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Devo Avisar...
Devo avisar que este Livro de Andanças não é um livro de viagens no sentido
corrente da expressão. É aquilo a que poderíamos chamar uma partitura de sentimentos colhidos e recordados
na imensa pauta da geografia percorrida. Muitos trechos deste livro foram escritos assim como quem pega
num violão e diz: deixa cá ver se ainda consigo tirar aquela balada...
O livro não tem datas nem
trajectos marcados à unha nos mapas de toda a gente. Também não arrasta para a rua o recheio dos museus,
a história das catedrais ou tenta encaixilhar deslumbramentos que nem Deus conseguiu meter nos limites
de uma paisagem. E não é, de maneira alguma, um livro de memórias escritas de uma assentada, assim como
quem precisou de erguer, em tempo marcado, uma obra de empreitada. Foi escrito ao longo dos últimos trinta
anos, com páginas de há poucos meses e páginas de há muito tempo. Escritas umas na pausa do regresso,
outras em plena viagem, à mesa dos cafés, na insónia dos hotéis ou ditadas a minha mulher, ao volante
do automóvel. Ao escrever este Livro de Andanças, nunca deixei que o descritivo dominasse o sentimental.
Viagem é sentimento.
Quem não sentiu, não viajou. No regresso ao sofá de todo o ano, não devemos
encontrar o tédio que não disse adeus de sorriso frouxo. Houve cidades, como Londres, onde a imensidão
me diluiu. Outras, onde o tempo foi tão pouco que só deu para me espantar. Olá, Paris ! Hei-de voltar
sem calendário. Juro! Outras, ainda, como o nosso Funchal e o Mónaco de Rainier, de uma beleza tão imediata
que me deixaram apenas guloso como um garoto deslumbrado diante de uma sugestiva tampa de caixa de bombons.
Vão encontrar recordações curtas e alongadas. O espírito e o coração de braço dado nunca souberam
acertar o passo. Ora se adianta um, ora se adianta outro! É assim, quando teimamos em trazê-los juntos
para o papel.
Onde mais me alonguei foi na viagem a Israel. Não se julgue que assim aconteceu
por força de oculta vibração religiosa ou evidente curiosidade histórica. O que experimentei foi uma
sensação inteiramente nova. Senti Israel como um palco imenso onde os judeus chegaram, finalmente, para
representar, até à Eternidade, a sua própria vida, ensaiada séculos e séculos, com a morte de muitos
e o sofrimento de todos. Senti ainda que o turista de qualquer parte, ao subir àquele palco, não consegue
evitar um monólogo de silêncio. Camilo
de Araújo Correia
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