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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO
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CAPITULO I
A INFÂNCIA NO ZAMBEZE
Nesta cidade e ilha a que chamam Mocobiquy
(Moçambique) havia um senhor a quem chamavam Sultan, que era como um vice-rei...
- Eric Axelson,
Vasco da Gama: The Diary ofHis Traveis Through African Waters 1497-1499
A viagem de um
mês ao longo da costa ocidental de África, em torno do Cabo das Tormentas até ao canal de Moçambique
e à nossa nova casa, deixou-me com uma aversão a barcos que durou toda a vida, isto porque estivera enjoado
durante quase todo o tempo. Contudo, a viagem fora misericordiosamente entremeada por tantas experiências
novas, que fui constantemente distraído. Vimos crianças a mergulharem em busca de moedas nas águas pouco
profundas da ilha da Madeira, e ficámos completamente fascinados com o papagaio residente no navio que
desfiava um espantoso vocabulário de palavras porcas aprendidas com os marinheiros portugueses. Por fim,
a ave começou a imitar a minha própria mãe, quando esta ordenava à minha irmã Lucinda para se manter
afastada dele por uma questão de decência. Como era a mais loquaz da família, Lucinda estabeleceu laços
de amizade instantâneos com o papagaio. Também me recordo de olhar, incrédulo, quando os adultos apontavam
cardumes de peixes-voadores a brincarem na espuma da esteira do navio, isto quando até uma criança pequena
sabia que os peixes tinham de viver debaixo de água e que só os pássaros podiam voar! Por fim, quando
acabámos por desembarcar em Angola, pensei que a maior parte das pessoas era preta porque o Sol escaldante
as tinha queimado até ficarem daquela cor. A minha lógica infantil também me convenceu que a terrível
humidade que sentimos quando nos aproximámos da Beira se devia ao facto de o Sol estar a chorar lágrimas
quentes. Todas estas coisas me deixavam surpreendido mas cheio de energia. O ar cheirava-me a aventura.
Era óptimo ter oito anos e estar a participar numa viagem ao outro lado do mundo... independentemente
do enjoo. Talvez a cigana que me leu a palma da mão, quando eu era um garoto, tivesse adivinhado o meu
espírito aventureiro, porque não há dúvidas de que até hoje levei sempre uma vida de cigano. Amontoámo-nos
no convés na madrugada em que surgiu a notícia de que estávamos prestes a atracar na Beira. A neblina
do calor já se formava ao longo da costa baixa que fora dominada pelos árabes e persas desde o século
IX d. C, ou talvez antes. Outrora, eram eles quem controlavam o tráfico de escravos, ouro, marfim, pérolas,
madeiras exóticas como o ébano, carapaças de tartarugas, ferro e peles de animais. De facto, diz-se que
o nome de Moçambique deriva de Musa ben Biki, o xeque muçulmano da ilha de Moçambique, a pequena ilha
de coral em pleno canal, logo a sul do grande porto natural de Nacala. O xeque Ben Biki encontrava-se
no poder aquando da visita de Vasco da Gama, em Março de 1498, depois de os marinheiros portugueses terem
dobrado a extremidade sul de África e modificado a história da humanidade. Estávamos prestes a pôr
os pés na Terra de Sofala ("o lugar baixo"), aquela afamada região que Vasco da Gama visitou pela primeira
vez em 1502, quando desembarcou na baía de Sofala, a sul da Beira, no regresso da sua segunda viagem
à índia. Os árabes referiam-se a Sofala como sendo Sufalat edh-dhahab, Sofala a Dourada, por causa da
sua proeminência no reino árabe costeiro como entreposto para o ouro do interior. Naquela madrugada,
a minha sensação de antecipação e excitação era muito intensa. Estávamos a entrar num novo mundo, numa
nova vida, e a nossa família iria novamente reunir-se. Até àquele momento, o meu mundo fora o da aldeia
de Ponte de Sor, e das circundantes colinas baixas do centro de Portugal, onde o meu pai me costumava
levar à caça de lebres, pombos e perdizes, com os nossos cães a reboque. A família vivia há várias gerações
nas aldeias brancas do Alentejo, onde os telhados vermelhos de terracota pontuavam a árida beleza dos
sobreirais e olivais. Era uma terra onde ninguém desafiava o seu lugar na ordem das coisas e também onde
a estreiteza de vistas das aldeias e um povo profundamente tradicionalista prosseguiam a sua vida com
uma claustrofóbica previsibilidade. As mudanças eram desencorajadas pelo fatalismo que permeia o fado,
a canção popular portuguesa, uma tradição musical única bem conhecida pela sua visão melancólica sobre
a vida, e onde os humanos são representados como vítimas impotentes de um destino esmagador. Era um
mundo em que as mulheres começavam a vestir de negro ainda muito novas, como prova de respeito pêlos
membros da família que iam morrendo uns atrás dos outros, um mundo governado pêlos rituais da Igreja
Católica. Os homens reuniam-se nos cafés para o habitual copo de vinho e para darem à língua, enquanto
alguns deles jogavam às damas. A criação de porcos, galinhas e o cultivo de oliveiras dominavam as conversas,
enquanto as mulheres permaneciam obedientemente em casa. As notícias do mundo exterior tinham muito pouco
impacte nos ritmos sazonais e nos aromas da vila da minha infância. Contudo, ocorreu uma profunda
mudança na minha família quando os três irmãos do meu pai, que haviam emigrado para Moçambique por altura
do meu nascimento, em 1928, lhe escreveram incitando-o a levar a família e a juntar-se a eles numa terra
cheia de oportunidades, escancarada a todos os empreendimentos e com grande necessidade de pessoas com
capacidades. A minha família decidiu emigrar, embora possuísse uma torrefac-ção de café que processava
os grãos vindo das colónias portuguesas e vivesse uma vida segura. A fábrica foi vendida e o meu pai
precedeu-nos por um período de três anos, de modo a poder estabelecer uma base para o resto da família.
Lembro-me do dia em que partimos para África. As minhas irmãs Lucinda e Maria José, o meu irmão Jacinto
e eu, saímos de casa na companhia da nossa mãe, com o carro a balouçar sobre as ruas empedradas da aldeia
e para lá das âncoras de todas as nossas recordações da juventude, para seguirmos até à estação ferroviária
onde apanhávamos o comboio que nos levaria a um sítio chamado Lisboa. Aí chegados embarcámos no paquete
Quanza, num frio e húmido dia de Novembro de 1936. O navio partiu para lá do estuário do Tejo e penetrou
na cada vez mais intensa escuridão da noite. Estávamos a seguir o caminho das frágeis caravelas portuguesas
do século XV, na sua demanda de um caminho marítimo para a índia. Contudo, a nossa demanda era por uma
vida com melhores oportunidades e recompensas e onde os horizontes eram mais vastos do que tudo o que
conhecera no acanhado Portugal, com o seus modos de vida igualmente mesquinhos. Seria preciso um mês
para chegarmos a Moçambique. Pareceu-me ter-se passado uma eternidade até nos permitirem sair do navio
e descer ao cais, onde o meu pai nos aguardava no meio de uma multidão de negros, trabalhadores das docas
que lidavam com as bagagens enquanto os funcionários das alfândegas, com os seus impecáveis uniformes
brancos, nos diziam para onde nos devíamos dirigir. O meu pai era, tal como o recordava, um homem simpático
e trigueiro, com uma espessa cabeleira encaracolada, em torno de quem nos amontoámos excitadamente enquanto
as histórias sobre a viagem se precipitavam para fora das nossas bocas numa ruidosa celebração. Todavia,
o meu irmãozinho, Jacinto, não ficou nada impressionado e começou a chorar. Não sabia quem era aquele
homem, porque tinha apenas alguns meses de idade quando o pai partira para Moçambique. No calor da fornalha
daquele dia de finais de Dezembro de 1936, fomos nós, as crianças, quem ultrapassou o abismo de três
anos como se este tivesse sido apenas de um dia. Não tínhamos qualquer conceito sobre as tensões emocionais
e os sacrifícios que os nossos pais haviam feito por nós. O solo oscilava a cada passo que eu tentava
dar e fez com que me sentisse novamente enjoado. Nunca me conseguira habituar ao mar, e agora parecia
que também não me habituava à terra. Abrimos caminho através das largas e arenosas ruas do porto... e
houve duas coisas que me provocaram uma impressão imediata: as vistosas árvores que ladeavam as ruas,
com cores tão vibrantes que pareciam estar a arder, e os estranhos carrinhos de dois lugares cobertos
por um toldo branco, semelhantes a rique-xós, que deslizavam por estreitos trilhos na areia e eram puxados
por criados negros elegantemente vestidos. Os meus sentidos deixaram-se arrastar por aquelas novidades,
com as recordações de Portugal a refluírem como a maré de um mundo em recessão, pronto para ser substituído
por outro. Foi ao cair da noite da véspera de Natal que chegámos finalmente a Tete, o antigo porto
árabe no rio Zambeze, que fora povoado pelos portugueses havia pouco mais de 400 anos. Dizia-se que era
a mais antiga cidade do interior de África, a sul do equador, que fora continuamente habitada. O meu
tio João e o meu homónimo, o tio Adelino, estavam lá para dar as boas-vindas à nossa nova vida. O tio
Jacinto já morrera de biliosa. Fora uma cansativa viagem de cerca de 600 quilómetros num carro Terrapleno
preto por estradas de terra que serpenteavam através de um território ondulante e coberto de mato, sulcado
pêlos pedregosos leitos de rios secos a cozerem sob um calor implacável. O carro avariou-se um par de
vezes e o meu pai teve de lhe meter óleo, tarefa que acompanhou com murmúrios irritados que a minha mãe
contrariou rapidamente com um "Pires, por favor! As crianças estão a ouvir-te!", uma vez que ela se dirigia
sempre ao meu pai pelo último nome do nosso apelido. Os sinos das igrejas estavam a tocar naquela
noite, em Tete, e chamavam as poucas centenas de habitantes à missa da meia--noite. Durante um intervalo
nos toques chegou-nos aos ouvidos um som novo, num tom abafado que subia e descia, logo seguido por dois
ou três grunhidos em staccato. Esqueci a fadiga e lembro-me de me ter virado para o meu pai para perguntar:
- Pai, que barulho foi aquele? - Leões. São os leões, comedores de homens do Benga, do outro lado
do rio, filho. É um sinal. Ouviste os leões esta noite, e quando cresceres vais ser caçador. Agora
sabia que estava num mundo diferente. ..........................................................................................................
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CAPITULO II
UMA VIDA NA SELVA
Pouco depois de passarmos a foz do Ruenya avistámos
a serra de Caroera, por trás da qual, segundo disse o nosso barqueiro, ficava a cidade de Tete,
ou In-yung-wi, tal como lhe chamam os nativos...
- Frederick Courteney Selous, Travel and Adventure
in South-East África
Fazia frio naquela noite de Junho de 1949. Encontrava-me no meio das
colinas rochosas em volta da aldeia do Lundo, a sudeste de Tete, na área de solos negros dos campos de
algodão. Já adormecera quando houve algo que me perturbou e me despertou. Chiganda, o meu ajudante da
etnia Sena e irmão de um chefe tribal, encontrava-se à entrada da palhota, a típica palhota da região.
O pungente cheiro a parafina filtrava-se na palhota vindo da lanterna em que segurava, com os vidros
enegrecidos a filtrarem a luz na frente dos seus olhos esbugalhados de ansiedade. Acabara de chegar
um mensageiro ao nosso posto comercial, vindo de uma aldeia próxima, onde uma mulher se encontrava em
trabalho de parto há dois dias e corria risco de vida. Já se difundira a notícia de que eu e os meus
ajudantes havíamos chegado para reabastecer o posto comercial. Para além disso, toda a gente sabia que
transportava sempre comigo um estojo médico rudimentar e era vulgar que as pessoas do mato acorressem
ao posto em busca de ajuda, para tratarem olhos infectados, malária, queimaduras e ferimentos de todos
os tipos. Em mais de uma ocasião já tratara de conseguir que aldeões com membros partidos fossem tratados
noutros lados, e a sua eventual recuperação aumentara a fé das pessoas na nossa capacidade para os ajudar.
Contudo, a obstetrícia era algo de novo para mim e assustava-me. Enfiei as roupas, agarrei no estojo
médico e na carabina Mannlicher-Schõnauer 8x56 mm, que o meu pai me oferecera, e segui o Chiganda e entrámos
na escuridão da noite ao longo do trilho que conduzia à aldeia da mulher. Foi uma boa hora de caminho
através de uma mata densa que nenhum veículo conseguiria ultrapassar, e tudo o que eu conseguia ouvir
eram as nossas respirações ansiosas, que abafavam os sons da noite. Se existissem serpentes enroladas
no meio do trilho, para absorverem o calor do dia anterior, então era muito improvável que as víssemos
a tempo... e isso incluía as mortíferas mambas. Chiganda ia à minha frente, agindo como nossos olhos
e ouvidos. Fora ali que nascera e confiava nele totalmente. A luz de uma fogueira de lenha mopane,
de lenha, delineava a entrada da aldeia, que atingimos cerca das duas da manhã. Havia uma fraca fatia
de Lua a brilhar por cima das nossas cabeças quando emergimos do denso matagal onde os obscenos gritos
das hienas pontuavam o ar da noite. Sem dúvida que estavam a prever uma matança, e isso significava que
havia por ali leões. Como a ajuda médica verdadeira se encontrava pelo menos a um dia de distância, os
aldeões tinha-se virado para mim - pouco mais que um jovem acabado de sair da adolescência -, a fim de
ajudar a salvar uma mulher e o seu bebé ainda por nascer. Lancei uma única olhadela ao corpo enormemente
inchado e exausto, deitado sobre uma esteira num canto da palhota escura, rodeado pelas mulheres idosas,
e compreendi que teria de a levar ao posto de socorros em Mungári, para sul, por uma estrada de mato
capaz de quebrar os ossos aos viajantes. Improvisámos uma maca com paus e cobertores para ser transportada
pelo caminho que eu e Chiganda tínhamos acabado de percorrer. Os aldeões acompanharam-nos enquanto os
carregadores da maca se esforçavam por chegar à minha camioneta Ford B, que ficara no posto comercial.
Passou-se uma eternidade antes de conseguirmos chegar à clareira. Colocámos a mulher e dois membros da
sua família na traseira da camioneta, numa cama improvisada com sacas, e partimos para a picada. Debatemo-nos
com um terreno cada vez mais irregular, onde precisei de conhecimentos para manter a camioneta sob controlo.
Os travões estavam a falhar e necessitava de me manter bem agarrado às mudanças para que estas não saltassem
e não nos atirassem para algum buraco onde ficaríamos empanados para sempre. Cerca de uma hora depois
ouvi batidas urgentes no tejadilho da cabina. - Pare, patrão, pare! O bebé está a sair! - Obriguei
a camioneta a parar numa subida da picada e precipitei-me para o exterior com o Chiganda. As mulheres
que iam na traseira da camioneta falaram muito rapidamente em chi-Sena, que eu conhecia, e explicaram-me
que os solavancos da viagem pela picada tinham dado resultado. O bebé soltara-se. Com tesouras já preparadas,
o Chiganda segurou na minha lanterna, o cordão umbilical foi cortado, o bebé foi enrolado num cobertor
improvisado feito de sacas e os seus primeiros sons não foram muito diferentes dos miados de um gatinho.
Limpámos as secundinas, que as mulheres insistiram em guardar, provavelmente para algum ritual tribal,
demos água a beber à mãe exausta mas triunfante, fizemos meia volta e regressámos por onde tínhamos vindo.
Foi extraordinário. Num espaço de menos de quatro horas, o céu começou a iluminar-se para mais um dia
na selva de Manica e Sofala, e o telégrafo do mato ficou inteiramente operacional. Por fim, quando regressámos
ao posto, já uma multidão de aldeões lá se encontrava, amontoada em volta de um par de fogueiras, para
saudar a chegada do bebé e da mãe. Nunca consegui descobrir como fora que a notícia se espalhara tão
rapidamente através da mata. Era um fenómeno que eu iria testemunhar naquela fria noite vezes sem conta
ao longo das décadas que passei nas savanas, florestas e pântanos de África, longe de quaisquer formas
modernas de comunicação. Foi com uma fumegante caneca de café na mão, ao som das ululações das mulheres
e da zombaria dos homens, que regressei por pouco tempo à minha cabana para digerir os acontecimentos
da noite. Tinha sido atirado para os múltiplos papéis de caçador, comerciante, mecânico, médico, árbitro
e até parteiro logo no princípio do que viriam a ser alguns dos anos mais absorventes da minha vida.
Naquela madrugada passei por uma estranha sensação de realização. Uma mulher sobrevivera. Uma criança
nascera e toda a aldeia se alegrava. Nos anos que se seguiram, sempre que eu passava por aquela região,
os aldeões apareciam para me oferecer ovos ou para me meterem nas mãos uma galinha magricela. Não posso
impedir-me de fazer uma comparação entre o valor intrínseco de tais gestos e o valor dado aos minerais
raros que na altura começavam a ser prospectados em Moçambique e com os quais estive envolvido, embora
por pouco tempo. Em 1947, acabado de sair da escola e de regresso a Tete, chegaram-nos notícias de
uma decisão que poria em movimento uma multiplicidade de acontecimentos e que acabaria por influenciar
milhões de vidas em muitos países africanos, incluindo Moçambique. A Grã-Bretanha ia conceder a independência
à índia naquele ano. Na altura, para nós, parecia tratar-se de um facto sem qualquer relevância. Prosseguimos
com as nossas vidas no vale do Zambeze, onde a minha família tinha negócios em Tete e onde vivíamos uma
vida confortável numa associação cordial com toda a gente. De facto, o nome da família Serras Pires tornou-se
sinónimo de Tete. Pratiquei aí muitos desportos, em especial futebol e ténis, uma vez que a integração,
no desporto, era completa. Esse facto reflectia toda a nossa sociedade, onde a cor não constituía uma
barreira. Tal como qualquer outra zona da Terra, Moçambique tinha distinções sociais mas não uma segregação
racial legislada e formal, tal como aconteceria no ano seguinte na nossa vizinha África do Sul. Essa
fatídica decisão do Partido Nacional Africanense iria influenciar directamente Moçambique e o destino
da minha família. Enquanto aguardava respostas das universidades da África do Sul quanto à possibilidade
de conseguir uma vaga, os gigantes mineiros desse país começaram a demonstrar um crescente interesse
pela prospecção em Moçambique. Em 1948 fui abordado pela Goldfield´s, da África do Sul, que me ofereceu
uma posição num dos seus maiores empreendimentos de prospecção no vale do Zambeze. Essa gigantesca empresa
mineira de língua inglesa precisava de um homem no terreno que fosse fluente tanto em inglês como em
português, que fosse capaz de conversar em chi-Nungwe, a principal linguagem indígena, e que pudesse
caçar para a panela a fim de alimentar a força de trabalho local. Ou seja, procuravam alguém habituado
ao mato, de preferência jovem e solteiro, que fosse capaz de passar longos períodos longe de todos os
confortos modernos para supervisionar os trabalhadores. Era um trabalho feito de encomenda para mim.
Crescera na região, tinha fome de acção e de aventura, e também da liberdade que só o mato nos pode dar.
Geri uma força de cerca de 800 voluntários recrutados entre os povos Nungwe, numa altura em que o sistema
de trabalho obrigatório era amplamente utilizado e deu, infelizmente, origem a muitos abusos. Contudo,
na Goldfield's nunca tive, em nenhum momento, de obrigar um homem a continuar a trabalhar, porque esse
gigante da mineração dava condições decentes aos trabalhadores e tratava-os bem. Com Tete como ponto
de referência, cobri uma muito vasta região através do rio Zambeze, a norte de Tete e ao longo das margens
do rio Mavusi, um afluente do Zambeze. A Goldfield's estava particularmente interessada num mineral radioactivo
chamado samarsquita, um óxido que constitui a fonte de um certo número de metais das terras raras. Parece-se
com pedaços de carvão aveludados e começámos a descobrir depósitos significativos não muito longe dos
abundantes campos carboníferos de Moatize. Percorri distâncias imensas a corta-mato, viajando em terrenos
perigosamente rochosos e por vezes íngremes, veículos que, nos nossos dias, ninguém teria a coragem de
pegar. Mais tarde pudemos utilizar um jipe Willys, numa altura em que os veículos com tracção às quatro
rodas eram ainda um luxo distante para a maior parte das pessoas. Já tinha experiência suficiente
no que se referia às pontes de madeira por cima de rios, com as suas estruturas por vezes suspeitas e
com espaços entre os troncos mal aparados, para não entrar em pânico quando as atravessávamos cautelosamente.
Ainda consigo ouvir os rangidos e os estalidos agourentos que essas pontes soltavam quando o veículo
as atravessava centímetro a centímetro, com a estrutura frequentemente a oscilar sob o peso. Houve uma
vez em que uma dessas pontes rudimentares oscilou e caiu por trás de nós logo que colocámos as rodas
em solo firme, na outra margem. Em África, um número suficiente deste tipo de experiências acaba por
nos transformar em fatalistas. O que tiver de ser... será. A visão, através dos buracos entre os troncos
mal ajustados, das águas revoltas e enlameadas de uma inundação repentina nada faz para nos alimentar
a confiança, em especial quando estamos a transportar pessoas, rações secas e dinheiro para sustentar
um campo mineiro durante semanas a fio. .............................................................................................................
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Edição em Português de Abril de 2002
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