iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
|
LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO
|
CAPITULO IX
DESTRUIÇÃO
Que os meus inimigos morram antes do seu tempo; Que a
morte os assalte e vivos desçam ao inferno; porque há maldade nas suas habitações e nos seus corações.
- Salmo 55
Estavam dois negros em roupas civis à minha porta. Foi ao fim da tarde de
27 de Agosto de 1984 e eu sabia que me tinham ido buscar. Não me deram a hipótese de levar fosse o que
fosse. Eram tipos dos serviços secretos, uma impressão reforçada pêlos óculos escuros com vidros espelhados
e pelo seu ar de rufiões. Não fiquei surpreendido com aquela reviravolta nos acontecimentos. Havia
um Land Rover de chassis curto estacionado no exterior do hotel. Disseram-me para me sentar no banco
traseiro e apresentaram uma venda num tecido azul-escuro. Fui vendado mas não algemado. Tinha um homem
de cada lado, o meu filho, o meu sobrinho e o Rui já se encontravam presos, pelo que não valia a pena
tentar escapar. O Land Rover arrancou. Ninguém pronunciou uma palavra. Andámos durante cerca de meia
hora antes do veículo voltar a parar. Retiraram-me a venda e pude ver que havíamos chegado ao que
parecia um complexo militar com algumas casas. Fui levado para uma delas e enfiado num quarto com casa
de banho - relativamente confortável -, mas as espessas barras de ferro nas janelas e os guardas tanto
no exterior da porta como em volta da casa indicavam claramente que estava sob prisão e que aquilo não
era uma casa vulgar. Trataram-me bem, forneceram-me um magro jantar de sanduíches e fui para a cama.
Ninguém me disse uma só palavra. Tratou-se de uma espécie de confinamento solitário, talvez de um "amaciamento"
para o que viria a seguir. O dia seguinte foi igual. Comida razoável e silêncio. Sempre o silêncio...
e uma ansiedade que me devorava as entranhas. Onde estava o meu filho? Onde estavam os outros? Que estariam
os tanzanianos a fazerem-lhes? As nossas actividades eram completamente legais. Então, porquê tudo aquilo?
Os meus instintos continuavam a ligar aqueles acontecimentos sinistros às investigações a respeito de
Theo Potgieter, das suas intenções menos que claras na Tanzânia e no facto de ter sido eu a iniciá-las.
Trouxeram-me o jantar, sanduíches de carne e café. Havia sempre pelo menos dois homens em trajes civis,
que deviam ser elementos da contra-espionagem. Um deles, muito em particular, possuía uns olhos estranhamento
oblíquos num rosto cruel. Nessa noite, o procedimento foi o mesmo até ter terminado o meu jantar. Estava
a beber o café quando a porta se abriu repentinamente e surgiu o homem de olhos oblíquos com um companheiro
muito baixo carregado com uma caixa. Fiquei a olhar enquanto abriam a caixa e faziam aparecer tiras
de borracha negra de câmaras-de-ar de bicicleta. Puseram-me de pé, sempre num perfeito silêncio, enquanto
o homem baixo me puxava os braços para trás e os amarrava com força, com os tubos de borracha. Comecei
a gritar de dor, dizendo que não era um criminoso. Responderam com o silêncio e apertaram os tubos ainda
com mais força. A seguir, o homem baixo empurrou-me para a cama, agarrou-me os pés e atou-me os tornozelos
com mais tubos de borracha. Depois disso foram-se embora sem uma palavra, bateram com a porta e fecharam-na
à chave por trás deles, não obstante os guardas colocados no exterior de dia e de noite. Já sentia dores
tremendas à medida que o sangue que fluía para as minhas extremidades era progressivamente restringido.
A cama estava encostada à parede, pelo que comecei a bater nesta o melhor que pude para tentar activar
a circulação para lá das borrachas. Debati-me para mover as pernas pelo mesmo motivo, mas sentia-me como
se os tubos de borracha se estivessem a apertar de minuto a minuto. Gritei, berrei, bati nas paredes
e voltei a gritar. Os tubos apertavam-se à medida que a carne inchava em volta das borrachas... e a noite
ainda nem sequer começara. Passei aproximadamente 12 horas naquele quarto, sozinho, na escuridão total
e mergulhado numa agonia. Nem sequer vale a pena tentar procurar palavras para descrever aquela tortura
indutora de vómitos, o cheiro das roupas sujas, as ondas de puro terror que me engolfavam a mente ante
a ideia de vir a perder as mãos e os pés para a gangrena ainda antes do dia chegar ao fim. Onde iriam
ser amputadas? Sobreviveria? Como viveria depois disso? Quereria continuar a viver depois disso? Como
iriam, a família ou os amigos mais chegados, ser alertados para o que nos acontecera? A quantos mais
minutos daquele tormento indescritível conseguira sobreviver? Por que razão nos tinham ido buscar? Depois...
havia as gargalhadas dos guardas no exterior da minha porta, o cheiro ao tabaco barato que fumavam com
todo o conforto enquanto ouviam uma voz na rádio, a pairar em Swahili, e escutavam o seu cativo a uivar
ao longo de toda a noite como um cão a quem estivessem a arrancar as unhas, uma a uma, logo seguidas
pêlos dentes, também um a um. Que ninguém se atreva a pôr em causa a verdade deste pormenores horríveis.
Aconteceram... e as repercussões acabariam por ser sentidas nos altos círculos governamentais de vários
países e envolveriam chefes de Estado. Ouvi uma viatura a parar no exterior da janela quando o que
ainda restava do meu estômago me subia mais uma vez à garganta. Portas abriram-se e fecharam-se e toda
uma série de pés marchou para a porta da frente e até ao meu quarto, cuja porta foi aberta com rudeza
e escancarada. Vi aparecer o mesmo suíno de olhos em bico, acompanhado pelo ajudante baixinho. Mais uma
vez, o silêncio. Fiquei agitado ante a ideia de ir ser arrastado para o exterior e abatido a tiro. A
morte era uma perspectiva muito atraente. Tinha a esperança, contra todas as esperanças, de ir morrer
em breve. Os pensamentos, ou pelo menos os pensamentos possíveis entre as vagas de agonia abrasadora
nos pulsos e nos tornozelos, centraram-se nos meus três filhos, mas em especial no único rapaz. Que lhe
estariam a fazer? Onde se encontraria? Fui posto em pé à força e recordo-me de ter gritado no instante
em que o peso do corpo se apoiou nos balões inchados daquilo que outrora haviam sido os meus pés. Fiquei
aterrorizado quando olhei para baixo, para aqueles bulbosos montes de carnes enegrecidas. E óbvio que
não podia ver as mãos, mas o aspecto deveria ser o mesmo. Deixei novamente de ver porque fui vendado,
para logo de seguida ser meio empurrado meio arrastado para o que pressenti ser um Land Rover, talvez
o mesmo que me transportara para o complexo havia dois intermináveis dias. Lembro-me de ter emitido
um estranho e longo gemido, entrecortado durante a viagem por um caminho irregular e posteriormente por
estradas de alcatrão repletas de buracos. Para mim, cada salto e cada balanço constituíam uma nova
agonia. O facto de um qualquer ser humano poder ir sentado com complacência ao lado de outro ser humano
e limitar-se a contemplar - e na verdade até a aumentar -, um tratamento tão bestial e um tal sofrimento
sem nunca emitir um único murmúrio, só pode significar que se tratava de personalidades psicopáticas,
criadas num ambiente psicopático. Continuámos aos saltos pelas estradas até que comecei a ouvir o zumbido
de motores de avião e me chegou ao nariz o cheiro a gasolina de aviação. Era claro que estávamos prestes
a embarcar num avião... e os meus pensamentos pareceram entrar em coma. Cortaram-me os tubos de borracha
que me prendiam os tornozelos. Voltei a gritar, com a garganta já em carne viva por causa da noite anterior.
A rude procura das tiras de borracha escondidas por entre as pregas de carnes enegrecidas dos tornozelos
inchados foi um suplício muito para além do imaginável. A sensação do sangue até aí contido a tentar
escoar-se pelas veias comprimidas foi ainda pior. Rezei a uma divindade inexistente que me fizesse parar
de respirar ali mesmo. Vários conjuntos de mãos empurraram-me para os degraus de um avião. No interior,
fui atirado para um assento e removeram-me a venda. Tratava-se de um luxuoso jacto privado com
pequenas mesas entre os assentos. Na minha frente estava o meu filho, por barbear, macilento e traumatizado.
Irei ser perseguido pela expressão assombrada que lhe notei nos olhos quando me viu. Estava algemado.
A seu lado sentava-se Caju, o meu sobrinho, também algemado e com um ar doentio. À esquerda deparei com
o Rui, algemado e num estado muito perturbado. Comecei a uivar de dor quando o sangue me regressou aos
pés. As mãos, amarradas atrás das costas durante cerca de 14 horas, incharam ainda mais. O meu filho
e os outros provocaram uma tal algazarra por causa do meu estado que um daqueles rufiões mal lavados
me cortou os tubos de borracha dos pulsos e libertou os outros das algemas. Para onde poderíamos nós
fugir? Eu nem sequer era capaz de andar! Recordo-me de ter mergulhado para dentro e para fora de uma
espécie de escuridão enquanto o meu filho agarrava nos grotescos volumes azuis negros do que haviam sido
as minhas mãos e começava a esfregá-los, gritando-me que tinha de o fazer para as salvar da gangrena.
Pela minha parte, gritava e gemia al-ternadamente. O meu filho meteu-me um cigarro nos lábios para que
pudesse puxar uma fumaça. As minhas mãos estavam inutilizadas. O avião rolou na pista e levantou voo.
O Rui conseguiu informar-me que vira as letras CCM na cauda do jacto executivo F28. As iniciais correspondiam
a Chama Chá Mapinduzi (Partido Revolucionário), o nome Swahili para o único partido político admitido
na Tanzânia, chefiado por Julius Nyerere. Aquele aparelho era um avião presidencial. O CCM continua a
ser o partido que ainda hoje governa o país, não obstante o eventual aparecimento de um sistema multipartidário
em 1992. Pela posição do Sol, estávamos a meio da manhã. Não tínhamos energias e permanecíamos todos
num estado de profundo choque e exaustão. Os nossos bandidos tanzanianos e os seus parceiros moçambicanos
do mesmo ramo de actividade também se encontravam a bordo, tal como vim a saber mais tarde. Não pronunciaram
uma palavra durante todo o voo. Para onde nos dirigíamos? Estava virado para a traseira do jacto, facto
que, para além de tudo o mais, me deixava enjoado, mas reparei que tinha o Sol do lado direito. Todos
nós havíamos pensado que seguíamos para Dar es Salaam, que jaz a leste de Arusha, mas já permanecíamos
no ar há demasiado tempo. A seguir o meu filho constatou que o Sol se mantinha à esquerda do avião, ou
seja, à minha direita. Era claro que nos dirigíamos para o sul... e era ainda mais claro que íamos ser
entregues a Moçambique. Tratava-se de uma grotesca violação das leis internacionais. Tal como viemos
a saber, havíamos sido raptados por tanzanianos de acordo com um pedido específico do Governo de Moçambique.
Começámos finalmente a perder altura depois de um prolongado e indistinto período no ar. Encontrávamo-nos
sobre Maputo, a antiga Lourenço Marques, capital do Estado socialista-marxista de Moçambique, com um
regime de partido único. Após quase 40 anos de vida em Moçambique e de uma ausência forçada de quase
dez anos, ali estava eu de regresso depois de ter sido raptado da Tanzânia por qualquer motivo que não
conseguia descortinar, enquanto me atormentava com a ideia de que já seria demasiado tarde quando alguém
da nossa família ou do círculo de amigos influentes conseguisse descobrir o que acontecera e tentasse
que nos libertassem. Há limites para o mau tratamento que um corpo humano consegue suportar. Aterrámos
no Aeroporto de Maputo a 29 de Agosto, junto a um hangar e longe do habitual terminal para passageiros.
Dois negros subiram para o avião e exigiram que nos identificássemos. A seguir fomos todos novamente
vendados e arrastados/empurrados para um veículo, para uma viagem relativamente prolongada através de
ruas movimentadas. Sentia-me, à medida que o pesadelo prosseguia, como se estivesse a flutuar dentro
de mim mesmo e nada fosse real. Os recém-chegados tinham pretendido algemar-me, mas as algemas não cabiam
em torno do sítio onde haviam sido os meus pulsos. Por fim, o veículo parou na frente do que era obviamente
uma entrada fortificada de qualquer tipo antes de lhe permitirem que prosseguisse. Voltou a imobilizar-se
completamente pouco depois, após o que nos empurraram para o exterior. Retiraram-nos as vendas e separaram-nos.
Consegui murmurar ao meu filho e aos outros para não perderem a esperança. Estávamos na Prisão da Machava,
em Maputo. A tarde foi quase toda ocupada com a recolha das impressões digitais, o que para mim
foi um novo tormento, e com as formalidades de "registo" por parte de um bando de funcionários prisionais
letárgicos e sem expressão. Forneceram-me um uniforme da prisão: calças azuis-escuras com uma tira vermelha
ao longo da bainha exterior, e um camisola a condizer, de mangas curtas. Não houve um duche, não houve
sabão nem nada que pudesse remover a sujidade acumulada. Mantiveram-me descalço, e tudo aquilo fazia
parte das técnicas de desumanização. Todavia, nenhuma força, fosse ela qual fosse, podia penetrar na
minha cabeça para me acorrentar o espírito. Ia manter a minha sanidade. Ia sobreviver. Ia recordar-me
daquele horror. Um dia, iria testemunhar aqueles tempos repletos de terror. Os guardas empurraram-me
para uma passagem húmida de que me recordo bem por causa do constante som de portas metálicas a baterem
e do cheiro a urina que pairava por todo o lado. Nessa passagem, junto a uma grade que dava para o exterior,
reparei num homem branco com uma comprida barba e cabelos louros que falava num português com um forte
sotaque. Os nossos olhos encontraram-se, mas o homem fez-me sinal para não o reconhecer. Os guardas empurraram-me
para a frente e meteram-me numa minúscula cela com um sujo colchão de esponja a um canto. Nada mais ali
existia, para além de uma pequena janela com grades, aberta a grande altura nas paredes escuras. Fui
atirado para o chão. - Adelino! Adelino! Estás bem?! Era o branco que vira na passagem. Era a voz
de Dion Hamilton, um cidadão britânico que eu vira pela última vez na Beira havia mais de dez anos. Fora
preso e condenado por alegada sabotagem de tanques de combustível na Beira, em 1982... e ainda tinha
pela frente mais 18 anos de cadeia. "Lê este bilhete e destrói-o imediatamente. Outra coisa: é provável
que te mantenham vendado por pelo menos 40 dias. Estás nas mãos da contra-espionagem! Sê forte!" O
homem disse aquilo e desapareceu. Arrastei-me até à porta e encontrei um minúsculo bocado de papel
com uma mensagem escrevinhada. Implorava-me que nunca admitisse, junto dos interrogadores, que Dion estivera
associado comigo na violação das sanções contra a antiga Rodésia. Não consegui imaginar porque motivo
se preocupava a respeito de uma coisa que todo o mundo já sabia havia cerca de dez anos. Para além disso,
ele fora preso por alegada sabotagem de uma importante instalação nacional. Nos anos de 1960, Dion
trabalhara para a Cory-Mann George, uma empresa de transportes de carga da Beira, onde nos conhecemos.
Pouco depois da declaração unilateral de independência por parte da Rodésia, em Novembro de 1965, Dion,
o meu irmão Jacinto e um inglês da Beira juntaram-se a mim num avião pilotado pelo próprio Dion e dirigimo-nos
para Tete, onde montámos uma organização, em nome da família Serras Pires, destinada a violar, em grande
escala, as sanções decretadas contra os rodesianos. Fizemo-lo com grande êxito até 1974... e eu retirei
uma certa satisfação da ironia de haver um inglês envolvido no assunto. Consegui meter o papel na
boca e a seguir enfiei-o numa fenda do sujo colchão de esponja. Não dormi. Não fui capaz de adormecer.
Não dormira desde aquela noite em Arusha, 36 horas antes, em que me tinham amarrado com os tubos de borracha.
Na manhã seguinte, quando me levaram um copo de água e um pouco de pão, comi directamente do chão como
um cão porque não me podia servir das mãos. Reparei que me tinha surgido furúnculos ao longo dos antebraços.
Consegui examiná-los melhor quando pedi para me levarem à retrete, que não passava de um sujo buraco
no chão rodeado de excrementos e sem água. Claro que não havia papel higiénico e fazia tudo parte do
padrão destinado a quebrar o espírito humano. Um guarda conduziu-me ao posto de primeiros socorros,
onde um servente despejou mercurocromo nas minhas mãos e ao longo dos braços antes de os envolver em
ligaduras. De volta à cela vi aparecer Dion, que me deixou puxar uma fumaça de um cigarro e me sussurrou
mais uma vez que devia esperar ser vendado, algemado, mantido sobre um chão de cimento nu e privado de
sono pêlos menos durante 40 dias. A SNASP, a polícia secreta moçambicana, iria interrogar-me e não podia
esperar qualquer espécie de piedade. Não voltei a ver o Dion, agora já falecido, depois desse momento.
Minutos depois os guardas vendaram-me e meteram-me num veículo para uma curta deslocação fora do complexo
da prisão, até um edifício onde fui novamente metido num compartimento completamente nu. Obrigaram-me
a sentar-me numa cadeira e a ficar naquela posição sem comida nem água até à manhã seguinte. Não me podia
levantar. Não me permitiram que tentasse dormir. Sabia que havia olhos a vigiarem-me para verem se cedia.
Decidi, no interior da minha mente, que iria sobreviver, mas na altura ainda não sabia como. Surgiu
a madrugada do dia 31 de Agosto. Estava doente de fadiga, incapaz de dormir por causa das dores e também
porque havia sempre alguém por perto, pronto para me esbofetear se mostrasse sinais de estar a perder
a consciência. Era ainda muito cedo quando me conduziram para o exterior e me meteram num veículo, sempre
com os olhos vendados. Percebi imediatamente que os outros se encontravam no mesmo veículo. Fomos conduzidos
a alguma distância, para o que pensava ser um aeroporto por causa do ruídos dos motores de avião. Quando
o veículo parou o meu filho conseguiu afastar um pouco a venda e espreitar numa altura em que percebeu
que os guardas se tinham distraído com a presença de helicópteros. Sussurrei-lhes rapidamente o que Dion
Hamilton me dissera quanto ao que podíamos esperar nas mãos da SNASP. Disse-lhes que tivessem coragem
e fossem pacientes, porque não tínhamos feito nada de mal. Embarcámos num helicóptero para uma viagem
de dez minutos. Recordarei para sempre a sensação da areia da praia contra as doridas solas dos pés quando
fui empurrado para fora do aparelho. Era claro que nos encontrávamos numa ilha, talvez em Inhaca ou Xefina,
ambas ao largo da faixa de costa de Maputo. Descobri depois que se tratava de Xefina, uma pequena ilhota
com masmorras que fora utilizada pela PIDE e também muito antes desta. Percebi imediatamente uma coisa:
os moçambicanos estavam a mudar-nos de local para local, porque queriam manter o nosso paradeiro em segredo.
Por essa altura, uma boas 72 horas depois de me terem apanhado em Arusha, e ainda mais do que isso desde
o momento em que o meu filho e os outros tinham sido raptados da concessão de Ugalla, a notícia já devia
ter-se espalhado por intermédio dos colegas caçadores e dos clientes americanos, os Rays e Bob Brown,
todos do Texas. Fomos fotografados e enfiados, para a noite, em minúsculas celas individuais, escuras
e completamente nuas, onde jazemos no gelado chão de cimento. Para mim, os mosquitos foram um tormento
muito especial porque não podia servir-me das mãos ou dos braços para os afastar. Forneceram-me uma
malga de sadza seca, a refeição de milho típica de todo o Sul da África, que meteram por uma fenda da
porta. Mais uma vez, fui obrigado a comer directamente da malga como um cão. O sono estava fora de
questão. Encontrava-me vendado, tal como todos os outros, e passei mais um noite interminável enrolado
a um canto, a ser comido vivo. Aquele processo de desmoralização, destinado a desorientar e a intimidar,
prosseguiu na manhã seguinte com a primeira sessão de interrogatórios. Ainda vendado, pediram-me que
lhes fornecesse o nome completo, a data do nascimento, a residência em Portugal, pormenores sobre os
membros da família mais próximos e assim por diante, até ser levado de volta à cela para ficar à espera
de mais uma noite terrível. A seguir ouvi os motores de um helicóptero a aproximarem-se e a tornarem-se
cada vez mais ruidosos, até que o aparelho pousou e desligaram o motor. A porta da cela abriu-se e levaram-me
para o aparelho... vendado, é claro. Depois de um voo um pouco mais prolongado do que o anterior,
o helicóptero aterrou no que era obviamente o continente moçambicano. A rotina já começara a tornar-se
familiar. Fomos metidos num veículo para uma curta deslocação desde o aeroporto até ao que presumi ser
uma das casas seguras da SNASP nas vizinhanças deMaputo, com celas nuas e pavimentos de cimento. Passei
mais uma noite de dores, enregelado e sem ter dormido ao longo de cinco dias. As ligaduras que me cobriam
as mãos e os braços não tinham sido mudadas desde a Machava, e não sabia o que se estava a passar...
excepto que sofria de dores constantes e que soltavam um odor peculiar que se conseguia sobrepor ao próprio
cheiro do meu corpo, já de si bastante mau.
|
Pensei que nos estavam a mudar de um lado para o outro por duas razões: para nos quebrarem e para manter
secreto o nosso paradeiro. Era claro que os moçambicanos andavam em busca de uma qualquer informação
e queriam todo o tempo possível para a extrair antes que as interferências exteriores pudessem perturbá-los.
Era ainda mais claro que alguém lhes encomendara todo aquele exercício demoníaco. Todavia, quem... e
porquê? Alguns dias mais tarde, dias um pouco indistintos, começaram os interrogatórios a sério. Estava
gelado, esfomeado, com alguma sede, coberto de sujidade, por barbear e com dores, e fui retirado da cela
e levado para uma sala aparentemente muito grande. Consegui perceber, pelas diferenças nas vozes, que
estavam quatro pessoas presentes à espera de me interrogar. Pertenciam a negros, a um branco e a um mulato.
Fui obrigado a ficar de pé durante horas enquanto me lançavam insultos e repetiam sempre as mesmas perguntas,
uma e outra vez. Todo aquele primeiro dia se centrou em Giscard D'Estaing, o antigo presidente da França
e agora dirigente do principal partido da oposição nesse país. Para começar, tive de suportar um chorrilho
de insultos a respeito da minha família fascista e colonialista, da exploração do "povo" pela classe
alta a que pertencia, da minha intenção de derrubar a "revolução" e dos planos para trazer de volta os
opressores dos tempos de Salazar, roubar o país, fazer sofrer o "proletariado" e muito mais. As vozes
rosnavam, gritavam, cuspiam e silvavam à minha direita, à minha esquerda, soavam repentinamente por trás
da minha cabeça ou a cinco centímetros do meu rosto, tão próximas que por vezes me chegava o cheiro dos
dentes podres dos interrogadores. Estava vendado, não conseguia fitar ninguém nos olhos, e não tinha
controlo sobre o local de onde os sons me chegavam. Tratava-se, é claro, de uma táctica clássica de interrogatório
para enervar e desorientar o cativo. Fui imediatamente acusado de ser membro da Renamo, o proibido
Movimento Nacional da Resistência Moçambicana, coisa que não era. Fui acusado de estar envolvido na construção
de pistas de aterragem na Tanzânia, em nome da Renamo, a fim de criar uma infra-estrutura para a recepção
de armas e para atacar Moçambique, que se encontrava inteiramente nas mãos da Frelimo, o partido marxista.
Já agora, talvez valha a pena indicar aqui que as nossas concessões se encontravam a cerca de 1600 quilómetros
da fronteira de Moçambique. Também fui acusado de utilizar a Hunters África como cobertura para aquelas
nefandas actividades contra o povo de Moçambique. O meu filho, o meu sobrinho e o Rui também estavam
a ser acusados de fazerem parte da conjura e de se fazerem passar por caçadores. Eu seria o cabecilha
da Hunters África, uma organização que, segundo me disseram, era na verdade uma fachada da CIA. Esta,
disseram-me, estava a trabalhar a par com a Renamo e a espionagem da África do Sul para derrubar a "nova
ordem" existente em Moçambique. O principal accionista da Hunters África era um milionário americano,
não era? E eu... era o mentor de tudo aquilo, afirmaram os interrogadores. Era um filho--de-puta-fascista,
um inimigo do povo... e muito, muito mais. Por estranho que possa parecer, notei que o efeito daquelas
palavras ia enfraquecendo por causa da constante repetição. Fui bombardeado durante todo o dia a respeito
de Giscard D'Estaing e do seu papel, junto de im, na Tanzânia. As quatro vozes sabiam que ele e eu nos
conhecíamos havia muitos anos e que caçara comigo nos tempos da Moçambique "fascista". Queriam saber
com quem falara ele na Tanzânia durante a recente caçada que havíamos feito juntos. De que tínhamos conversado?
Que estávamos nós a planear? Lançaram-me insultos e ameaças constantes a respeito do meu íntimo envolvimento
com os serviços de informações da África do Sul e de ser um operacional da CIA, ambos conhecidos inimigos
do Estado moçambicano, e também a respeito das minhas amizades com a "clique" dos países do G7. Aqui
chegados, fizeram referência aos meus antigos clientes das grandes famílias europeias produtoras de vinhos.
Fui acusado, muito em particular, de estar conluiado com D'Estaing nos planos para derrubar o Governo
moçambicano. De cada vez que abria a boca para negar todas aquelas asneiras alucinadas, de primeira grandeza,
gritavam-me que me calasse e era novamente ameaçado pelas quatro vozes, que berravam que eu era um capitalista
e um inimigo da revolução. Gritaram-me perguntas específicas a respeito das minhas frequentes viagens
aos Estados Unidos da América. Que ia eu, na verdade, lá fazer? Quem ia realmente visitar, e porquê?
Entretanto, as perguntas eram frequentemente misturadas com insultos grosseiros e muitas vezes obscenos...
e a voz mais zelosa e insultuosa de todas pertencia ao branco. As vozes tentaram submeter-me a um
interrogatório cerrado a respeito de Gordon Cundill e da South African Connection. Fui verbalmente bombardeado
com perguntas e acusações, que se tornaram cada vez mais ofensivas à medida que o dia ia passando e eu
permanecia apoiado em pés excepcionalmente dolorosos. O meu grupo e eu constituíamos a "ligação terrorista
de Lisboa", pronta para derrubar o Governo de Moçambique. No fim daquele dia terrível garantiam-me que
acabaria por falar e que iria "cantar" o mais alto que pudesse. - É o que todos fazem! - silvou urna
das vozes quando me empurraram para fora da sala e me levaram de volta à cela, com a bexiga quase a rebentar.
No segundo dia, depois de uma alimentação terrível, sem me poder lavar, tendo sido forçado a usar a cela
como latrina - cela que nunca era limpa -, e de mais uma noite privada de sono por causa do guarda com
um rádio a tocar em altos berros no exterior da porta e por outros guardas que abriam e fechavam a porta
da cela constantemente, fui arrastado de volta à sala de interrogatórios para enfrentar as quatro vozes,
sempre vendado, é claro. Ouvi novamente a mesma gritaria a respeito de Giscard D'Es-taing e do nosso
papel na conjura contra Moçambique a partir da Tanzânia. Neguei constantemente. Depois, uma das vozes
gritou repentinamente: - Muito bem! Não queres falar do teu amigo francês, dos seus amigos fascistas
americanos e do que estão a tramar? Então, agora vamos obrigar-te a falar! Logo de seguida ouvi a
voz do meu sobrinho Caju lá fora. Estava a ser espancado impiedosamente com uma qualquer espécie de instrumento
e gritava de dor a cada golpe. Entre os golpes perguntaram-me se ainda queria continuar calado a respeito
dos meus amigos e das nossas actividades subversivas contra o Estado moçambicano e o seu povo. Pedi-lhes
repetidamente para não baterem nos outros porque estavam inocentes de todas as acusações e disse-lhes
que me podiam bater, se quisessem, mas que isso não alteraria nada. Esta situação prosseguiu assim
durante vários dias, mas reparei que o Caju deixou de ser espancado. Também notei imediatamente que havia
vozes novas na cela, uma das quais pertencia a alguém que falava espanhol e que me pareceu ser cubano.
Voltei a ouvir as mesmas acusações e ameaças... bem como uma ameaça nova: recordaram-me que o meu filho
também se encontrava preso. Todavia, não podia admitir o que não passavam de acusações malévolas e insensatas.
Claro que me tornara anti-Freimo. Claro que me sentia cheio de ódio pelo que acontecera aos meus pais,
à minha família, aos amigos e a toda uma geração - isto para não falar no país e na vida selvagem -,
mas o meu grupo e eu estávamos completamente inocentes de todas as acusações que nos faziam. Contudo,
tal não iria evitar o que aquelas vozes e os seus amigos nos queriam fazer, a mim, ao meu filho ou a
qualquer outro. Encontrava-me num estado semicomatoso e tentava desligar-me mentalmente da dor, da angústia
mental, da sujidade, da fadiga indescritível, da fome, do frio durante a noite e do medo de que o meu
filho e os outros pudessem ser mortos para me obrigarem a "falar". Continuava a dizer a mim mesmo que
havia algo que impedia os nossos captores de nos matarem, e isso fornecia-me a energia mental suficiente
para me conseguir aguentar mais um dia.... e outro... e mais outro... Os instintos diziam-me que me devia
agarrar à sanidade, à esperança, e desligar-me do resto. Forcei-me a lidar com um dia de cada vez, tal
como um alcoólico em recuperação. Também aquilo acabaria eventualmente por chegar ao fim. Voltaram
a mudar-me na madrugada de um outro dia. Fui transportado durante alguma distância, por más estradas,
para o que revelou ser outra instalação da SNASP, e meteram-me num pequeno quarto com uma minúscula janela
gradeada. Pelo aspecto, devia tratar-se de alojamentos para servos convertidos numa prisão. Consegui
aperceber-me disso ao levantar o rebordo da venda com os polegares numa altura em que o guarda me levou
até aos arbustos para me poder aliviar. Não podia servir-me dos dedos. Não existiam instalações sanitárias
nem nenhum duche. O guarda viu-me a fazê-lo e ameaçou arrancar-me os olhos se o tentasse outra vez. Contudo,
de algum modo e no fundo das entranhas, sabia que a ameaça não passava de uma fanfarronada. Eles, quem
quer que fossem, não me queriam morto. Um mero guarda talvez pudesse espancar-me, pontapear-me e insultar-me,
mas não tomaria uma iniciativa mais drástica do que essas sem ordens dos seus chefes.
Vivia de
sadza, a dieta de milho dos locais. Por vezes, de manhã, forneciam-me um bocado de pão e chá com açúcar,
mas nem sempre. Nunca comi verduras ou proteínas de qualquer espécie durante os primeiros 53 dias do
meu cativeiro. Um ou dois dos guardas davam-me a comida à colher porque não consegui servir-me das mãos
durante mais de seis semanas após a provação com os tubos de borracha. Todavia, até os pequenos actos
de ajuda como aquele me davam alguma força moral. Na maior parte das vezes alimentava-me como um cão,
lambendo a tigela pousada no chão. Ia conservar-me vivo, ia prestar testemunho a respeito de tudo aquilo,
muito em especial aos que não queriam ouvir e que ainda hoje continuam a não querer ouvir. Para o fazer
tinha de comer, fossem quais fossem as circunstâncias. Não iriam quebrar-me o espírito. Teve lugar
outra reviravolta interessante que me deu esperança. Depois de alguns dias em confinamento solitário
naquele novo local, houve um enfermeiro que passou a visitar-me a intervalos relativamente regulares.
Mudava-me as ligaduras, lavava-me os braços e as mãos. As dores nas minhas extremidades ainda eram más
e sofria de uma irritante infecção nos olhos por causa da venda, que nunca era removida. Descobri que
o corpo humano consegue habituar-se a tudo se as circunstâncias se prolongarem por muito tempo. Os olhos
ardiam-me e davam-me comichão, mas não os podia coçar. O inchaço das mãos e dos pés era ainda muito mau
mas começava a diminuir. Já não receava perdê-los e morrer de gangrena. Os moçambicanos e os seus amigos
tanzanianos não me queriam morto. Fui deixado num estado de isolamento total durante mais de 40 dias.
Devia tratar-se de uma tentativa para me quebrar por causa da minha angústia em relação ao destino dos
outros, e muito em particular do meu filho. Era um abandono que pretendia forçar-me a enlouquecer e a
começar a balbuciar tudo o que os meus atormentadores quisessem ouvir, a que se seguiria uma "confissão
assinada", à típica maneira dos comunistas, é claro. A seguir recordei-me do aviso de Dion Hamilton a
respeito de vir a ser vendado e maltratado pelo menos durante 40 dias. Ao fim de 30 dias aconteceu algo
que me ajudou a sobreviver. Um dos guardas sussurrou-me que falara com outro guarda, que lhe dissera
que o senhor Monteiro, o senhor Caju e o senhor Tim--Tim estavam vivos. Estavam "óptimos". Este simples
acto de bondade deu-me a força mental para continuar a aguentar. Durante todo esse tempo nunca permitiram
que me sentasse ao sol, que passeasse ou que fizesse um pouco de exercício ao ar livre. Vivi na minha
cela - um compartimento minúsculo e escuro - durante 24 horas por dia, excepto quando me levavam aos
arbustos para me aliviar. O rádio no exterior da minha porta nunca era desligado ao longo das 24 horas
do dia. Os programas revolucionários socialistas do povo berravam constantemente, sem um único intervalo,
para aliviarem o aborrecimento dos guardas e para me impedirem de adormecer. A porta da cela abria-se
e fechava-se, abria-se e fechava-se, abria-se e fechava-se.... sempre com a mesma finalidade. Não
me lembro de ter despertado de um sono, mas devo ter perdido a consciência de vez em quando. Suponho
que mergulhei em momentos de coma de alguns minutos de cada vez, mas estava acordado sempre que a porta
se abria. No entanto, sei bem que fui mantido num chão de cimento nu, sem cobertores nem colchão. O
facto de não poder abrir os olhos, não poder pestanejar nem ver normalmente - mesmo que fosse uma parede
escura e as grades nas janelas - privava-me de uma função corporal básica: o controlo sobre a minha vida.
A finalidade de todo o procedimento era precisamente essa, desgastar-me até que uivasse tudo o que queriam
ouvir. Numa certa manhã, cerca de 45 dias depois do início da provação, tive visitas. Eram as minhas
"vozes", acompanhadas por mais uma ou duas vozes novas. Os interrogatórios recomeçaram. Já tinha tido
tempo para repensar a minha situação? Já estava preparado para admitir a culpa e o envolvimento directo
com a CIA, a Renamo, a comunidade da espionagem da África do Sul, os meus ricos e famosos amigos da Europa
e a sua cumplicidade na conjura para destruir a revolução do povo em Moçambique? Reiterei o que afirmara
desde o primeiro dia: estava inocente de todas aquelas acusações. - Muito bem - disseram as vozes.
- Escuta cuidadosamente esta gravação. Ë do teu filho, que já confessou. - A fita começou a tocar e ouvi
o meu filho a ser espancado, talvez com um chicote de pele de hipopótamo, conhecido por sjambok, ou por
um tubo de borracha. Claro que ele nada tinha para confessar porque não fizera nada de mal. Tal como
soube mais tarde, haviam-no obrigado a manter-se de pé durante dias, rodeado por guardas que lhe batiam
com um cinto se se fosse abaixo e tentasse sentar-se ou deitar-se. Depois fora esticado no solo e espancado.
Tinham feito o mesmo ao meu sobrinho Caju e ao Rui, que fora vítima de uma terrível tortura mental. Informaram-nos,
a todos nós e em vários momentos, que um ou outro elemento do grupo já morrera. Quando me disseram que
o meu filho estava morto decidi imediatamente, de um modo ainda mais resoluto do que nunca, que jamais
iria admitir aquelas loucas acusações. Para além disso, também não me deixaria morrer com facilidade.
Depois daquele dia de terror devolveram-me à cela, vendado, exausto, gelado e num desconforto ainda considerável.
Estava encolhido a um canto quando a porta se abriu e entrou um dos guardas. Pediu desculpa por não ter
chá ou café, mas levara-me uma caneca de água quente e açucarada para me aquecer. Tratava-se do mesmo
guarda que me dera notícias sobre os outros. Aquele gesto de humanidade da parte de alguém que correra
um grande risco ao falar comigo, e ainda mais ao oferecer-me qualquer coisa, mesmo que fosse apenas uma
caneca de água, deixou--me muito afectado. Comecei a soluçar pela primeira vez em muitos anos, talvez
desde a morte da minha filha bebé, Margarida, nos anos de 1950. Toda aquela dor, horror e ansiedade explodiram
dentro de mim. O guarda estava só e ninguém mais soube disso. Recompus-me e senti um estranho alívio,
bem como uma maior determinação em ficar vivo e recordar. Nunca esqueci aquele guarda. Por vezes, quando
se atrevia a fazê-lo, também partilhava comigo os restos da sua comida e dava-me um pouco de arroz ou
de chá. Há sempre um pouco de luz mesmo no buraco mais escuro. Numa certa manhã teve lugar uma
grande azáfama. Os guardas começaram a varrer, a lavar e a limpar. Enfiaram uma mesa e algumas cadeiras
na minha cela e ouvi-os a montar um qualquer equipamento de gravação. Tive uma premonição imediata: aquilo
só podia significar uma coisa, a visita de um funcionário de alto nível. Quem poderia ser? - Adelino!
- Ouvi uma voz trocista a chamar-me pelo nome. Conheci-a instantaneamente. Era a voz de Sérgio Maria
Castelo Branco da Silva Vieira, o ministro da Segurança e chefe da SNASP. Tratava-se da pessoa ideal
para chefiar o órgão de segurança de uma Moçambique marxista-leninista. É preciso possuir umas determinadas
características para dirigir um aparelho clonado de acordo com as linhas do KGB soviético e da infame
STASI da Alemanha do Leste, aparelho que, para além disso, funcionava numa ligação íntima e constante
com essas duas organizações. Vieira fora escolhido directamente pelo Presidente Samora Machel. Que
ironia, encontrarmo-nos naquelas circunstâncias! As recordações começaram a subir à superfície da minha
mente confusa enquanto aquele chefe da organização mais temida do país se instalava numa cadeira e eu
permanecia vendado e sentado no chão. A sua família - de origem indiana goesa, negra e mulata -, e a
minha, haviam mantido relações de boa vizinhança em Tete, onde o avô dele fora funcionário do tribunal
e amigo do meu pai. A minha irmã, Lucinda, fora madrinha da irmã de Vieira, Gabriela, mais conhecida
por Gaby. As duas famílias sempre se tinham dado bem e mantido em contacto ao longo dos anos, de uma
maneira ou de outra. Lucinda voltara a encontrar Vieira em Portugal, em 1961, onde era estudante. Temos
uma fotografia que mostra os meus pais com os pais dele, e também com o Dr. Delgado, o médico local,
e com o próprio Vieira. Fora tirada quando saíra de Moçambique ainda jovem para ir frequentar uma das
mais prestigiosas instituições educativas do "regime de Salazar", o Colégio Santo Tirso. O meu primo,
José Luís Serras Lopes, também frequentou essa escola na mesma altura. Para o jovem Vieira, cerca de
13 anos mais novo do que eu, só era tido em conta o que havia de melhor. Vieira não completou os seus
estudos de advocacia em Portugal e acabou por ir para Paris numa época de fermentação política radical
na Europa Ocidental. Entre os colegas estudantes que estiveram com Vieira em Paris encontrava-se Joaquim
Chissano, o actual Presidente de Moçambique. Em certa altura, quando estive em Paris para tratar dos
negócios dos safaris, procurei vários antigos contactos de Moçambique, alguns dos quais haviam tido uma
associação muito íntima com Vieira durante a sua estada em França antes deste partir para a União Soviética,
a Argélia e outros países do mesmo tipo. Os fragmentos de recordações a respeito das conversas - de gelar
o sangue nas veias -, que esses contactos haviam tido comigo foram interrompidos subitamente quando a
voz de Vieira me cortou os pensamentos como um escalpelo ensanguentado. O interrogatório tornou-se
progressivamente mais ameaçador, mas não antes de o patrão da SNASP falar dos dias de Tete e da escola
primária Eduardo Baptista Coelho que ambos havíamos frequentado, em épocas diferentes, naqueles tempos
distantes e muito felizes em que as nossas famílias haviam sido vizinhas. É extraordinário o que a voz
pode revelar a respeito da essência do carácter de uma pessoa por intermédio dos tons, da cadência da
fala, do uso das ênfases, dos silêncios e das imagens negras, usadas como ferramentas destinadas a intimidar,
bem como o modo como o ódio mancha e distorce essa mesma voz. Vieira, eloquente defensor da revolução
marxista-leninista, sempre teve um cuidado especial para falar o português culto da elite colonial portuguesa
que já há muito tinha saído do país. Mais uma vez, tive a sensação de estar desligado de tudo aquilo,
de flutuar no exterior do meu corpo dorido e exausto, e de olhar do alto para aquela cena extraordinária.
Lembro-me, embora estivesse num indiscutível estado de extrema debilidade, de ter falado num sussurro
murmurado e quase inaudível, fingindo uma ainda maior fraqueza à medida que os ataques verbais ia aumentando.
Ameaçaram-me de estar arrumado a não ser que recuperasse o bom senso e confessasse. Houve uma coisa que
se tornou imediatamente aparente. O facto de o ministro da Segurança e patrão da SNASP, um homem cuja
reputação o precedia para onde quer que fosse, demonstrar um interesse pessoal pelo nosso caso - um caso
inteiramente inventado e com dimensões já assustadoras -, constituía uma indicação clara de que o Governo
moçambicano estava de algum modo a ser sujeito a pressões exteriores relacionadas connosco. Ao não nos
tratarem como prisioneiros "vulgares", tal como aos milhares de homens sem rosto, anónimos e infelizes
que desapareceram nos "campos de descolonização mental" da SNASP, que se iniciaram em 1975, davam-nos
uma certa medida de protecção e de esperança de que um dia iríamos sair dali com vida. Sabia, nos meus
ossos magoados, que tinha razão. Quanto mais me gritavam e mais ameaças me lançavam mais eu sabia, lá
no fundo de mim, que no exterior havia algo, ou mais provavelmente alguém, que impedia a minha execução
sumária. Só bastante mais tarde iria saber até que ponto os meus instintos estavam correctos naquele
dia, na fria e húmida cela onde o mau cheiro da malevolência pairava como um fedor a carne queimada.
Estava a passar-se qualquer coisa. Aqueles poucos últimos dias fundiram-se uns nos outros enquanto
tentavam artifícios após artifícios. As "vozes" diziam-me que a minha mãe apoiara a Frelimo e que por
isso não valia a pena estar a resistir. Senti toda uma nova raiva ao ouvir mencionar a minha mãe. Sim,
ela sabia que a Frelimo passava através da nossa quinta em Guro e dera instruções ao pessoal para não
procurar confrontações. A área estivera infestada desses guerrilheiros e o pessoal comunicava-nos sempre
qualquer presença estranha na nossa enorme propriedade. Eu herdara a sua vontade indomável, e por vezes
chocávamo-nos por possuirmos personalidades semelhantes. Naquele dia, o facto de ouvir o seu nome nas
bocas das "vozes" deu-me uma nova e estranha força para sobreviver, para a defender na morte e para recordar
as coisas por ela. Se a minha mãe tivesse sido uma entusiasta da Frelimo, então porque fora que o Partido
nos tirara a quinta e tudo o que possuíamos? Por que razão não continuávamos a viver em Moçambique, um
país que nenhum de nós desejara abandonar, mas de onde havíamos sido expulsos por causa da loucura que
varrera toda a ordem, toda a estabilidade e toda a esperança a partir de 1974? Deixei que as "vozes"
continuassem a falar. Iria sobreviver. Falaria pela minha mãe e simbolicamente também por todos aqueles
que haviam sido silenciados pelos novos amos. Depois, as "vozes" lançaram-se num tópico que, muito
secretamente, receava. Que grupo fora aquele que estivera ligado às operações da Safrique? Era do exército
português, não era? Tratava-se de urna referência ao Carnaval e ao seu grupo de Mandiocas com quem eu
combatera durante a nossa guerra secreta contra a Frelimo ao longo de quase dois anos. Para meu grande
alívio, o nome do Carnaval acabou por não ser referido. Embora tivesse morrido no Sudoeste Africano havia
oito anos, não queria ser arrastado para conversas a respeito das nossas actividades. Limitei-me a dizer
que os banqueiros proprietários da Safrique tinham pretendido melhorar a segurança das suas concessões
de caça, tendo em conta a guerra que se desenrolava no mato... pelo que o assunto foi esquecido. Depois
da brusca partida de Vieira, sempre no meio de terríveis ameaças contra a minha existência, voltaram
a mudar-me. Por volta do quinquagésimo primeiro dia, ou perto disso, fui guiado pelo que me pareceu ser
um autocarro, por causa do som do motor e dos degraus íngremes que tive de subir para entrar no veículo.
Pressenti que não me encontrava sozinho e tive a esperança de que o meu filho, o Caju e o Rui continuassem
vivos. (continua)
|
|
Edição em Português de Abril de 2002
|
|
|