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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO
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CAPITULO IX
DESTRUIÇÃO
(continuação)
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O autocarro seguiu aos solavancos por estradas muito más até ao que presumi ser um aeroporto por causa
do som dos motores a jacto e dos aviões que descolavam e pousavam. Tal como descobri mais tarde, o meu
filho encontrava-se realmente no autocarro e conseguiu ouvir os pilotos do Antonov russo em que nos meteram
a todos. O aparelho descolou e voou durante cerca de uma hora antes de aterrar. Fomos empurrados para
o exterior e metidos num veículo que nos levou para um destino desconhecido. Contudo, daquela vez, tratava-se
de uma prisão verdadeira. Fui metido numa cela, onde apalpei dois catres de cimento e uma torneira que
não deitava água. A seguir ouvi o Rui a gritar pêlos guardas. Estava vivo e tinham-me permitido que o
ouvisse! Estávamos juntos. Passava-se qualquer coisa. Onde estávamos? Soube muito mais tarde que havíamos
regressado a Maputo e que me encontrava na cadeia em que o meu filho e os outros haviam estado durante
todo o tempo em que eu permanecera isolado noutro ponto qualquer da região de Maputo. Tínhamos todos
sido levados para o tal aeroporto para um voo para qualquer lado, mas havíamos sido obrigados a regressar
ao mesmo aeroporto, de onde fora levado para a cadeia na companhia dos outros. Cerca de dois dias
mais tarde, voltaram a tirar-nos das celas, meteram-nos num veículo, embarcarem-nos noutro avião. Foi
um voo dolorosamente demorado. Aterrámos para reabastecimento depois de várias horas no ar. Tratava-se,
muito provavelmente, do aeroporto da Beira. Não muito depois o aparelho descolou novamente e o voo prosseguiu,
num zumbido interminável. Passou-me pela cabeça a ideia de que estávamos a ser levados para o longínquo
interior de Moçambique, para um daqueles "campos de reeducação" para desaparecermos e morrermos. Todavia,
o voo era demasiado prolongado para isso. Aterrámos. Pelo que conseguia ouvir, era um aeroporto muito
movimentado. Escutei o som de vários motores de avião, de pequenos veículos e de elevadores de carga
a funcionarem. Dar es Saiam? Voltámos a partir para um voo de menos de uma hora. Outro aeroporto, outro
veículo, mais uma viagem. Fui levado para um edifício e consegui desviar um pouco a venda para espreitar.
O que vi - e sofri um grande choque ao verificar que o meu pobre olho parecia ter dificuldade para se
focar -, deixou-me convicto de que estávamos de volta a um complexo semelhante ao de Arusha, aquele para
onde me haviam levado depois de me raptarem havia mais de sete semanas. O som de outros pares de pés
disse-me que não me encontrava sozinho naquela casa fortificada. Se estávamos fora de Moçambique, então
deveria ter havido um qualquer novo desenvolvimento. Alguma coisa correra mal... pois que outra razão
poderia existir para que os moçambicanos nos tivessem permito a saída do seu território? Se estava fora,
tinha a esperança de que os outros também estivessem e se encontrassem ali. Apercebi-me de uma mudança
de direcção naqueles mais recentes ventos de destruição das nossas vidas. Foi uma sensação que se sobrepôs
a tudo o mais, à minha suja condição física, às semanas de porcaria e odores agarrados ao corpo, às extremidades
ainda muito sensíveis, à total ausência de controlo sobre a minha vida e à falta de visão. Estava mal...
excepto no que se referia à mente. Apesar de tudo, ainda tinha controlo sobre a minha mente. Alguém
me empurrou para uma cadeira. Contudo, ainda antes de me conseguir sentar, houve uma mão aberta que me
esbofeteou na face e ouvi simultaneamente a voz de um negro a gritar-me em inglês: - Então, ainda
queres resistir-me, homem branco? - Acaba com isso! Era a voz de outro negro, também a falar em
inglês, íamos ter a rotina do "polícia mau e do polícia bom?" Fosse como fosse, estava de volta à Tanzânia.
Fiquei tão espantado com a bofetada, tão fraco e fisicamente abalado que nem sequer reagi quando essa
nova pessoa me agarrou pelo braço e me ajudou a levantar, pedindo desculpa enquanto me guiava por um
corredor, para um quarto. Aí chegados, o homem retirou-me a venda. Debati-me para me habituar à luz do
dia, que não vira durante 53 dias, ou seja, quase oito semanas. Também fiquei espantado ao ver uma
cama a sério, com lençóis e cobertores, instalada num quarto decente, com as comodidades essenciais.
O homem que me escoltava foi agradável para comigo. Disse-lhe que nem sequer me poderia deitar em cima
da cama num tal estado de sujidade pessoal e retorquiu que podia tomar um duche ou um banho, até ficar
completamente limpo. Agora já tinha a certeza de que algo correra mal com aquele exercício tanzaniano/moçambicano...
e isso só podia significar que as notícias sobre a nossa provação tinham chegado lá fora e que pessoas
com uma influência real estavam a abanar o barco e a ameaçar afundá-lo. Cheirava-me a uma liberdade próxima,
tal como me costumava cheirar à aproximação das primeiras chuvas dadoras de vida nas savanas de Manica
Sofala. Tinha uma casa de banho com sabão, água quente, uma retrete com autoclismo e fartura de papel
higiénico. Quem nunca tiver sido privado dessas comodidades básicas, que consideramos como garantidas
em cada dia das nossas vidas, jamais conseguirá compreender o que significa poder tomar um duche, tomar
um banho, ficar limpo, ter acesso a uma retrete a qualquer momento e dispor novamente de algum tipo de
controlo sobre a nossa dignidade pessoal. Tinha todo o meu corpo coberto pela tinta azul do uniforme
da prisão de Machava, e precisei de três mudanças de água para retirar a maior parte do corante. A água
ficou escura de sujidade até ao momento em que a água quente acabou. Fiquei chocado com as marcas que
me cobriam os braços, com as terríveis cicatrizes nos pulsos, com o rosto descarnado e barbudo, e com
o olhos encovados que exibiam uma expressão de loucura. Sentia-me desencarnado, como se não pertencesse
àquele rosto. Envelhecera 20 anos, mas ainda tinha pés e mãos, que funcionavam. Não consegui ver qualquer
sinal de infecção nos braços e nas pernas enquanto me livrara dos quase dois meses de barba emaranhada
que me cobria o rosto. Naquela noite comi um pouco de carne pela primeira vez ao longo de todas aquelas
semanas, mas o resto era a habitual sadza. Dormi. Dormi um sono sem sonhos, o primeiro sono a sério que
me tinham permitido em 52 dias. Estava demasiado esgotado emocionalmente para poder meditar naquela viragem
nos acontecimentos. Bastava-me continuar vivo e ter novas esperanças de que a provação iria terminar
em breve. Desliguei-me mentalmente, tal como tentara fazer durante as traumáticas semanas de dor, de
barulhos constantes, de interrupções sem fim, de prolongados interrogatórios, de abusos, ameaças, fome
e raiva. Fui visto por um médico tanzaniano que afirmou que me encontrava mal e precisava de descansar
para recuperar a saúde. O médico foi ainda mais longe: tinha de recuperar para que, quando saísse dali,
já não existissem sinais visíveis dos maus tratos a que fora submetido! Que queria ele dizer? Libertação,
transferência para outra cadeia, num qualquer outro país com o mesmo tipo de mentalidade? Ouvi a voz
do Rui. Encontrava-se na mesma casa mas eu não sabia onde estaria o meu filho e o Caju. Tivera consciência,
durante o prolongado voo de regresso à Tanzânia, de que se encontravam várias outras pessoas a bordo.
Eram agentes da SNASP que me acompanhavam de volta à Tanzânia para prosseguirem os interrogatórios no
solo desse país. Descobri esse facto depois de alguns dias de descanso quando, subitamente, voltei a
ser vendado e confrontado por mais interrogadores que falavam português. Já ouvira aquelas "vozes" anteriormente.
Eram de Moçambique e reconheci uma delas em particular. Estivera sempre presente, desde o princípio,
naquele pequeno circo sórdido. Mais dias das mesmas tácticas da SNASP. Continuei a negar todas as
acusações e não me deixei sucumbir a nenhum tipo de pânico sempre que me diziam alguma coisa a respeito
dos outros. No fim de contas, os outros não tinham "morrido" em Moçambique? Sabia que estavam vivos e
que se encontravam de volta à Tanzânia. Embora me encontrasse vendado, também estava indiscutivelmente
mais forte. Permitiam-me que dormisse numa cama e já não sofria grandes dores. Os tanzanianos entraram
no meu quarto com um maço de papéis relativamente espesso e exigiram-me que os assinasse. Comecei a ler
os documentos, que estavam escritos em português. Tratava-se de uma clássica "confissão" comunista. Um
dos tanzanianos arrancou-mos das mãos e gritou: - Não os podes ler! Assina! - Recusei-me e disse-lhe
que não ia assinar uma coisa que não lera. O homem foi-se embora. Regressou, tornaram a colocar-me a
venda e apareceram os moçambicanos. - Assina - latiu a tal "voz" muito particular. - Assina ou nunca
sairás daqui com vida! Era essa a chave: "Nunca sairás daqui com vida." Já não estava em jogo a possibilidade
de nos matarem. Os moçambicanos tinham perdido a iniciativa naquele jogo perigoso. Não se atreviam a
matar nenhum de nós. Já não se encontravam no seu pequeno paraíso marxista onde toda a semelhança a direitos
humanos havia sido deitada pela borda fora. Tudo apontava para um facto: tinham sido pressionados para
nos devolverem à Tanzânia e os tanzanianos, agora, estavam ansiosos por se verem livres dos seus camaradas
do Sul. Obriguem o velho a assinar e mandem--no para casa! Era tudo! A Tanzânia encontrava-se sob pressão.
Pensei um pouco no assunto. Talvez lhes fosse possível manterem-nos naquele estado de limbo emocional
durante anos. Talvez que, se eu assinasse, nos colocassem a todos na frente de um pelotão de execução.
Se me recusasse a assinar... também podíamos adoecer misteriosamente e morrer. Nunca havia certezas da
parte de filhos da puta como aqueles. Não tínhamos acesso aos jornais ou às rádios. Não podíamos comunicar
uns com os outros. Não fazia a menor ideia do que estava a ser feito a nível intergovernamental - se
por acaso estava a ser feita alguma coisa -, para a nossa libertação. Se assinasse estaríamos condenados
e as "provas" da nossa alegada perfídia seriam exibidas só Deus sabia onde. Se não assinasse, também
era provável que ficássemos arrumados. Assinei. Aquela "voz" singular apareceu, levou os documentos
e ameaçou-me: - Vais acabar por ficar sem cabeça aqui mesmo... e se alguma vez saíres deste país vou
à tua procura e mato-te! Já enfrentara a minha conta de falsas cargas de elefantes, rinocerontes e
leões. Aquilo era uma falsa carga verbal. Era claro que os moçambicanos estavam ansiosos por irem para
casa. Os tanzanianos estavam ansiosos por os verem partir... e eu também. Agora chegara a vez dos
tanzanianos. Já me encontrava em cativeiro havia 55 dias e o calvário iria prolongar-se por mais três
meses e meio. A porta abriu-se e um tanzaniano ordenou que me despisse e ficasse com a roupa interior.
Como sempre, continuava descalço. De qualquer modo não havia sapatos que me servissem nos pés, que ainda
continuavam deformados e muito sensíveis. E interessante notar que nunca fui vendado pêlos tanzanianos
durante aqueles meses de interrogatórios. A seguir o guarda levou-me para a sala de interrogatórios onde
se encontravam dois tanzanianos, prontos para me fazerem falar a respeito da suposta conjura internacional,
de que eu era o ponta-de-lança, e que se destinava a destruir Moçambique. E quem foi que eu vi imediatamente,
sentado naquela mesa? O homem dos olhos em bico que supervisionara a provação com os tubos de borracha.
Iria ordenar que me fizessem outra vez o mesmo, ali mesmo? Se assim fosse, seria provavelmente o fim.
Por estranho que possa parecer, nunca senti medo porque este era sempre ultrapassado por um ódio profundo,
que me fornecia o combustível mental necessário para sobreviver. - Senta-te! - ordenou um dos homens.
Olhei em volta. Não havia cadeira. Os tanzanianos voltavam à velha táctica da humilhação. — Senta-te!
- berrou o homem dos olhos em bico. Sentei-me no chão de cimento e o interrogatório começou, desde
os mais minúsculos pormenores, a respeito da minha juventude, até ao presente, bem como sobre o que andava
eu a fazer com D'Estaing e toda uma variedade de serviços de informações a fim de destruir Moçambique
a partir do solo tanzaniano. O homem dos olhos em bico não me dirigiu mais uma única palavra naquele
momento ou em qualquer outra altura. Quem fazia todas as perguntas era um homem alto, com óculos, que
era frequentemente rude e ofensivo. Nunca tirei os olhos deles, nunca levantei a voz e nunca fugi à verdade.
A rotina das cuecas assentes no cimento prosseguiu durante alguns dias e a seguir terminou de um modo
tão abrupto que só pude concluir que tinham recebido instruções para mudarem de táctica e serem um pouco
mais simpáticos com aquele português fascista e subversivo disposto a destruir o "socialismo científico"
da revolução africana. Ofereceram-me uma cadeira e permitiram que me vestisse. Continuava a estar descalço,
mas conseguia dormir e não era arrastado para o exterior no meio da noite nem obrigado a ouvir gravações
dos meus familiares a serem torturados. De vez em quando até me davam um cigarro ou dois a cada dez dias,
ou perto disso. Guardava as pontas com todo o cuidado, de onde retirava os restos de tabaco para meter
no cachimbo, que me tinha sido devolvido. - Como vai o teu amigo Bob Denard? O melhor é falares porque
os outros já nos contaram tudo!
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Nunca me tinha encontrado com o francês líder de mercenários e nunca o conheci, até hoje. Para além
disso, nunca me deslocara às Comores, onde Denard mantinha um controlo efectivo sobre a Guarda Presidencial,
trabalhava em íntima ligação com os sul-africanos e era na verdade o dirigente do arquipélago. Nem os
meus parentes nem eu havíamos tido qualquer tipo de relacionamento, mesmo que remoto, com Denard. As
ameaças a respeito do que os outros já tinham contado não passavam de tretas. Não havia um mínimo de
verdade naquele último conto de fadas tanzaniano. Os interrogadores abandonaram aquela linha de interrogatório
tão rapidamente como haviam começado e nunca mais a retomaram. - Já agora, também nos pode falar a
respeito de Oscar Kambona! Fala! Kambona era um bem conhecido opositor de Julius Nyerere e das suas
políticas de "socialismo científico", fosse isso o que fosse. Para além do que lera nos meios de comunicação
de tempos a tempos, não tinha a mínima ideia a respeito da vida, actividades ou paradeiro de Kambona,
e não me ralava com isso. Contudo, os tanzanianos continuaram a martelar no assunto até ao momento em
que o principal interrogador perdeu a paciência e afirmou que toda a gente sabia que o Presidente D'Estaing
concedera audiências formais a Kambona, em Paris, por duas vezes. Para um Estado governado por um único
partido, essas actividades dos opositores eram vistas como uma ameaça para o país. D'Estaing conhecia-me
havia anos e estivera recentemente a caçar comigo na Tanzânia. Eu era um subversivo. Portanto, estava
tudo ligado. Iria ouvir este tipo de argumentação uma e outra vez. Naturalmente, tratava-se apenas
de mais uma fantasia e neguei todas aquelas alegações insensatas. Contudo consegui chamar-lhes a atenção
quando me interrogaram a respeito da Hunters África e das provas irrefutáveis que descobrira a respeito
das actividades fraudulentas de Theo Potgieter. Este andava muito atarefado a manipular as autoridades
tanzanianas de modo a poder defraudar a Hunters África de toda a sua operação na Tanzânia. Como mais
tarde acabei por descobrir, Potgieter foi um dos fac-tores-chave por trás da minha presente provação,
porque sabia que eu estava muito próximo de o denunciar, facto que teria envolvido os seus associados
altamente colocados. Potgieter foi preso quando ainda me encontrava em cativeiro na Tanzânia, mas conseguiu
fugir do país servindo-se de um passaporte diferente, coisa que em tais circunstâncias não se consegue
fazer sem ajuda. Da última vez que ouvi falar dele, de uma fonte queniana de confiança, Potgieter encontrava-se
gravemente doente na costa do Quénia, onde estivera a viver com uma mulher local... o que me fez recordar
do Salmo 55. Os dias transformaram-se em semanas e as semanas em meses. Nunca me permitiram apanhar
um pouco de sol e a janela gradeada do meu quarto tinha cortinas que bloqueavam a vista. Disseram-me
para nunca abrir as cortinas, mas houve uma vez em que o fiz. O meu gesto de desafio foi imediatamente
notado por um dos guardas, que ameaçou mandar vendar-me se me atrevesse a tocar novamente nas cortinas.
Não o fiz. Depois, aconteceu uma mudança. Havia um médico tanza-niano que me visitava com regularidade
e que garantiu ter visto os outros do meu grupo. Afirmou que estavam todos vivos e bem. Soube que o homem
não me estava a mentir quando disse que Caju se queixara de dores de dentes, uma vez que já tinha esse
problema antes de termos sido raptados. Tive mais provas da veracidade das afirmações quando me informou
que o meu filho sofria de uma alergia e que dera a Tim-Tim alguma medicação para a combater. Contudo,
não muito depois, também vim a saber que todos haviam sido submetidos a repetidos abusos físicos e a
atrozes torturas mentais. Por exemplo, tinham sido obrigados a fazer elevações até caírem de exaustão,
para depois lhes baterem nos tendões de Aquiles. As costas e as nádegas do meu filho ainda se encontravam
muito doridas por ter sido chicoteado pela SNASP. Rui tivera uma AK-47 engatilhada encostada à nuca,
e fora ameaçado de morte iminente se não falasse. Não conseguira começar a inventar uma história para
satisfazer os seus captores e acabar com a tortura. Todavia, os tanzanianos acabaram por desistir dele
quando compreenderam que não tinha nenhuma "ligação" com o assunto. Para além disso, também lhe disseram
repetidamente que Tim-Tim e Caju já estavam mortos. Não conhecia o paradeiro do meu filho nem do meu
sobrinho, e também nunca o perguntei porque não mo diriam. Presumi que regressara a Arusha. Já era suficientemente
difícil lidar com os acontecimentos de cada dia sem ter de passar por momentos angustiantes em busca
de informações que ninguém me forneceria. O médico também me informou que havia muito que os tanzanianos
desejavam libertar-me, mas que o Presidente Samora Machel e o seu lacaio da segurança, Sérgio Vieira,
tinham pedido que nos mantivessem presos ad infinitum. Tratava-se de uma vingança, porque os moçambicanos
sabiam muito bem que haviam ficado de mãos vazias não obstante os maus tratos a que nos tinham submetido.
O papel que eu assinara sob coacção não possuía qualquer significado, fora planeado pela SNASP e não
continha a mais pequena prova contra nós. Não havíamos estado nem sequer remotamente envolvidos em nada
que se relacionasse com o nosso agora infortunado país, e eles sabiam-no. Os tanza-nianos precisavam
de demonstrar solidariedade para com o seu vizinho do Sul mantendo-nos encarcerados. Fiquei imensamente
grato ao médico por todas estas informações. Agora, era uma questão de esperar. O tédio, o limbo mental
e emocional podem constituir uma poderosa forma de tortura mental, mas eu sabia-o e fiz o possível por
me manter desligado. O meu grupo e eu constituíamos um embaraço cada vez maior para o Governo tanzaniano.
Ironicamente, iríamos acabar por vencer aquele período de espera. Não tínhamos acesso a qualquer representação
legal, não tínhamos sido acusados formalmente fosse do que fosse, não houvera um julgamento e todos tínhamos
sido sujeitos a torturas e a um comportamento degradante por parte tanto dos tanzanianos como dos moçambicanos.
Para além disso, havíamos sido sujeitos a um confinamento solitário que já durava há mais de quatro meses.
Havia um outro factor a alimentar as minhas esperanças: os meus contactos internacionais com a comunidade
da caça eram tão forte que não poderia pura e simplesmente desaparecer num qualquer gulag do mato para
morrer. Trata-se de uma comunidade com ligações imensamente influentes em muitos países. O senso comum
dizia-me que já deveriam ser muitas as pessoas proeminentes a saberem do nosso rapto. A natureza do meu
negócio significava que essas mesmas pessoas proeminentes iriam bater às portas de chefes de governos
em vários países e que não desistiriam até sermos encontrados. Sobrevivera ao pesadelo até àquele momento...
e podia sobreviver mais algumas semanas ou mesmo meses. O suicídio nunca me passou pela cabeça e a fuga
estava fora de questão. A minha vingança seria continuar vivo! O ódio, levado ao rubro, forçava-me a
continuar. Um dia, eventualmente, contaria toda a nossa provação e exporia os nossos atormentadores.
A minha integridade continuava intacta. Unidos, de Midland (local da sede da Hunters África) e de
Santo António, onde falei com os teus amigos Bert e Brigitte Klinebur-ger. Trouxe-te cigarros e medicamentos.
Descontraí-me porque se tornou imediatamente evidente que o Gama, autor do livro De Nova Iorque a Mirandela,
que mais tarde nele relata este incidente, era genuíno. Contou-me que o Governo tanzaniano o recebera
bem, que agora já sabia mais a respeito de toda a situação e que eu tinha de manter as esperanças porque
as coisas estavam a progredir bem. Falámos em inglês, porque era claro que o Gama queria que os seus
anfitriões compreendessem toda a conversa. Contudo, fiquei convencido de que um ou dois dos outros eram
do Sul. Estivera vendado durante todo o tempo que passara em Moçambique e não os podia identificar. Ninguém
interrompeu o Gama. A seguir falou-me do Potgieter, que tinha sido preso na Tan-zânia por ter roubado
uma enorme quantidade de dinheiro à Hunters África e que era agora considerado como o suspeito número
um no que dizia respeito à nossa situação, porque tentara servir-se de nós como peões para os seus propósitos
nefastos. Experimentei uma certa medida de satisfação ao ouvir aquilo da boca de um parlamentar português
de alto nível, na presença do grupo de tanzanianos e também, sem a mínima dúvida, de alguns agentes da
SNASP de Moçambique. Sempre suspeitara que fora Potgieter quem começara a espalhar boatos - potencialmente
perigosos para as nossas vidas -, junto dos tanzanianos, num esforço para nos ver removidos da cena.
Aquilo nada tivera a ver com a actividade cinegética grossa e tudo apontava para a traição humana e com
ganância a uma escala colossal. O Potgieter era puro veneno. Gama também disse que já vira o meu filho
e os outros. Conforme soube mais tarde, tinham sido levados à presença do deputado português tal como
se encontravam, num estado deplorável. Aparentemente, o facto provocara má impressão ao emissário do
Governo português, como é natural. Gama foi-se embora cerca de uma hora depois, afirmando que tinha
a esperança de que todos estaríamos em casa pelo Natal. Depois da visita, Gama partiu para Dar es
Saiam onde passou duas semanas a debater-se com as autoridades tanzanianas para que nos libertassem.
Fui conduzido de volta ao complexo, vesti os calções e a camisa da prisão de Machava... e fiquei à espera.
Esperar era actividade em que todos nós éramos já muito bons. Por fim, recebi uma carta do Gama, metida
no correio em Dar es Saiam antes do Natal, a explicar que fazia o seu melhor para que fôssemos libertados
em breve. A carta foi-me entregue fechada e os interrogatórios há muito que haviam terminado. O Dia de
Natal chegou e foi-se, completamente ignorado. Um dia ou dois depois daquela primeira saída, o interroga-dor
principal, o que usava óculos, entrou no meu quarto, sentou-se a meu lado na cama e pediu-me para não
dizer mal da Tanzânia em resultado do nosso cativeiro, "porque não somos um país cruel". Ouvi-o, virei-me
para ele, mostrei-lhe as cicatrizes nos pulsos e perguntei-lhe: - Então e isto, o que é? Desviou
os olhos, levantou-se, balbuciou uma despedida e foi-se embora. Claro que eu iria falar se alguma vez
conseguisse sair dali. Que outra maneira haverá para começarmos a contrariar os actos criminosos ou para
mantermos o nosso auto-respei-to? Ninguém iria conseguir silenciar-me. Permanecer em silêncio seria uma
cobardia, admitir a derrota e aceitar as culpas em relação àquelas hediondas acusações. Em 29 de Dezembro
disseram-me novamente para me limpar e vestir porque ia sair. O procedimento foi igual ao que acontecera
quando do Gama: um cobertor por cima da cabeça, uma curta deslocação de carro, um edifício, fora com
o cobertor... e entrei na mesma sala onde, daquela vez fui apresentado a Luís Barreiros, um diplomata
português ligado à Embaixada portuguesa em Maputo, Moçambique, embaixada essa que também representava
os interesses portugueses na Tanzânia. Era o primeiro funcionário português de embaixada que eu vira
desde que fora raptado. Barreiros foi muito agressivo com os tanzanianos na minha presença, censurando-os
pelo que era claramente uma acção ilegal e pelo nosso contínuo cativeiro. Afirmou que todo aquele assunto
era uma palhaçada, afirmou que a Embaixada não havia sido informada da nossa presença em Moçambique e
que quando de o fazer, ocultei os dois cigarros, alguns fósforos e a lixa da caixa na bainha das minhas
calças cinzentas "boas". O cobertor voltou a tapar-me a cabeça e partimos num Land Rover, mas a viagem
foi muito mais demorada. A seguir chegou-me o odor a combustível de aviação e zumbido de motores de avião.
Deus do céu! Seria o último dia da minha vida? Estava decidido a acabar com tudo e a levar os estupores
comigo numa queda flamejante sobre o oceano Indico em vez de regressar a Moçambique e à SNASP. Fui
escoltado para um avião e retiraram-me o cobertor. Ali, na minha frente, estava o meu filho, o meu sobrinho
e o Rui, todos com um aspecto magro, doentio e traumatizado. Era a primeira vez que nos víamos uns aos
outros nos quase cinco meses passados desde o dia do rapto. A expressão nos olhos deles quando me viram
disse-me que também eu não tinha um bom aspecto. Mal falámos quando o avião rolou para a pista. Um bom
sinal era o facto de se tratar de um voo normal e não de um dos jactos particulares de Nyerere. No entanto,
aguardava-me um novo choque. Aquele era o aeroporto de Quilimanjaro. Descobri que eu e o Rui havíamos
sido mantidos em cativeiro durante todos aqueles meses em Moshi, uma cidade a leste de Arusha, nas vertentes
do monte Quilimanjaro. Tim-Tim e Caju tinham ficado detidos em Arusha. E para onde iríamos agora? Voámos
para sudeste durante algum tempo. Estava à espera que o aparelho atingisse o oceano e virasse para sul
antes de tentar incendiá-lo, mas a descida iniciou-se pouco depois e acabámos por aterrar no aeroporto
de Dar es Saiam onde fomos recebidos por tanzanianos com óculos escuros. Escoltaram-nos para o que presumimos
ser uma casa vulgar, mas com segurança reforçada. Tratava-se, provavelmente, de um qualquer tipo de casa
militar segura. Não nos taparam a cabeça com cobertores nem nos algemaram. Uma vez no interior ofereceram-nos
cerveja, cigarros e fomos cordialmente tratados por alguns tanzanianos, provavelmente dos serviços de
informações militares. Disseram--nos que nos explicariam o que se passava e que devíamos ser pacientes.
Havia um rádio a tocar algures. Não falámos muito porque a exaustão emocional já se instalara em todos
nós. Depois do noticiário das cinco da tarde, em Swahili, durante o qual ouvimos os nossos nomes,
o aparelho de rádio que os oficiais haviam ligado emitiu um boletim em língua inglesa. Eram sete da tarde.
O locutor anunciou que tínhamos sido presos por "actividades subversivas contra países africanos", mas
que iríamos "ser libertos na Tanzânia por razões humanitárias", devido à intervenção do presidente de
Portugal, o general Ramalho Eanes. Reparei no plural de "países" e não fiquei surpreendido com a ausência
de qualquer declaração a respeito de estarmos inocentes de todas as malévolas acusações lançadas contra
nós e que quase nos tinham custado a vida. Como iria descobrir, fora uma pesada pressão a alto nível
internacional que forçara os tanzania-nos, bem como os moçambicanos seus parceiros no crime, a libertarem-nos.
Se essa pressão não tivesse sido exercida seríamos apenas mais um grupo anónimo preso com base em meros
boatos, acabaríamos provavelmente por desaparecer sem deixar vestígios e seríamos mortos. África é um
continente sem sensibilidade e perigoso onde, em todas as ocasiões, há sempre pelo menos 12 países envolvidos
em graves conflitos armados e onde os direitos humanos são frequentemente enterrados por uma brutalidade
sem limites. Terminado o noticiário, disseram-nos que iríamos passar a noite naquela casa e que sairíamos
da Tanzânia no dia seguinte. Nenhum de nós se sentiu em condições de se abrir e de falar livremente da
provação a que tínhamos sido sujeitos. Era suficiente estarmos vivos e novamente juntos. Encontrávamo-nos
rodeados por guardas suficientemente decentes, que nos ofereceram cigarros, café e uma comida bastante
boa. Contudo, agonizávamos silenciosamente a respeito do nosso destino final no dia seguinte. No princípio
da manhã seguinte, com os cigarros e os fósforos ainda metidos na bainha das calças cinzentas, vestimo-nos,
tomámos o pequeno-almoço e fomos levados para o aeroporto de Dar es Saiam. Nenhum de nós ia vendado.
Uma vez no aeroporto, fomos recebidos por um grupo de tanzanianos com trajes civis. Perguntei onde se
encontrava o principal interrogador, o homem de óculos que me pedira para não falar das torturas que
havíamos sofrido ao mundo exterior. Disseram-me que tinha acontecido uma tragédia: a sua filinha,
ainda bebé, afogara-se numa piscina por altura do Natal. Exprimi a minha pena ante a notícia e pedi que
lha transmitissem porque, apesar de tudo, sempre fora mais humano do que os seus compatriotas, isto para
não falar nos bandidos da SNASP de Moçambique. Momentos depois surgiu-nos um homem distinto que se
apresentou em português. Era o Dr. Fernando Reino, o embaixador português junto das Nações Unidas em
Genebra. Era especialmente escolhido pelo presidente Ramalho Eanes para se deslocar à Tanzânia e trazer-me
de volta a Lisboa via Suíça. Todos nós nos começámos a descontrair pela primeira vez em cinco meses.
Agora já era claro que não nos iam devolver à SNASP. Completámos as formalidades com os passaportes e
fomos escoltados para um voo da Swissair, onde se tornou óbvio que o pessoal da cabina fora informado
sobre quem éramos. Foi um verdadeiro choque sermos tratados com tanta deferência depois de todos os horrores,
e poder comer o primeiro pequeno-almoço ao estilo inglês em muitos meses. Sentei-me ao lado do embaixador
Reino, a primeira companhia civilizada em muito tempo. O aparelho descolou, ganhou altitude rapidamente,
abandonámos o espaço aéreo da Tanzânia e dirigimo-nos para a Suíça. As consequências de todo este
episódio sobre as nossas vidas iriam ser muito importantes.
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Edição em Português de Abril de 2002
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