continuam a surgir à superfície. Agora surgiu uma nova teoria, que veio nada mais, nada menos, do que da própria viúva de Machel, Graça, que em 1999 falou de certos elementos dentro da Frelimo suspeitos de terem planeado a morte do marido.
Bem, bem...
Decidi voar para a África do Sul. Não vira a minha irmã Lucinda e a sua família desde 1979, por ocasião do funeral da minha mãe, em Lisboa. O nascimento iminente de uma sobrinha--neta era também uma boa razão para nos reunirmos. Passara pela África do Sul em muitas ocasiões e fizera visitas fugidias ao país em anos passados, mas já se passara uma boa década desde que lá estivera pela última vez.
Enquanto estive na África do Sul surgiu-me uma nova oportunidade quando me envolvi no lançamento de uma propriedade destinada à caça no Estado Livre de Orange, a zona central do país. Viajei frequentemente entre a Espanha e a África do Sul por causa dessa operação e consegui contratos com uma muito razoável lista de clientes da Europa.
O meu filho e o Rui Monteiro também participaram na operação, que envolvia caçadas em ranchos de outras partes da África do Sul, desde a fronteira com o Botswana, a oeste, até ao Zimbabwe, ao norte, e desde o Natal, no sudeste, até à província do Cabo, a leste. Em anos tão recentes, como a década de 1960. A África do Sul não teria sido considerada como um destino de caça pêlos desportistas internacionais. Hoje, graças a uma campanha sustentada e cientificamente apoiada para reclamar terras aos campos de milho e ao gado, para reintroduzir e reproduzir as espécies indígenas da zona, a África do Sul pode gabar-se de possuir as propriedades destinadas à caça grossa melhor geridas em todo o Continente africano, e atrai mais caçadores anualmente do que qualquer outro país africano.
Depois dos mundos sem vedações, de lugares como Moçambique, Angola, Rodésia, República Centro Africana, Sudão e Zaire, por exemplo, acabámos por concluir que as vedações dos ranchos de caça não nos agradavam. Havia um certo elemento de "enlatado" em algumas caçadas, o que nos perturbava. Por isso, e também por uma variedade de outras razões, decidi regressar a Espanha em 1988, onde dirigi uma agência de marcação de safa-ris a partir de Madrid, mas também tinha em mente outras questões, tais como o Movimento Nacional de Resistência de Moçambique
     Na esteira da nossa provação de 1984-85, todas as notícias a respeito de Moçambique passaram a ter para mim muito mais interesse do que teriam numa situação normal. Parti à descoberta, numa tentativa para saber com exactidão quais os recursos de que a Renamo dispunha em termos de representação no estrangeiro, e não fiquei surpreendido ao concluir que esses guerrilheiros anticomunistas tinham falta de um vigoroso apoio na Europa e nos Estados Unidos. Havia uma presença no Quénia, em Portugal, Alemanha Ocidental e um lobby em Washington D.C., que funcionava sob a designação de Centro de Investigações de Moçambique. A Espanha, por exemplo, era socialista e pouco receptiva para uma causa como a da Renamo, tal como Portugal. Em meados dos anos de 1980 a política britânica referente a Moçambique era moldada, entre outras coisas, pelos interesses de negócios relacionados com Tiny Rowland e com as actividades do grupo Lonhro no país, bem como pela relação especial entre Moçambique e a Inglaterra depois da independência do Zimbabwe, em 1980. A Renamo não passava de uma inconveniência. A posição dos Estados Unidos não era muito melhor, mas decidi tentar entrar em contacto com os representantes da Renamo em Washington.


Tom Schaaf, Jr., um americano, trabalhara para o Ministério da Agricultura, na Rodésia, e continuara a exercer uma actividade na esfera agrícola depois da independência do Zimbabwe, em 1980. Instalara-se na fronteira de Moçambique, em Mutare, em frente da província de Manica, e costumava entrar em Moçambique por razões ligadas ao seu trabalho. Tom era um cristão convicto e foi nessa capacidade que se envolveu em extensos programas missionários que resultaram em contactos com a Renamo, o que o levou a tomar consciência da brutalidade do regime e do sofrimento do povo.
Tudo isso tem sido bem documentado e apresentado numa variedade de publicações ao longo dos anos: o assassínio das autoridades tribais para quebrar a força dos chefes tribais tradicionais e levar o povo à submissão, a instituição das leis dos passes para restringir as movimentações no interior de Moçambique, a ilegalização e confiscação das propriedades religiosas, a queima de aldeias e igrejas, a morte de pessoas ao acaso e a destruição das colheitas, a incorporação forçada dos jovens no exército, a confiscação de gado, as marchas forçadas até aos "Centros de Descolonização Mental" - os gulags de Moçambique -, as prisões sem julgamento, as torturas, a má alimentação, a manipulação das ajudas durante os períodos de fome para impedir que chegassem às mãos dos que eram vistos como sendo anti Frelimo, os trabalhos forçados, a colectivização forçada e as acções destinadas a aterrorizar a população a fim de a controlar.
Tom Schaaf tornou-se num defensor da causa da Renamo. Durante uma das minhas visitas aos Estados Unidos, Tom apresentou-me a Herman Cohen, que era o Conselheiro de Segurança Nacional para África e que viria a ser Assistente do Secretário de Estado para os Assuntos Africanos durante a Administração de Reagan. Foi-me concedida uma generosa audiência a sós com Herman Cohen, que se mostrou atento e interessado pelo que eu tinha a dizer.
Perguntei a Cohen quem seriam os moçambicanos mais autênticos. A seguir afirmei que o facto de eu ser branco enquanto a maioria dos moçambicanos era negra não estava em questão. Vivera em Moçambique numa situação inteiramente multirracial, fossem quais fossem as injustiça inerentes àqueles tempos. Frequentara a escola em Moçambique quando criança, praticara desporto sem atenção à cor das peles, trabalhara em Moçambique e fornecera emprego aos locais durante décadas. Os meus quatro filhos - um dos quais falecido - tinham nascido em Moçambique. Tudo o que havíamos considerado de valor tivera as suas raízes no país... e eu era uma voz que falava em nome das incontáveis vozes anónimas que tinham visto as suas vidas arruinadas pela Frelimo.
Quando o avisei de que a Renamo não era um simples fenómeno passageiro e que mais cedo ou mais tarde teria de ser incluída na vida oficial de Moçambique, Herman Cohen virou-se para mim e afirmou que a solução se encontrava numa reunião entre as duas partes, a fim de negociarem um novo futuro para o país.
Para que não surjam más interpretações, permitam-me que afirme que nunca recebi um centavo da Renamo por nada do que fiz em prol do movimento, nem sequer no que respeita a despesas de viagens, alojamento ou outras semelhantes. Era motivado por um sentimento de ultraje e de vingança. Queria ver alguma justiça a ser feita antes de morrer, algum equilíbrio nos pratos da balança. Queria vingar a minha família e todos aqueles que não tinham voz e se encontravam impotentes sob as presentes circunstâncias. Queria assistir à eliminação da doença marxista-leninista.
O destino voltou a intervir quando me encontrava a ler um dos jornais diários em Madrid. Em finais de 1989, um artigo relativamente insignificante e quase escondido relatava o rapto de quatro marinheiros espanhóis pela Renamo quando o seu barco de pesca encalhara ao largo da costa moçambicana numa área controlada pela Renamo. Os arrastões espanhóis há muito que esvaziavam as águas de Moçambique - onde a pesca era livre - de todo o peixe, e ainda hoje continuam a fazê-lo.
O mestre da embarcação coxeava e não conseguia acompanhar os outros quatro membros da tripulação e os seus captores da Renamo na prolongada marcha através do mato. Por isso, decidiram libertar o mestre, que foi escoltado de volta ao porto por um dos guerrilheiros. O destino dos seus companheiros era desconhecido e os agentes espanhóis, tal como acabei por descobrir, não sabiam o que fazer.
Vi uma oportunidade de extrair algum capital político deste incidente e tive a esperança de conseguir fazer qualquer coisa para libertar os espanhóis. Descobri quem era o proprietário da embarcação de pesca e tive uma reunião, em Madrid, com ele e com os seus associados. Mostraram-se muito apreensivos quando me apresentei como sendo um membro da Renamo. No entanto, nessa fase, ainda não havia sido formalmente admitido no movimento de oposição. Enquanto falava a respeito do possível papel que poderia vir a ter para conseguir a libertação dos espanhóis, o proprietário da embarcação, um muito proeminente cidadão de Madrid, interrompeu-me de repente e disse:
- Um momento! Eu conheço-o! É o Adelino, que conheci em Nairobi, em 1977, no
Safari Park Hotel. Era o gerente a ajudou-nos a recuperar outro dos nossos arrastões!
     Aquilo quebrou imediatamente o gelo! Que pequeno é este nosso mundo! Em 1977, os moçambicanos tinham apreendido uma embarcação daquela gente quando se encontrava a pescar em águas moçambicanas. Fora imposta uma pesada multa mas, mesmo assim, a embarcação não fora devolvida aos seus legítimos donos. O meu nome viera à baila como uma possível fonte de ajuda, porque talvez conhecesse as pessoas apropriadas, em Moçambique, para resolverem o problema dos espanhóis. Joaquin Fernandez, o director da empresa de pesca e um grande amigo da família Aznar, conhecia-me e entrara em contacto comigo em Nairobi para pedir ajuda.
Ele e o seu número dois, Amador Suarez, o homem que eu tinha agora na frente, haviam voado para o Quénia e fornecera-lhes o nome de René d'Assunção, um advogado moçambicano negro da Beira que ia frequentemente a Portugal e que eu conhecia bem. René acabara por resolver o problema dos espanhóis, entretanto Fernandez saíra da empresa e Suarez ocupara o seu lugar.
Avisei-o, e aos colegas, que os membros da tripulação do arrastão não seriam libertados imediatamente, mas que podia garantir-lhes que seriam tratados com humanidade. Pediram-me para fazer a ligação com os elementos do escritório da Renamo em Lisboa a fim de lhes pedir que contactassem com o seu líder, Afonso Dhlakama, que se encontrava no mato. Assim foi feito, e Dhlakama mandou dizer que estava pronto a receber-nos em Nairobi - a mim e a uma delegação da empresa espanhola -, durante o mês de Dezembro de 1989 para discutir o assunto. No fim fui o único a meter-me num avião na companhia de Sebastião Temporário, um dos representantes da Renamo em Lisboa, que mais tarde viria a ser membro do Parlamento moçambicano. Fomos recebidos muito cordialmente por Dhlakama, que sabia exactamente quem eu era e estava informado a respeito da família Serras Pires, uma vez que tínhamos vivido e caçado no que era uma área da Renamo.
Dhlakama deu-me a sua palavra pessoal de que os espanhóis seriam libertados e que estavam a ser bem tratados. A seguir, o líder da Renamo pediu-me para me juntar à sua organização, o que fiz ali mesmo, em Nairobi. Tenho em meu poder a carta de nomeação assinada pelo próprio Dhlakama autorizando-me a representar a Renamo no estrangeiro. Foi apenas nessa altura, em Dezembro de 1989, que me tornei membro da Renamo. Para além disso, Dhlakama disse-me que os pescadores espanhóis de certeza que iriam ser utilizados para focar as atenções internacionais.
Antes de voar de regresso a Madrid, Dhlakama pediu-me para dar uma ajuda ao escritório de Lisboa e promover a causa na Europa. Foi com essa finalidade que dei a minha assistência a um lobby pró-Renamo em Londres, por intermédio do meu bom amigo David Hoile. Esse lobby conseguiu projectar uma imagem mais sóbria e honesta sobre o cenário em Moçambique sob a Frelimo, graças aos meios de comunicação e a proeminentes cidadãos britânicos. Apresentei David à hierarquia da Renamo em Lisboa durante uma muito rápida visita secreta conseguida através dos serviços de informações militares portugueses. Também fui instrumental no lançamento de um lobby semelhante em Espanha entre pessoas excepcionalmente bem ligadas aos meios de comunicação, que poderiam dar uma visão mais equilibrada das realidades de Moçambique e não as histórias tendenciosas e esquerdistas que deificavam a Frelimo.
O estimado escritor espanhol, Arturo Perez Reverte, recebeu o encargo de fazer um documentário sobre a Renamo em nome do Governo espanhol, um governo socialista e muito anti Renamo. Quando foi ver-me, disse-lhe com toda a franqueza que não queria que fosse a Moçambique de má-fé e com ideias preconcebidas, para depois produzir um documentário tendencioso que serviria apenas para envenenar ainda mais as coisas numa região já devastada por anos de uma guerra civil que causara tremendos sofrimentos ao povo e dizimara a vida selvagem. Reverte compreendeu que eu sabia do que estava a falar e garantiu que me mostraria as imagens antes da montagem final. Um futuro novo e diferente só pode ser construído sobre factos, porque a verdade tem sempre tendência para vir ao de cima.
Cerca de dois meses mais tarde, Reverte e a sua equipa de televisão regressaram a Espanha e fui convidado a ir até aos estúdios para ver as imagens. Eram dramáticas, mostravam escolas nas matas, clínicas muito primitivas - mas que não deixavam de ser clínicas -, para tratamento dos feridos e dos doentes, e toda a espécie de infra-estruturas na vasta região dominada pela Renamo. Incluía entrevistas claramente improvisadas com uma enorme variedade de pessoas que falavam abertamente das suas vidas e a respeito do que tinham experimentado desde a partida dos portugueses. As imagens eram absorventes.
Reverte, um homem extremamente em forma, falou-me com espanto da resistência física e mental das forças da Renamo que encontrara. Os espanhóis tinham entrado em Moçambique pela fronteira do Malawi e coberto mais de 960 quilómetros a pé nas áreas da Renamo, por vezes em terrenos muito difíceis. Reverte até inventara uma designação para o passo, capaz de estourar qualquer um, com que essas forças se moviam, e passara a chama-lhe "passo Renamo". Para além disso achara incrível a resistência física das mulheres da guerrilha que transportavam com toda a facilidade cargas de 40 quilos durante as prolongadas marchas através do mato. Ajudavam a transportar carne seca, principalmente de búfalo, desde as planícies de Marromeu, a cerca de 300 quilómetros de distância, para alimentarem as tropas e a população local.
O documentário espanhol foi amplamente distribuído e representou uma vitória para a Renamo, uma vez que se tratava do produto de um país socialista. Os quatro pescadores foram libertados e regressaram a Espanha, onde teceram louvores à Renamo. Afirmaram que tinham sido consistentemente bem tratados e também que o movimento lhes fornecera tudo o que tinha à sua disposição. Como é óbvio, a novidade espalhou-se.
Sob Daniel Arap Mói, o Quénia estivera a desempenhar um papel cada vez mais importante como mediador nos esforços para eventuais negociações directas entre a Frelimo e a Renamo. A África do Sul e o Zimbabwe também estavam envolvidos. O estatuto da Renamo começava a mudar e deixava de ser o de "bandidos armados" para começar a ser considerada como um autêntico movimento indígena de oposição. A guerra civil prosseguia, mas também prosseguiam as negociações para tentar pôr-lhe fim.
O segundo Congresso Nacional da Renamo teve lugar no interior de Moçambique, em Dezembro de 1991. Juntei-me ao grupo da Renamo de Lisboa e voei para Roma, onde fiz a ligação para Blantyre, no Malawi. Em Blantyre tínhamos de ser excepcionalmente cuidadosos, porque a cidade estava apinhada de espiões da Frelimo. A partir daí fomos transportados num Piper Aztec até uma pista de aterragem no mato, numa das antigas concessões de caça da Safrique, entre Maringué e Nyamacala. O avião foi pilotado por Rodney Hein, um missionário evangélico do Zimbabwe, e um piloto de mato de primeira classe que tinha a sua base em Blantyre. Como missionário, ministrava junto da enorme população de refugiados moçambicanos a viverem no Malawi, junto à fronteira da sua pátria. Rodney fez mais pela Renamo durante todos aqueles anos do que qualquer outra pessoa que eu conhecesse. Era extraordinariamente dedicado e não precisávamos de partilhar as suas crenças religiosas para reconhecermos esse facto.
Voámos a uma altitude baixa potencialmente perigosa, mas aterrámos em segurança. Senti-me estranhamente entorpecido por estar de volta aos meus antigos terrenos de caça naquelas circunstâncias, depois de já terem passado 15 anos. Era como deparar com alguém que se tivesse conhecido muitíssimo bem mas que não víssemos há anos. O dilúvio de recordações e de tristeza foi avassalador. Por razões de segurança não nos tinham informado sobre o local exacto para o congresso, e tivemos de caminhar pelo mato, em pleno Verão, durante dois dias consecutivos antes de chegarmos ao nosso destino.
Estivemos em Moçambique durante um mês. O congresso não pôde iniciar-se imediatamente porque ainda havia pessoas a caminho, a pé, vindas de lugares muito distantes. No percurso de dois dias através do mato até ao local do encontro nunca vi o mínimo rasto de um animal selvagem. Para mim, foi uma experiência profundamente perturbadora. As armas eram utilizadas para alimentar as pessoas. Nos anos que haviam decorrido tinham sido experimentados períodos de secas terríveis, seguidos pela fome, pelo que esse processo levara ao massacre da vida selvagem. Era um facto que eu conseguia compreender.
David Hoile, João Gonçalves, um dentista de Portugal, e eu, éramos os únicos brancos no congresso e concederam-nos um tratamento muito cortês. Em 3 de Dezembro foi-me transmitida a notícia, em pleno mato, de que a minha filha Palucha acabara de dar à luz o seu terceiro filho, em Lisboa. Era a primeira menina e iria chamar-se Margarida em memória da minha primeira filha, que jaz sepultada na Beira. Foi um augúrio, um sinal de um renascimento para Moçambique. Senti-me feliz mesmo a milhares de quilómetros de distância.
Uma equipa da televisão canadiana que se encontrava no congresso perguntou-me, em filme, se pretendia regressar a Moçambique para reclamar o que perdera. Retorqui que se tratava de uma razão legítima para lá voltar, uma vez que a Frelimo roubara o que era legalmente meu e também o que pertencera a toda a minha família. O documentário foi mostrado na Europa, na África do Sul e nas Américas.
A maior parte dos membros da Renamo a trabalhar no estrangeiro e os observadores convidados partiram antes de mim depois da conclusão do congresso. Fui transportado através do mato numa das três motocicletas existentes, até ao que restava de uma pequena povoação chamada Canxixe, que era agora uma ruína esburacada depois de anos de guerra de guerrilhas. Foi aí que esperei que Rodney Hein nos fosse buscar. O seu Piper Aztec chegou em devido tempo, mas avariou-se logo depois da aterragem. A África força-nos a sermos pacientes.
A bateria descarregada foi desmontada e levada de motocicleta até à base principal da Renamo, onde existia um carregador, uma vez que a base possuía rádios sofisticados que funcionavam a baterias. Rodney regressou no dia seguinte, pronto para a partida. Na noite anterior, enquanto comia o meu sorgo e recusava a "carne", reparei que o comandante local tinha apenas duas diminutas aves no prato. Brinquei com ele a respeito do seu "banquete". Respondeu-me:
- Sabes uma coisa? Creio que estas eram as duas últimas aves em toda a área!
Voei dali para Blantyre e depois para Lisboa via Paris. As negociações respeitantes a um acordo Renamo/Frelimo intensificaram-se entre o princípio de 1992 e o mês de Outubro desse mesmo ano. Esse "Acordo Geral de Paz" foi devidamente assinado em Roma, em 4 de Outubro de 1992. Nem eu nem nenhum outro dos brancos que ao longo dos anos se tinha dedicado, à sua pró pria custa, a ajudar a Renamo, foi convidado para Roma. Convidei-me a mim mesmo e cheguei cerca de uma hora depois da assinatura. Olhei em volta e confrontei-me com alguns indivíduos com um ar envergonhado. À luz daquela nova "política de indi-genização" no coração da Renamo, dei os meu trabalhos por terminados e cortei os laços com o movimento de uma vez para sempre. Os meus pensamentos estavam com os povos tribais, no mato, que tinham deposto toda a confiança nos seus representantes. Para mim, era o fim da estrada.
Um punhado de representantes da Renamo desenvolvera um certo gosto pela boa vida desde finais dos anos de 1980, à medida que visitavam a Europa com cada vez maior frequência. Viagens aéreas em primeira classe, bons hotéis, boa comida e melhores vinhos, roupas elegantes e uma opinião muito inflacionada a respeito da sua própria importância acabaram por contagiar essas personagens. Alienaram-se cada vez mais da sua missão original, que era a de lutar pêlos interesses dos milhões de pessoas simples que viviam no terreno, que pouco ou nada tinham de seu e que suportavam o fardo dos sofrimentos provocados pela guerra civil. Havia uma arrogância crescente a ganhar raízes na liderança da Renamo.
Deixei Roma naquele mês de Outubro a saber que a sedução daqueles representantes da Renamo já se iniciara. Falaram comigo abertamente a respeito de irem para Maputo e de virem a fazer parte do Parlamento. Era aí que estava a boa vida. Claro que Maputo tinha o seu lugar próprio, mas a verdade é que ninguém me falou no desejo de regressar à Gorongosa ou a Maringué, no mato, ou até à Beira, para lutar pelos direitos do seu povo numa nova posição a partir dos seus distritos eleitorais. A alegre Paris acenara-lhes. O que vi naquele dia em Roma, por muito desagradável que agora possa soar, convenceu-me de que nada iria mudar para os milhões de seguidores da Renamo que viviam no terreno à medida que os seus representantes, incluindo o próprio Dhlakama, se desligavam deles e mudavam para sul do rio Save, uma vez que era aí que se encontravam todos os poleiros.
Ironicamente, ainda iria a ser cordialmente convidado a regressar a Moçambique pelos próprios representantes diplomáticos da Frelimo, para testemunhar o epílogo desta história.

Edição em Português de Abril de 2002

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