Em Porto Amélia raramente se dizia a ilha do IBO;
dizia-se, muito simplesmente, o IBO. Foi ao IBO, veio do IBO, vive no IBO...
Naquele falar e falajar do entardecer nas deliciosas
varandas coloniais, fui ouvindo história daquela ilha da costa de Moçambique,
entre o Lúrio e o Rovuma. O mistério ia, pouco a pouco, aguçando a minha
curiosidade. O próprio café do Ibo, que o senhor Ferreira nos servia no «Botão
de Rosa», ajudava ao mistério. Era um café delgadinho, acastanhado, de cheiro
e sabor muito estranhos. Mas acabamos por gostar dele e precisar dele. Era
revigorante e tirava a ideia de deitar em horas de andar a pé. E quem quisesse
ler ou escrever pela noite fora, era só tomar um cafèzinho do Ibo, depois de
jantar. Insónia assegurada.
Quando a curiosidade começou a inquietar-me, não
tive outro remédio se não reparti-la com o meu inesquecível companheiro Simões
Coelho. O Dr. Manuel Simões Coelho, grande cirurgião e grande pianista, veio a
falecer em Portugal, meses depois de ser desmobilizado.
Não foi difícil entusiasmá-lo. Ele também já andava
mortinho por conhecer o Ibo. Difícil foi arranjar transporte que nos levasse
pela costa acima, até ao ponto da travessia. O jeep do Hospital Militar 338, a
que pertencíamos, estava mesmo a calhar, mas a viagem era paisana demais para o
podermos usar sem dar nas vistas...
Acabámos por aceitar a oferta de um indiano - um
velho Opel sempre a torrar ao sol implacável da Av. Jerónimo Romero. Só depois
de aceitarmos, com muitas mesuras de parte a parte, é que soubemos do estado
lastimoso do carro. A cor era o menos, mas sempre lhes direi que ia do vermelho
alaranjado, nas pregas mais protegidas, ao diospiro podre nas superfícies mais
expostas.
Depois
de uma revisão que, afinal, só serviu para nos afirmar que era uma temeridade
partir, assim, com duas senhoras e duas crianças, lá fomos aos primeiros raios
daquele sol que se erguia do lado do mar e se punha do lado da terra.
Logo
aos primeiros quilómetros, o Opel triplicou os barulhos da partida e começou a
cambar para o lado esquerdo. Por sua vez, as senhoras iam fechando a cara,
daquela maneira que só as esposas contrariadas sabem fazer... O que nos valia,
a mim e ao Simões Coelho, era a grande satisfação dos nossos filhos, o João e o
Jorge. Riam e batiam palmas de cada vez que um macaco-cão atravessava a
estrada, solene e atrevido.
—
Ó papá, tu não apitas nas curvas?! — estranhou a certa altura o Jorge.
—
Ó filho, tornáramos nós encontrar alguém, mesmo contra a mão! — respondeu,
galhofeiro, o Simões Coelho.
Naquela
fita de terra vermelha, marcada pelas tempestades e pelos aventureiros, naquela
solidão que parecia vir do princípio do mundo, buzinar seria uma ingenuidade e
um sacrilégio.
A
certa altura o “diospiro” cambou perigosamente para o lado de que vinha a
queixar-se desde Porto Amélia — o esquerdo.
—
O feixe de molas está a dar o berro! — informou o Simões Coelho, de rabo para o
ar, meio metido debaixo do carro.
—
E agora? - perguntei com a nítida sensação de ser ridículo naquele ermo.
—
Vamos andando devagarinho... Mahate deve estar perto! - sossegou o Simões
Coelho a bater as mãos, vermelhas de terra.
Depois
de meia dúzia de curvas, dadas de credo na boca, Mahate apareceu como um bocejo
da floresta.
Mahate era
uma terra pequena e poeirenta surgida, ao que me pareceu com a exploração,
naquela área, da companhia algodoeira Sagal. Para nós foi a Divina Providência
que ali instalou umas oficinas capazes de reparar o nosso carrinho cambado e
gemebundo. Não seria preciso, mas sempre fomos dizendo que éramos amigos do
senhor Engº Guedes de Paiva, ao tempo, administrador da Sagal em Porto Ameia...
Além do préstimo, os mecânicos foram de uma amabilidade inesquecível. Só
tivemos de esperar um tempinho bem bom. Fomos passá-lo a uma daquelas lojas que
só se encontram na África em pleno mato. Ali se vende de tudo, mas tudo cheira
a tabaco e peixe seco.
Resolvemos
esperar na varanda, quase ao nível da rua, a uma mesa de tampo coberto de
moscas. Daquelas moscas que voltam sempre mal acaba o gesto de as afastar. Ao
fundo da varanda bebia cerveja um negro gordalhufo, esgoleirado, mas bem
vestido. Limpava, a espaços, um suor azulado e parecia, de olhar fixo, contar
as garrafas que já bebera e tencionava beber.
É o doutor do Ibo!... — informou o pretito que nos
trazia os pedidos, adivinhando em nós a estranheza de ver ali tal figura.
Ainda pensámos em abordá-lo para lhe dizermos quem
éramos e onde íamos, mas o nosso colega parecia estar ao fundo de uma varanda
sobre o infinito...
Do outro lado da rua havia um inacreditável campo de
futebol. Apenas umas canas espetadas no chão poeirento limitavam o necessário
rectângulo em cujas extremidades havia uns paus tortos a servir de balizas. O piso
era de terra moída e remoída por mil pés a ir e a vir na mira do golo. Mas o
campo tinha uma vaidade que ainda hoje me dói... Por cima da entrada uma tábua
ressequida dizia assim numa caligrafia acabada de aprender: LEÕES DE MAHATE.
Quando pensávamos em ir ver se o carro já estava
pronto, o “diospiro” apareceu, trazido por um funcionário da Sagal. Vinha todo
teso e reluzente de limpeza, íamos batendo as palmas de contentamento. As
nossas mulheres sorriram, finalmente. Pareciam já duas noivas em viagem de
núpcias...
Dali até ao ponto de embarque para a ilha do
Ibo correu tudo bem, mas tudo feito com muito cuidado por causa do piso. Quando
menos se esperava surgia um pontão de troncos, ali posto para dar passagem no leito
seco de um riacho efémero. Se bem me lembro, só atravessámos um curso de água
permanente — o rio Montepuez.
Era em Tandanhande que se embarcava para o Ibo. Não
havia povoado, nem havia cais. Apenas uma enseada minúscula acolhia o barco a
motor do vai-e-vem.
Ao embarcarmos, as senhoras
voltaram a fechar a cara e os rapazinhos a ficar mais contentes. Aquele barco
pareceu-lhes, certamente, acabado de saltar de um quadradinho de banda
desenhada...
A mim pareceu-me pequeno para aguentar qualquer
espécie de mar. Eu não sabia que no paraíso os barcos não têm tamanho... E foi
uma viagem paradisíaca aquela que fizemos, ora quebrando espelhos de mar
imaculado, ora atravessando florestas de mangai, de onde se erguiam bandos de
pássaros, brancos e silenciosos como a neve.
Talvez influenciado pelas histórias de Somerset,
esperava encontrar na Ilha do Ibo um pequeno porto com alguma agitação de gente
curiosa e mercadorias pasmadas ao sol. O cais do Ibo não passa de um pequeno
patamar com escadinhas a desaparecer na água quieta. À espera, apenas um rapaz
de tronco nu, muito lesto nas manobras de atracagem.
Foi esse rapaz que nos levou a casa de Wong Jan, um
chinês de hospitalidade lendária por toda a costa de Cabo Delgado e que, em
Porto Amélia nos haviam indicado como único sitio do Ibo onde poderíamos ficar.
Wong Jan recebeu-nos com as vénias de todos os chineses a que, ao que me pareceu, juntou mais algumas de homenagem ao
Simões Coelho, já famoso por aquelas bandas.
Depois
de um banho, tomado a golpes de púcaro pela cabeça abaixo, fomos cervejar para
a varanda, íamos na segunda rodada, quando apareceu o “Madragoa” a esbracejar
e a rir de lés a lés no carão moreno. O “Madragoa” era o Administrador da Ilha
do Ibo. Não consigo lembrar-me do seu verdadeiro nome. Aliás, julgo que nunca o
soube muito bem... Apesar de muito estimado e respeitado, ninguém a ele se
referia de outra maneira.
—
Está cá o «Madragoa”! — anunciava-se, volta e meia, em Porto Amélia.
A simpática alcunha deve ter pegado por excesso de bairrismo do
Administrador. Acho que dizia por tudo e por nada:
— Sou de Lisboa e da Madragoa!
E
por ser de Lisboa recordou pela noite fora com o Simões Coelho casos e recantos
da saudosa terra de ambos.
Quando
as senhoras e as crianças se foram deitar, como autómatos perdidos de sono,
ficámos só os três. Melhor, os quatro. Wong Jan andava por ali, discretamente,
atento à nossa sede e à nossa fome. A certa altura o Administrador insinuou que
«estava mesmo a calhar» um certo pastelão de um certo marisco.
Apesar
do marisco me parecer um tanto coreáceo, o pastelão, no seu conjunto, ficou
delicioso. Mas esta delícia viria a estragar-me a noite... Não fiz a digestão daquele marisco tão aplaudido. De cada vez
que me virava, sentia os pedacinhos inteiros a carambolar no estômago, como
bolas de bilhar. E quando pela manhã, ouvi o Simões Coelho a falar no pátio com
os criados, berrei-lhe, ainda da cama:
Arranja-me um pouco de aguardente!
— ‘stá bem... 'stá bem! — respondeu com certa estranheza na voz. Mas a
aguardente nunca mais vinha. Passado cerca de um quarto de hora, voltei a
berrar:
— Então essa aguardente, Simões
Coelho!?
— Andam a tratar disso!... Tu julgas que estás na Régua?
Passados mais dez minutos, um criado bateu
à porta.
—
Pronto, patrão! Já tá -
disse, contente, no seu riso de piano aberto.
Intrigado por não lhe ver nada nas
mãos, perguntei:
--
Já está o quê?
— O banho, patrão. Tem muita água!
Está
visto que me andou a arranjar água quente em vez de aguardente!... Tomei um
delicioso banho de bidom. O único banho quente em dois anos e meio de África.
O
pequeno almoço tomou-se de fugida. Não queríamos perder o içar da bandeira
naquele domingo passado tão longe.
A
cerimónia foi breve mas de uma solenidade garantida pelo rigor militar dos
sipaios. Nunca a nossa bandeira me pareceu tão nossa, a tremular assim naquele
azul tão forte que parecia pintado.
Começamos
a visita à ilha pelo Hospital. Ficava ali mesmo, naquele terreiro de árvores
frondosas em redor do mastro da bandeira.
Não
voltei a ver hospital tão limpo, tão arrumado e tão deserto. Apenas dois
serventes negros nos fizeram as honras da casa, abrindo portas naquela solidão
e respondendo baixinho às nossas perguntas. O Hospital pareceu-me apetrechado
para o que desse e viesse. Viesse o quê? Apenas dois negros, muito velhos e
muito magros estavam internados, mais por caridade que por doença. Nenhum
respondeu às minhas perguntas. Nem os olhos mexeram, quando as repeti mais
alto. Três mundos: o meu, o deles e o outro.
Ao recordar, agora, aquele deambular pelas ruas do Ibo, recordo paralelamente
o percorrer das ruínas de Pompeia, visitadas muitos anos depois. Em Pompeia
tudo aconteceu há tanto tempo que nada nos comove. Dir-se-ia que, ali, o
Vesúvio e os séculos silenciaram tudo de tal maneira que as nossas almas e os
nossos corações já nada podem sentir.
No
Ibo o pano parece-nos caído sobre a opereta da grandeza e logo erguido para
mostrar o drama da decadência. Entre a descida e a subida do pano, um curto
intervalo para a História poder mudar de roupa.
Não
pudemos visitar toda a Fortaleza por medida de segurança. Estavam lá
prisioneiros muitos negros implicados na guerra, prestes a abrir ao sangue e à
intolerância. O que vimos chegou para saber que a Pátria se defendia tão bem e
tão longe.
Foi confrangedor passar diante de casas senhoriais, de
paredes esventradas, sem telha que as proteja e porta que as guarde. Numa
delas, em plena sala de jantar, de paredes apaineladas, crescia uma árvore com
indescritível descaramento. Nas fachadas de armazéns arruinados, iam-se
apagando os nomes de grandes firmas comerciais e um grande silêncio parecia
amarrar-se àquela fiada de argolas de prender os animais de carga.
As
casas habitadas eram poucas e dispersas. As pessoas vinham às portas ver-nos
passar como fantasmas de um futuro que há-de vir. E ainda não veio.
Ao
virar de uma esquina apareceu o nosso simpático Administrador. Vinha num jeep
cheio de mossas, roncos de motor e grandes estoiras de tudo de escape. Queria
oferecer-se para uma volta mais larga pela sua ilha.
Começou por nos
mostrar, muito orgulhoso, um pequeno bairro social de sua iniciativa. As casas
eram pequenas, de blocos feitos ali mesmo, sem qualquer estilo, a contar com um
clima sem inverno. Foi uma nota de esperança naquela terra em agonia, desde o
fim da escravatura. Sim. O Ibo foi próspero, enquanto entreposto de escravos. Ali se fixaram grandes
famílias da Europa, vivendo na abastança, da compra e venda de negros. Lá estão
as casas senhoriais de estilo europeu a afirmá-lo e os apelidos nobres a
resistir ainda aos humildes nomes indígenas: Ávila... Menezes... Carrilho...
Ornelas... Alba... Coutinho... E o sangue? oh!... o sangue... A garantir a
sanidade dos cruzamentos de sangue latino e negro, temos o milagre das «brancas
do Ibo”. Milagre de brancura, de elegância, de beleza, de jeito de falar e
jeito de ser. Iris Maria é uma branca do Ibo. Foi miss Portugal. Não tem havido
mais porque o Ibo é longe e mau caminho...
Ao som daquele jeep rebentado percorremos boa
parte da ilha com o nosso “Madragoa” a gesticular indicações com o braço livre
do volante. Nada me pareceu cultivado com regra ou entusiasmo. Toda aquela
agricultura de subsistência tinha o mesmo ar espontâneo do capim, mas toda
aquela desolação definitiva não impedia o nosso Administrador de gesticular
grandes projectos de abastança. Quando se punha de pé, de braço estendido a
traçar lonjuras de cultivo, chegava a ouvi-lo como um eco de D. Quixote...
Por ventura a marca mais profunda que me ficou
daquele passeio a esmo pela ilha, foi a visão das sepulturas individuais e
familiares que íamos encontrando perdidas no capim. Mal se desligava o motor
para irmos ver mais perto, caía sobre elas um silêncio quase doloroso. Que
grande senhor negreiro estaria ali comido dos bichos e dos remorsos? Que
formosura virginal teria acabado ali os sonhos de donzela?
Um ventinho de murmúrio respondia do infinito. Um
grande silêncio respondia a toda a gente.
Outra vez o cais... outra vez o barco... outra vez o
mangai no mar quieto... outra vez os pássaros brancos e silenciosos como a
neve...
E a Ilha do Ibo lá ficou, perdida no mar e na
História.