Passei alguns dias na Beira a estudar com outros responsáveis médicos militares a evacuação de feridos, quando a guerra abrisse ao sangue no norte de Moçambique.
Foram dias de muito trabalho e alguma diversão. Do trabalho não vale a pena falar. Nem me lembro já daquele emaranhado de números e mapas em jogo com as nossas preocupações. Mas é agradável recordar os tempos livres rasgados naquele céu de trovoadas e nostalgia.
Na Beira as horas passavam quase iguais, marcadas, muitas delas, no “Café Capri” a beberricar refrescos e a sofrer na queimada do peito saudades de quase tudo. À noite, nos muitos e variados restaurantes, entre petiscos chineses, gregos ou indianos, a conversa fluía alegre como um regato. “Empório”... “Campino”... “Kanimambo”... e tantos outros letreiros luminosos que há muito a fome apagou.
A primeira saída foi para a Gorongosa, aquele paraíso selvagem tanto da curiosidade do homem civilizado. Quem, alguma vez, o percorreu, jamais pôde gostar de um Jardim Zoológico. Faz pena ver condenados a prisão perpétua os seres mais inocentes da criação.
Na
estrada para o Zimbabwe, então Rodésia do Sul, aí a uns trinta quilómetros da
Beira, fica Vila Machado. Corta-se à direita e não tarda a aparecer o rio
Pungué. Quando o atravessei, ainda se sofriam as contingências e a morosidade
de uma jangada de bidons vazios. A passagem era num ponto chamado Buémarie. Não
sei se está bem escrito. Bem marcado na memória está o susto que apanhei ao
atolar-me na margem e logo ouvir dizer que havia por ali muitos crocodilos. Não
vi nenhum, mas é possível que me tenham visto a mim. Aquilo é bicho de
espreitar...
Muito me impressionou o cosmopolitismo que encontrei no aldeamento da Gorongosa. No espaçoso bar do edifício principal via-se gente de toda a parte do mundo a reluzir de abastança e snobismo. Todos os dinheiros cruzavam o balcão em troca de bebidas estranhas e caras. O escudo, apesar de ser o dono da casa, parecia a mais humilde das moedas... A «Bossa Nova» estava em pleno espernear.
Dançavam-na inglesas velhas talhadas em carvalho e chinesinhas de porcelana, frescas e frágeis como as madrugadas.
Para dormir não havia luxo. Nem lixo. Pequenas cubatas, escrupulosamente limpas, ofereciam ao turista apenas a comodidade indispensável.
O acordar na Gorongosa é inesquecível. Saímos do sono ao som profundo de tambores. Um som que vai crescendo ao ritmo do nascer do sol. Não se pode perder tempo. As carrinhas esperam, cada uma com o seu guarda de caça muito sério debaixo de um chapéu de abas largas guarnecido a pele de leopardo. Partimos depois de estabelecidas algumas regras de conduta. Poucas, mas rígidas.
É preciso andar muito para ir surpreendendo os animais no seu habitat.
Aqui, uma família de leões ao sol da manhã mal começada. Ele, de uma imponência indiferente, a piscar ao olhos de felicidade conjugal, ao que me pareceu. Ela, a meter na ordem os filhotes, sem deixar de vigiar, constantemente, tudo em redor. Foram de uma indiferença total à nossa paragem para tirar retratos. Julgo que todos esperávamos, ao menos um rugido, para melhorar, mais tarde, histórias africanas no seio da família...
Mais além, uma impressionante manada de bois-cavalos a pastar na planície do Buzi, a perder de vista. Todos partem à desfilada, quando a leoa aparece a escolher um, e todos param, instantaneamente, mal se confirma o abate. Assim me contaram.
Por ali perto andava uma hiena a rondar. Bicho feio e repelente. De andar vacilante e desnalgado, parece viver na selva sem a convicção dos outros animais. Canhestra a caçar, conhece mal o gosto da carne viva. Vai vivendo de restos apodrecidos, encontrados no rasto dos outros carnívoros.
Impressionante,
de recordar a vida inteira, é a aparição dos elefantes. A manada que tivemos a
felicidade de encontrar era enorme e vivia a pacatez familiar da hora de comer,
se é que para os elefantes não são todas de comer, tirando as de amar e de
dormir... Enquanto os adultos estraçalhavam tudo, escolhendo os ramos mais
tentadores e acessíveis, os «bebés» lutavam por não perder a teta, com as
voltas e reviravoltas das mães. Uma cena de muita graça e muita ternura, como
todas as de animais pequeninos. Tivemos de partir quando um macho enorme se
destacou da manada e se pôs a erguer a tromba e a abanar as orelhas, voltado
para nós. Safa!
Gazelas e outros antílopes dos mais variados portes, estão sempre a passar ou a ser surpreendidos, aqui no pasto, além no repouso. Elegantes e nervosas, passam na luz das clareiras como bailarinas a fugir do palco.
Não
é preciso procurar os hipopótamos. Os guardas sabem onde estão. Mais ou menos
submersos, soltam roncos molhados, felizes por estar na água ou na lama. O
hipopótamo é um animal tosco, espesso e conformado. O Criador não perdeu grande
tempo com ele... Voltei a vê-los no rio Incomáti, de margens verdes pontilhadas
e lírios brancos.