A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



MANUEL GAMA AMARAL




9 -A ORIGEM DO POVO YAO, SEGUNDO A TRADIÇÃO

  A origem dos povos que habitam o continente africano a sul do Sara, ainda que não seja muito remota, devido à carência total de notação coeva adequada, é muito imperfeitamente conhecida. A sua teoria baseia-se em dados bem frágeis, em hipóteses e em deduções sobre dados muito controversos. Conhecimento relativamente seguro, apenas se tem das migrações que tiveram lugar já nos tempos históricos, isto é, após as descobertas dos portugueses. Não vou, por isso, entrar em especulações sobre a origem remota do povo Yao, o que nada adiantaria para o esclarecimento do assunto, podendo, apenas, tornar-se mais um contributo para aumentar a confusão. De resto os estudos pré-históricos requerem alta especialização e investigação muito aturada, e, por isso, aos especialistas deve incumbir pronunciarem-se.
  Os Wayao são um povo Banto que se fixou na região entre Rovuma e Lugenda e são referidos, com frequência, em documentos portugueses a partir do século XVIII , se bem que, genericamente, sejam referidos em escritos, a partir do século XVII, incluídos nos povos que os portugueses conheceram pela designação de Maraves, e que seriam todos os que habitavam ao norte do Zambeze até ao Tanganhica.
  É absolutamente certo que já anteriormente, os Wayao tinham relações comerciais com os árabes de Quíloa, que ali se estabeleceram em fins do século XII (26). Deste modo os Wayao teriam entrado na História pela mão dos árabes, provavelmente, durante o século XIII. Seria interessante, e provavelmente muito proveitosa, a pesquisa em arquivos árabes de factos referentes a essa época pois que nos daria notícia de um povo da África Meridional, com individualidade própria, conhecida, a partir de um escasso século após a fundação da nacionalidade portuguesa. Infelizmente essa consulta não é possível nos originais (se é que existem) e as traduções de documentos árabes, nos países ocidentais, não abundam.
  É tradição muito generalizada entre os povos Banto da África Meridional a filiação da sua origem em migrações antigas oriundas da metade norte do continente; entre os wayao, se tal tradição existe, dela me não apercebi. Persiste sim, a tradição, também comum a muitos povos desta parte do continente, de filiarem a sua origem num acidente geográfico, normalmente uma montanha ou cadeia de montanhas. Os Wayao fixam a sua origem no monte Yao, situado a sul do Rovuma (Luuma) entre Mkuya e Likopolwe, na actual Circunscrição Administrativa de Valadim. Não têm a menor ideia da data provável dessa origem nem das circunstâncias que a determinaram; basta-lhes saber que são oriundos do monte Yao o que os satisfaz e enche de orgulho. Quando se pergunta a um notável muyao em que época teve início o seu povo no monte Yao, responde apenas: "Ciikala ca pasi mnope", isto é, "em tempos pré-históricos", e muda de assunto, não manifestando a mínima curiosidade, com o que, aliás, mostra sentido da realidade pois um povo cuja história assenta apenas na tradição oral, não pode reter factos velhos de muitos séculos.
 Muito embora a sua entrada na História Universal tivesse sido por via dos árabes estabelecidos em Quíloa a partir de fins do século XII, o certo é que as primeiras referências escritas, conhecidas, acerca deste povo, são da autoria de portugueses, de forma vaga durante o século XVII e precisa a partir do século XVIII, mormente em relatórios mais ou menos comerciais dos feitores dos estabelecimentos portugueses do Ibo e de Moçambique.

10 -A DISPERSÃO DO POVO YAO

  Os Wayao, até à sua dispersão em tribos, viveram no monte Yao, seu berço e solar, sendo as recordações referentes a essa época, muito vagas e imprecisas. Parece não terem sido muito perturbados, quer por dissenções internas, quer por conflitos com vizinhos ou com invasões. As altas montanhas que os rodeavam, defendiam-nos das incursões e proporcionavam-lhes um esplêndido isolamento; a benignidade do clima, a abundância de cursos de água permanente, a fertilidade do solo e a extraordinária riqueza em espécies venatórias, tornava-lhes fácil a sobrevivência. De resto, os seus costumes simples com pouco se satisfaziam.
  É possível que, durante este longo período, as suas trocas comerciais com os árabes, e mais tarde, com os portugueses do Ibo e de Moçambique, fossem baseadas, essencialmente, no marfim; alguns escravos que obtinham por compra, aos vizinhos, especialmente a troco de artefactos de ferro, que produziam em quantidade e de boa qualidade, também serviam para efectuarem essas trocas.
  Nos fins do século XVIII ou em princípio do século XIX, verificou-se entre os Wayao um movimento que conduziu à fragmentação do povo em várias tribos, que se dispersaram em todos os sentidos, indo fixar-se em territórios vagos, ou ocupados por gente de outros povos, numa penetração de carácter pacífico. Desconhecem-se as causas deste movimento. Yohannah Abdullah (27), aventa a hipótese de a dispersão se dever a dissenções internas, mas confessa que "[...] a causa principal desta separação é desconhecida até hoje em dia". O mesmo autor enumera as seguintes tribos de wayao, que adoptaram o nome dos locais onde se estabeleceram:

I - Amasaninga - os que foram habitar no monte Lisaninga, perto do rio Lutwesi;
II - Amandimba  ou   Amacinga - os  que  se fixaram nos montes Mandimba;
III - Amalambo - os que se fixaram num planalto perto de Lisaninga;
IV - Wambemba - os que se instalaram na serra Mbemba;
V - Makale - os que foram habitar no Makale, entre Ciso e os montes do Nyasa;
VI - Amangoce - os que se instalaram no monte Mangoce;
VII - Wankula- os que se fixaram na serra Mkula;
VIII - Anjese - os que foram habitar a serra Njese. Estes são tratados desdenhosamente, pois são muito atrasados e falam mal o Ciyao;
IX - Amwela ou Acimbango - os que se fixaram no monte Cingole--Mbango;
X - Acingoli - os que se instalaram em outro monte, também com o nome de Cingoli;
XI - Wacisi - os que se fixaram no monte Mcisi.

  Foram estas, segundo Abdullah, as tribos em que se fragmentou o povo Yao logo a seguir à dispersão. Um fenómeno curioso que se verifica, porém, é o de o povo Yao manter a sua identidade própria onde quer que se fixe, preservando a língua, que não sofre alterações, salvo, por vezes, no ritmo com que pronunciam as palavras; os usos e costumes; as tradições e história do povo, e um acentuado saudosismo do seu lar ancestral: o Mwembe.
  A diferenciação inicial não se tem mantido com carácter de rigidez, salvo para efeitos genealógicos, encontrando-se, actualmente, diferenciadas, apenas as seguintes tribos: Amasaninga, Amacinga, Amangoce, Amakale e Amwele ou Acimbango, sendo que em Moçambique apenas se encontram diferenciadas as duas primeiras. A tendência que se nota é no sentido de todos se identificarem, apenas, como wayao, afirmando, assim, a coesão do povo Yao.

11 -MIGRAÇÕES

  A dispersão do Povo Yao, fosse qual fosse o motivo que a determinou, ou os motivos que a determinaram, foi caracterizada pela ordem e ausência absoluta de intenções hostis para com os povos com quem tiveram contacto. Segundo a tradição, a paz e a concórdia manteve-se até que a tribo Amacinga, fixada nos montes Mandimba, foi atacada por Alolos de Macuana, possivelmente, em meados do século passado. Estes Macuas, ao que parece, fizeram a guerra movidos pela fome que grassava no seu país, conseguindo, por melhor armados, com armas de fogo, mais afeitos às lides guerreiras e sob o comando de um chefe prestigioso, Nameuwa, vencer e dispersar os wayao Amacinga. Data daí a fixação de uma parte dos Amacinga no médio Lugenda, sob a direcção de Metalika, hoje e desde essa época, o chefe mais prestigioso dos Amacinga no Niassa português.
  A dispersão dos Amacinga, sob pressão dos Alolos, foi completa: alguns rodearam o lago Niassa para a margem ocidental, sob a direcção de Ce Pemba e de Ce Tambala (28); outros foram-se fixar nas montanhas de Metónia, com Ce Katuli; outros ainda foram-se fixar na serra Mlanje e na região onde mais tarde foi fundada Blantyre, no território da Nyasaland. Parece datar daí que o instinto guerreiro, que infelizmente parece existir em todo o ser humano, se tenha manifestado nos wayao, de costumes tradicionalmente brandos. A necessidade de lutarem para se defenderem despertou-lhes o gosto pela guerra e, assim, os Amacinga, na escolha de novas terras para se fixarem, entraram em guerra, não só com os Achewa que encontraram para ocidente e noroeste, como com outros wayao com quem depararam para norte e para o nordeste. Começou, assim, um longo período de lutas, não só intestinas como de agressão contra Achewa e de defesa contra as constantes incursões de Macuas e de Angonis, que, tendo atravessado o Zambeze para o norte em 1835, se fixarem no Tanganhica. Estas lutas determinaram, assim, não só a dispersão da tribo Amacinga como a da maior parte do Povo Yao.
  Actualmente os Wayao encontram-se dispersos por vastas áreas das Repúblicas do Malawi e da Tanzânia.
  A tribo Amangoce foi expulsa da região onde vivia, nos montes Mangoce, pelos Amacinga e encontra-se, actualmente, fixada ao sul de Zomba e nas áreas de Blantyre, Chiradzulu e Mlanje. Os Wayao fixados na margem ocidental do lago Niassa, a sul de Domira Bay, são Amasaninga que atravessaram o lago sob a direcção da rainha Kuluunda, da família de Ce Makanjila. Os Amacinga que emigraram sob a direcção de Ce Pemba e de Ce Tambala, seguiram a margem sul do lago Niassa e fixaram-se a sul de Lilongwe-Lintipe Rivers. O chefe Makanjila da tribo Amasaninga ocupa a margem oriental do Niassa, no território da República do Malawi. A parte do Povo Yao que foi compelida a emigrar e a que o fez voluntariamente, perfazem, hoje, no Malawi, uma população computada em mais de 300 000 almas.
  Os Wayao que emigraram para o Tanganhica fizeram-no em três períodos distintos. Em 1850 estabeleceram-se em Masasi, Chiwata, Nevala, Tunduru, Mikindani e Kionga. Os outros dois grupos mais recentes: um de cerca de 3000 almas, foi conduzido pêlos Angónis, como presa de guerra, para o distrito de Songea; outro, de cerca de 45 000 indivíduos, estabeleceu-se no vale do alto Lukuledi, no distrito de Lindi, em 1912 (M). Há, ainda, wayao em Rufiji, Dar-es-Salam e Tabora e parece haver, também, um pequeno grupo de wayao no norte do Tanganhica, perto do Monte Njaro. A população yao da República da Tanzânia é calculada em, aproximadamente, um quarto de milhão de pessoas, que preservaram a sua identidade própria.

12 - DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DOS WAYAO NA PROVĺNCIA DE MOÇAMBIQUE

  No território compreendido entre o Niassa, o Rovuma e o Lugenda, englobando o concelho de Vila Cabral e as Circunscrições do Lago, Sanga, Valadim, Mecula e Mandimba, habitam, segundo estimativa recente, 113260 wayao, com maior concentração no concelho de Vila Cabral.
  Dispersos pelo norte da Província vamos encontrar pequenos núcleos de wayao nos concelhos de Amaramba, Nacala (regulado Maúa), Montepuez (regulados Maconde II e Mpima), e Macondes (regulado Bawala), e nas Circunscrições de Palma, Macomia e Quissanga. No distrito da Zambézia, concelho de Milange, estão recenseados 611 wayao, e no concelho de Namacurra há, também, algumas pequenas povoações de wayao.
  Os recenseamentos, por etnias, são pouco precisos, pelo que, só por estimativa, podemos avaliar o número total de wayao que vivem em Moçambique. Suponho que não vai além de 140 000 almas, cerca de 20 % da totalidade provável do Povo Yao.

13 - O SULTANATO MATAKA

  A história recente dos wayao de Moçambique é, a bem dizer, a história da dinastia Mataka, da tribo dos Amasaningas.
  Quando da dispersão da tribo Amacinga sob pressão dos Alolos de Makwana, em meados do século passado, uma parte foi estabelecer-se no médio Lugenda, sob a direcção de Metarika. Iam acossados mas não receosos, pois que faziam a guerra aos seus próprios irmãos de sangue, que iam encontrando, procurando tirar benefício da luta. No Lugenda entraram em contacto com os Amasaninga do Mwembe, aos quais pretenderam impor a sua supremacia. Foram derrotados pelo sultão Mataka I, o célebre Nyambi, que passou a ser o líder incontestado dos wayao de entre Lugenda e Rovuma,
  A história da fundação da dinastia Mataka é-nos contada por Yohannah Abdullah em Wayao'we e as circunstâncias que a rodearam ainda se encontram bem vivas na tradição oral do povo. Ouvi-a, directamente, da boca do VII Mataka, Ce Salanje Citemwe, bisneto de Nyambi, o Mutaka I.
  Ei-la, muito resumida:
  Na primeira metade do século XIX, vivia em Likopolwe, no país dos Wayao, Ce Syungule, mulher notável pela sua personalidade e pelas muitas filhas que teve, que, por sua vez, também foram muito prolíferas. Ce Syungule exercia as prerrogativas de um verdadeiro chefe. Uma das filhas de Se Syungule era Ce Kunakawale que tinha um filho de nome Nyambi que começou a não levar a bem a forma como sua avó governava a povoação, pelo que resolveu abandonar a família. Juntamente com sua mãe Ce Kunakawale, sua tia, irmã mais nova da mãe, Ce Kwikanga, e com seu irmão mais novo Ce Kuntelela, dirigiu-se Ce Nyambi para junto do rio Lutwesi, onde fundou uma povoação. Passado pouco tempo falecia Ce Kunakawale e mudaram a povoação para junto do rio Lucelingo. Do Lucelingo mudaram para Kungonde, nas terras de Makaloje, do chefe, também Masaninga, Ce Makanjila. Nesta povoação de Kungonde, a família de Ce Nyambi aumentou muito e foi aqui que Ce Nyambi resolveu criar Lukosyo próprio a que deu o nome de Acinkali (os bravos, os destemidos).
  Certo dia Ce Nyambi resolveu ir ao Yao visitar os parentes que lá deixara e, na Liwele Acinamalweso, conheceu Ce Mbumba, irmã de Ce Kucipile, a quem a pediu em casamento. Por motivos que a história não esclarece inteiramente, Ce Kucipile negou autorização para o casamento, alegando que queria para a irmã um homem muito trabalhador. Ce Nyambi trabalhou, durante muito tempo para Ce Kucipile e manifestou-lhe o máximo respeito, rojando-se na terra em sua presença e apresentando-lhe água no começo e no fim das refeições, de tal modo, que Ce Kucipile, vendo a constância de Ce Nyambi, consentiu no casamento e concedeu o Cicigale, isto é, consentiu que Ce Nyambi levasse Ce Mbumba para habitar na sua povoação. Logo após o casamento, Ce Nyambi anunciou que passaria a chamar-se Mataka, pois que, ao facto de se ter rojado na terra (mataka) diante de Ce Kucipile é que devia a felicidade de estar casado com Ce Mbumba.
  Depois de casar com Ce Mbumba, Ce Nyambi fundou uma nova povoação em Masotongumbi, onde viveu durante algum tempo, depois do que mudou para Mloi, no Cikonono, onde se lhe juntou sua tia Ce Kwikanga com os filhos, e seus irmãos Ce Kuntelela e Ce Ma tola.
  Quando habitava Mloi, foi Ce Nyambi a Mbwani donde trouxe a semente de um fruto muito apreciado mas desconhecido na região: a manga. Lançada à terra a semente germinou e cresceu uma bela mangueira (nwembe) com o que todos ficaram muito contentes. Mloi passou a chamar-se Mwembe.
  A povoação de Ce Nyambi aumentava de importância pois ele dedicava-se, ajudado pelos irmãos e sobrinhos, a fabricar cestos, peneiras, esteiras, etc., artefactos estes que trocava por enxadas com as quais adquiria escravos em abundância. A tradição é bastante explícita no respeitante à falta de escrúpulos de Ce Nyambi para conseguir aumentar os seus cabedais; todas as artimanhas lhe serviam para explorar os seus vizinhos, até que a sua povoação adquiriu grande importância no país Yao.
  Por esta altura Ce Nyambi foi visitado e criou amizade com um tal Mlenga que a certa altura lhe disse que podia preparar uma "mcila" (literalmente, cauda) de guerra que o tornava invencível dando-lhe possibilidade de dominar todo o povo Yao, mas que para a mcila ter verdadeira eficácia era necessário que contivesse o coração de uma pessoa da sua família. Uma prima de Ce Nyambi foi enfeitiçada e morreu (há quem diga que foi o próprio Ce Nyambi quem fez o feitiço). Extraíram-lhe o coração e deram-no a Ce Mlenga que preparou a "mcila" e a entregou a Ce Nyambi. Entretanto Ce Nyambi não desaproveitava a oportunidade de poder tirar dupla vantagem da morte da prima: convocou um adivinho para determinar quem foi o feiticeiro responsável pela sua morte, e, logo que conhecido, foi obrigado a indemnizar Ce Nyambi com uma rapariga, que foi Ce Kumila em quem engendrou uma filha que se chamou Kusitina e veio a ser mãe de Ce Salanje Amacemba, o Mataka VI.
  A preparação psicológica da sua gente para a iniquidade da guerra fê-la Ce Nyambi mandando matar cinco pessoas na sua própria povoação, esventrá-las e expô-las, proibindo, sob pena de morte, que alguém as chorasse. O poderio de Ce Nyambi cresceu rapidamente impondo a sua autoridade, por força das armas, sobre todos os Wayao de entre Rovuma e Lugenda, à excepção de Ce Makamjila de Makaloje.
  Yohannah Abdullah refere que Ce Nyambi, na sua povoação de Mwembe, no auge do seu poderio, dispunha de 200 esposas; na de Cole, 50; na de Lunguja, 50; na de Luuma, 50; na de Majuni, 50; e na de Matambwa, outras 50. Quinhentas esposas no total. Sobre estas esposas, reinava a sua Abidi, Ce Mbumba. Esta incrível quantidade de esposas dava a justa medida do extraordinário prestígio e autoridade de Ce Nyambi, além de ser uma muito apreciável fonte de receita... pois as infidelidades conjugais eram punidas com a imposição de compensação de vulto ao sedutor.
  Ce Nyambi reinou com crueldade incrível. Morreu velho, já quando se apoiava num bordão. Era muito alto e robusto.
  Apesar da sua extrema crueldade a sua morte foi muito chorada e reza a tradição que na sua sepultura no Mkonde, aberta debaixo de uma árvore a que chamam "msicisi" (30), meteram sacos de sal, missangas, peças de pano precioso (subaile, ndeule e mabweta) e sepultaram, vivos, 30 rapazes e 30 raparigas, vestidos de "masikati".
  Quando faleceu Ce Nyambi, Mataka I, seu irmão Ce Kuntelela, designou para lhe suceder a Ce Nyenje, filho de Ce Kwikanga. Ce Nyenje, à data do falecimento do Mataka I, encontrava-se em Cyuinja, no Mbwani, onde tinha ido em expedição comercial. Ce Kuntelela mandou emissários levar a notícia e ordem para regressar. Entretanto dividiu o reino pelos primos do Mataka: a Ce Kun-gombo, deu Matambwe, junto do Rovuma; a Ce Calamanda, deu a povoação de Cale; a Ce Cinunga, deu a de Masikita: a Ce Matola, a de Majuni; a Ce Cuma deu a povoação de Lugunja. Quando Ce Nyenje chegou a Mwembe, Ce Kuntelela disse-lhe: - Dividi o reino entre si e seus primos para que estes não tenham inveja e o não enfeiticem. Ce Nyenje era homem pacífico e sem ambições; conformou-se com a decisão.
  O reinado do Mataka II, foi caracterizado por uma acentuada decadência e dissolução dos costumes. Os Angonis (Maguangaras) do Tanganhica invadiram Mwembe, surpreenderam os habitantes em grandes festejos e embriagados, tendo-os derrotado com facilidade e feito muitos prisioneiros.
  Depois da incursão dos Angonis, a capital do reino, Mwembe, foi mudada para a serra Namisui, onde Ce Nyenje, Mataka II, faleceu, depois de quatro anos de reinado, tendo sido sepultado junto da Mesquita. Era um homem corpulento, não muito alto e de cor preto-carregada.
  Morto Nyenje, sucedeu-lhe, como Mataka III, Ce Bwonomali Mkandu, filho de Ce Kundenda. Ce Bwonomali tomou como modelo de governação, que procurou seguir, Ce Nyambi, o Mataka I. É recordado como o mais cruel de todos os Mataka. Pelos motivos mais fúteis invadia as terras outrora conquistadas por seu tio Nyambi impondo pesados tributos de guerra e levando a morte e a rapina a todo o lado. O Mataka III também dispunha de uma rocha Tarpeia, costumando justiçar os criminosos, lançando-os, na serra Mlíngula, para um precipício. Dizer que alguém subia a serra Mlíngula era dizer que ia morrer. As mulheres costumavam cantar, nos batuques:

Akwele, ééé! ééé!
Akwele, mu Mlíngula!
Suba, ééé! ééé!
Suba à serra Mlíngula! (31)

  Em 1889, uma expedição composta por 50 landins armados e 250 carregadores, comandada por dois europeus, o aspirante da Alfândega Manuel Tomás de Almeida e o alferes do Exército Eduardo Prieto Valadim, entrou em terras de Mwembe, com objectivo que não está devidamente esclarecido, supondo-se que se dirigia às margens do lago Niassa. Os europeus foram mortos e os africanos escravizados. Diz-se, entre os Wayao, que Ce Bwonomali teria devorado a cabeça do alferes Valadim depois de a polvilhar com piripiri e de ter declarado que "era peixe". Diz-se, ainda, que guardou o crânio que passou a servir-lhe para fazer as suas libações, tendo-o legado ao seu sucessor, e que, daí para diante, todos os Mataka o usaram para o mesmo efeito. Perguntei ao Mataka VII, Ce Salanje Citemwe se tal tradição era verdadeira. Ce Salanje não disse que sim nem que não, mas fiquei com a impressão de que a história lhe agradava...
  Só dez anos após o massacre (1899), uma coluna, comandada pelo major Manuel de Sousa Machado, subindo o Chire até Chilomo, e daqui por terra, se dirigiu às terras do Mataka para vingar a morte do aspirante Almeida e do alferes Valadim. Ce Bwonomali parece que não ficou muito impressionado com a expedição do major Machado. A tropa retirou e Ce Bwonomali disse: "Mawambà ambasile" - "aplicaram-me escamas de cobra", isto é, a tropa não me pegou. Mudou a sua residência e fundou um novo Mwembe em Pegogo.
  Rocha Ribeiro (Wa iao, os ajáuas, pp. 11 e 12), refere as impressões da expedição de 1899 sobe as terras do Mataka, pela seguinte forma:
  "O estado de civilização dos habitantes do sultanato do Mataka era superior ao dos restantes nativos, como foi reconhecido pelos expedicionários de 1899. As palhotas eram construídas com troncos bem aparelhados e ajustados, sobre os quais assentavam as asnas da cobertura, onde havia orifícios engenhosamente dispostos para efeitos de ventilação; os umbrais das portas ostentavam, por vezes, curiosos e correctos lavrados; as paredes eram revestidas por um reboco liso, agradável à vista e, por vezes, adornado com desenhos. Na habitação do sultão, abandonada momentos antes da chegada dos nossos, via-se uma larga porta, com embutidos de placas de marfim e ébano nas ombreiras; o trono onde presidia à administração da justiça e onde recebia os súbditos, encontrava-se rodeado por assentos destinados aos conselheiros. Em algumas das principais habitações viam-se sentinas, pequenos recintos de chão duro para evitar a infiltração dos líquidos no solo e um buraco para esgoto. A par deste conforto nas habitações, encontravam-se indícios seguros da atenção que a agricultura e a pecuária mereciam, como galinheiros, currais, silos e outras dependências. Porém, o mais notável era a existência de montes de estrume que aguardavam a estação própria para serem espalhados pelas terras de cultivo, estrume que demonstrava a assimilação de técnicas agrícolas evoluídas.
  A povoação do sultão situava-se numa vasta planície, de mais de 60 km2, limitada a norte pela serra Moembe e nas outras direcções por várias alturas. Não é fácil separar a capital do sultanato, porque desde a serra Lisali as povoações eram contínuas, vendo-se palhotas e terras cultivadas até onde a vista alcançava. Avaliou-se em 15 000 o número de pessoas que povoavam aquela planície."
  Apesar de Ce Bwonomali, durante todo o seu reinado, exteriorizar querer seguir o exemplo de governo que lhe foi deixado pelo grande Nyambi, não o conseguiu igualar: Ce Nyambi era firme na sua autoridade; Ce Bwonamali apenas foi cruel. Ce Nyambi fez a guerra para criar um grande sultanato; Ce Bwonomali fazia a guerra menos com intuitos políticos do que de simples rapina. O reino criado por Ce Nyambi e a que deu um poder centralizado, firme e prestigioso, desmembrado, logo após o seu falecimento, por seu irmão Ce Kuntelela, jamais foi reconstruído. Todos os sucessores de Ce Nyambi viveram do prestígio que este extraordinário político e guerreiro conquistou.
  Em 1900 estabeleceram-se postos militares nas terras do chefe Metarika do Lugenda: os fortes D. Luiz Filipe e Mululuka; em Mandimba foi estabelecido um forte na serra Tambala; junto do Lago estabeleceram-se fortes em Metangula, Luângue e Cóbuè, em terras de Nianjas. O cerco ao Mataka começava a apertar-se.
  Por esta altura as autoridades alemãs do Tanganhica procuraram atrair para ali Ce Bwonomali dizendo-lhe que fariam dele um grande potentado. Ce Bwonomali respondeu-lhes, orgulhosamente, que potentado já ele era desde há muito tempo em todas as terras de wayao. Consentiu, entretanto, que sua mãe Ce Kundenda e seu irmão Ce Alifa atravessassem o Rovuma com a população de algumas povoações. Ce Alifa foi feito Mataka de além-Rovuma.
  Uma pequena expedição a Mwembe, mal preparada e engodada pelo chefe Kuntelela, foi destroçada, por esta época, dizendo Yohannah Absullah: "Quatro europeus e todos os sipais foram assassinados pela gente do Mataka e comeram carne humana de europeus."
  Ce Bwonomali adoeceu e morreu em Pegogo, onde foi sepultado. Era homem de elevada estatura, desempenado, olhos grandes e brilhantes. Usava a barba toda.
  A Ce Bwonomali sucedeu seu irmão Ce Mkwepu, como Mataka IV. Este preparou uma expedição de guerra contra o chefe Metalika do Lugenda - que foi mal sucedida, tendo morrido um filho do Kuntelela, Saide Metalika, em Mapelela. O chefe Kuntelela, querendo vingar a morte do filho, convidou Ce Mkwepu para uma festa e envenenou-o. Ce Mkwepu regressou doente a casa e, passados três dias, faleceu, sendo sepultado em Mwembe.
  Vemos, através de todos os reinados Mataka, funcionar como elemento decisivo na política, os Kuntelela, de que o primeiro foi irmão de Ce Nyambi.
  Após a morte de Ce Mkwepu, por vontade da maioria, fizeram convite a Ce Alifa, o tal que estava no Tanganhica, para vir ocupar o trono. Ce Alifa não aceitou a oferta pois que o seu poderio e riqueza tinham aumentado muito. O trono foi dado a Ce Cisonga, com o nome de Mataka V, sobrinho de Ce Bwonomali, de Ce Mkwepu e de Ce Alifa. Foi um sultão sem prestígio. No seu reinado, Ce Salanje, neto de Ce Kumila e de Mataka I, rebelou-se contra o sultão, invadiu Kumacemba e fez grandes estragos. Ce Cisonga não teve ânimo de dominar o rebelde.
  Em Setembro de 1912, uma coluna comandada pelo capitão Pottier de Lima, chefe do concelho de Metalika, integrando wayao do régulo Metalika e nianjas de Metangula e Cóbuè, invadiu Mwembe a fim de subjugar o Mataka. Não houve resistência e Ce Cisonga abandonou as suas terras passando-se para o Tanganhica com 45 000 dos seus súbditos.
  Com Ce Cisonga terminou a linha dos Mataka do Lukosyo Acinkali (os bravos), no Niassa português.
  Após a ocupação as autoridades portuguesas fizeram consultas ao povo sobre quem devia ocupar o trono vago pela fuga do Mataka V, tendo sido escolhido como Mataka VI, Ce Salanje Amacemba (o que se rebelou contra Ce Cisonga), do Lukosyo Acingunda (ngunda=pombo; acingunda = lukosyo adoptado pelos que se fixaram junto de uma serra onde havia muitos pombos) (J2).
  A fuga do Mataka V para o Tanganhica com a maioria da sua gente foi o golpe decisivo no poderio dos Matakalas. Ce Salanje passou a reinar, efectivamente, sobre um número muito reduzido de súbditos, até o seu falecimento, já velho e consumido pelo álcool, em 1948. Nada de notável se passou no seu reinado, tendo suportado, parece que com bastante indiferença, a invasão alemã da 1." Grande Guerra.
  Em 23 de Setembro de 1948 era investido nas funções de Mataka VII, Ce Salanje Citemwe, filho de Ce Citemwe e de Ce Cetote, sobrinho do anterior, que exerceu efectivamente as suas funções até o seu desaparecimento em 1965.
  Conheci Ce Salanje e passei muitos dias na sua povoação. Era um homem robusto, de cabelo e barba rapada, inteligência aguda (já um pouco embotada pelo álcool), e com um enorme poder de argumentação. Como todo o muyao é, de início, reservado, mas logo que adquire confiança no interlocutor, mostrava-se comunicativo.
  Quando conheci o último Mataka, o seu poderio estava resumido a quase nada, exercendo autoridade efectiva sobre uma pequena população de cerca de 1400 almas. No entanto a sua influência política ainda se fazia sentir sobre uma grande área da população, especialmente sobre os régulos mais intimamente ligados à casa Mataka: Metamila, Matola, Calamanda e Cinunga.

(26) MITCHELL, J. Clyde - The Yao Village, p. 22, diz: "Podemos estar absolutamente certos de que o contacto dos wayao com os árabes começou, pelo menos, 200 anos antes de chegarem os europeus."
(27) ABDULLAH, Yohannah - Wayao'we: "Podemos dizer que a causa da separação destes nossos antepassados foi o desentendimento e a discórdia que houve entre eles. Os mais fortes, talvez sejam os que permaneceram até hoje neste monte: o Ce Metamila que se encontra no Likopolwo e o Ce Malinganila, no Yao propriamente dito, e só saiu dali há pouco tempo e veio habitar Citagalo em 1892. Devem ter sido estes que expulsaram os seus amigos ou vizinhos dali para longe. São estes tais que falam o Ciyao tão lento e que destacam as sílabas de cada palavra, dando-nos a entender que são verdadeiros wayao de Yao."

(28) Ce - é um prefixo honorífico para os nomes. Ë equivalente a senhor, senhora, menino ou menina. A sua omissão é considerada uma descortesia. (Ce - leia-se tché.)
(29) RITA-FERREIRA, António - Agrupamento e Caracterização Étnica dos Indígenas de Moçambique, p. 75.
(30) Msicisi - árvore da família das melianáceas (Tríchila emética), uma árvore sempre-verde.
(31) ABDULLAH, Yohannah - Wayao'we. Abdullah refere que viu o precipício da serra Mlíngula que lhe foi mostrado por um notável, numa das suas idas a Yao, tendo visto muitos ossos e crânios humanos.
(32) Ngunda é designação genérica dada a qualquer espécie de pombos. Outras espécies são Citule - Nilaus aler nigritemporalis; Nyandi -pombo verde- Treron australis.


CAPITULO V - MANIFESTAÇÕES LITERÁRIAS E ARTISTICAS; DIVERSÕES
3.1 - Jogos
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Edição de 1990

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