A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



LEONIDO FRADE



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LEONIDO FRADE, nasceu a 13 de Março de 1951, em Mirandela.
Ainda criança, embarcou para Moçambique com os pais.
Em 1975, com a independência daquele território, partiu para Paris, onde permaneceu cerca de um ano.
Regressou a Portugal no Verão de 1976.
Hoje é Técnico do Ministério da Agricultura, em Braga.

Retrata a vida atribulada de um jovem que teve por sorte viver num local e numa época de dias conturbados, que mudaram por completo as vidas de muitos outros, também cidadãos anónimos como ele, que um dia partiram para Moçambique na esperança de encontrarem uma vida melhor...
Depois de ali tudo investirem, inclusivamente os melhores anos das suas curtas vidas, foram na sua grande maioria espoliados de tudo o que haviam granjeado, tendo alguns mesmo regressado só com a roupa que lhes cobria o corpo curtido pelo sol tropical.


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CAPITULO II
Marco António regressou à Escola e defendeu a respectiva tese. Possuía agora o almejado diploma. Poderia regressar, querendo, a Montepuez. No entanto, Marco António decidiu ingressar nos Serviços de Veterinária, não só por ser mais rápida a sua admissão, mas sobretudo por saber que era colocado numa cidade, com mais possibilidades de conhecer novas terras e novas gentes.
Um mês depois ingressava de facto na Delegação daqueles Serviços em Tete. Esta cidade, a cerca de mil e seiscentos quilómetros de Lourenço Marques e seiscentos da cidade da Beira, fica no centro de Moçambique. Embarcou num Boeing 737, com destino à Beira. Uma hora após a descolagem, avistava esta cidade nova, com o avião a fazer a aproximação sobre a copa das palmeiras debaixo de um calor abrasador. Houve transbordo de seguida para um outro avião, um Friendeship, avião bimotor, turbo-hélice de vinte passageiros, com destino a Tete, última etapa.
Foi um voo atribulado. A turbulência, provocada pelo calor existente que proporcionava correntes de ar ascendente, tornou incómoda a viagem, principalmente aos menos habituados àquele meio de transporte. Uma hora depois, a baixa altitude e já em fase de aproximação à pista do Matundo, Moatize, pista militar que dista dez quilómetros da cidade, via-se o rio Zambeze à esquerda, largo e bastante caudaloso, dando mostras da sua imponência.
Manadas de gado bovino movimentavam-se pachorrentas, nas margens, procurando o que poderiam comer, pois, no terreno parecia não existir erva, apenas terra, pedras e algumas árvores pequenas e secas.
A aterragem foi perfeita e o avião deslizou suavemente pela pista asfaltada.
Estacionado na placa do aeroporto e abertas as portas do avião, Marco António sentiu como que um choque com a diferença de temperatura existente. O calor, difícil de suportar, atingia os 40 graus e os passageiros caminhavam rápido, desejosos de entrar no edifício e sair do sol abrasador.
Com a mala em seu poder, ficou em pé, aguardando, se viria alguém buscá-lo. Era Domingo, catorze horas e trinta minutos da tarde. Reparou num carro Volkswagen 1200, com o símbolo dos Serviços, estacionado junto à porta de saída. Um moçambicano, aproximou-se e perguntou:
- Desculpe, é o Sr. Marco António?
- Exactamente - respondeu.
- Sou motorista do Serviço e vim buscá-lo. Tenho ali o carro. O Doutor Louro mandou-me levá-lo à pensão do senhor Cadima. Depois de se instalar, voltarei para o levar a casa do Doutor, ele quer conhecê-lo e cumprimentá-lo.
Eram dezassete horas de Domingo e estava ainda quente, (temperatura que, como veio a verificar, era habitual naquela região), quando o motorista o foi buscar e o deixou depois defronte de uma casa, onde um homem vestido de balalaica e calções claros, cabelo branco, sentado numa pequena mesa à sombra do alpendre de uma casa tipicamente colonial, o esperava.
- Boa tarde, cumprimentou Marco António.
- Boa tarde e seja bem-vindo. Desde já lhe digo que estou a contar consigo para activar a brigada de apoio aos Serviços de Veterinária. Vai com certeza gostar disto. Disponha do motorista para lhe mostrar a cidade, não é muito grande, mas é bonita. Não tenha a tentação de se aproximar muito da água do Zambeze, os crocodilos saem da água e podem ser perigosos. O Dr. Louro gracejou, sorrindo simpaticamente, e Marco António, naquele momento, soube que estaria em casa e que teria todo o apoio enquanto ali permanecesse.
No início da semana, foi apresentado aos restantes funcionários, cerca de oito pessoas. Conheceu o senhor Almeida, chefe da secretaria, a D. Mariazinha, administrativa, o senhor Mota, ajudante de pecuária, o Freitas, fiscal de caça, o Almeida, encarregado do laboratório.
Após uma reunião com o Delegado, ficou inteirado do serviço que lhe estava reservado e ao qual se dedicaria por inteiro nos próximos dois anos.
Para executar as tarefas que o esperavam, tinha necessidade de se deslocar para áreas distantes, pelo que tinha à sua disposição um Jeep Land Rover, novo, afinal o meio de transporte mais apropriado às condições adversas do meio, com estradas inadequadas a outros meios de transporte.
Recentemente, havia ali sido incrementada a criação de arietinos "caraculo", cujas crias eram abatidas à nascença e extraída a pele, rica pelo cabelo ondulado, normalmente preto, e que se destinava normalmente à confecção de casacos. Havia pois que proceder à construção de parques de fomento pecuário, que passariam a ser da sua responsabilidade. Estava prevista a construção de dois parques, um na localidade do Mandié, distante cerca de vinte quilómetros de Tete, junto do rio Luenha, afluente do rio Zambeze, um outro na localidade da Marara, a cerca de quarenta quilómetros para noroeste de Tete, próximo da barragem de Cahora-bassa, uma das maiores barragens do mundo, e destinado ao incremento da produção de bovinos para carne.
- Senhor Marco António, como é já do seu conhecimento, há necessidade de se dar início à instalação do Posto do Mandié, informou o Delegado. O Santos, auxiliar de Pecuária ali colocado, possui já 100 cabeças de "caraculo" e há necessidade de se proceder à edificação dos cercados, fornecer água a esses parques para abeberamento dos animais, e construir um tanque carracicida.
- Bom, Doutor Lorena, julgo haver em primeiro lugar necessidade de proceder ao levantamento topográfico da área a vedar. Necessito de um teodolito.
- Faça a encomenda do que desejar e compre.
Reunido todo o material necessário à execução do trabalho requerido, partiu para o Mandié, onde permanecia durante os dias de semana, por um período que durou cerca de dois meses, indo a Tete apenas aos fins-de-semana.
Os dias e noites tornavam-se monótonos. Composta apenas pela casa do Administrador de Posto, a casa Administrativa e meia dúzia de casas de comércio, denominadas cantinas, que serviam também de habitação aos proprietários, esta localidade era pequena demais.
O Administrador, fosse pelo isolamento fosse por qualquer outro motivo, tinha o hábito de beber em demasia. Como o calor que se fazia sentir convidava à ingestão de bebidas refrescantes, aquele escolhia a cerveja para matar a sede, causando com isso transtornos ao próprio funcionamento da Instituição. A esposa, vivendo, é certo, numa casa condigna, com grandes varandas em volta, um lugar paradisíaco na margem do rio Luenha, não era feliz, procurando por isso, sempre que a oportunidade se apresentava, conquistar a companhia de outras pessoas que as circunstâncias levavam àquelas paragens.
Era Sexta-Feira e Marco António preparava-se para partir para Tete a fim de ali passar o fim-de-semana. Tinha que passar junto da casa do Administrador onde este acabava de parar o Land-Rover. Apercebeu--se de imediato que o seu estado não era normal, pelo que se lhe dirigiu, procurando prestar ajuda, se necessário.
- Então, senhor Administrador, tudo bem?
- Tudo OK - respondeu ele numa voz arrastada que não enganava ninguém. Entre e venha tomar alguma coisa - retorquiu.
- Mas só por um instante, senhor Administrador, tenho que ir para Tete - respondeu Marco António.
Entraram em casa. A esposa olhou para Marco António, esboçou um gesto de lamentação e dispôs-se a servir uma cerveja e um pratinho de queijo e presunto.
O Administrador não mostrava desejos de deixar partir o convidado e fazia-se tarde, embora ainda houvesse sol.
Tendo-se afastado por momentos para o interior da casa, sussurrou-lhe aquela:
- Por favor, fique cá hoje, o meu marido quando está neste estado ameaça-me e tenho medo dele.
Contrariado acedeu, e quando o Administrador entrou, Marco António perguntou-lhe se não via inconveniente em que ficasse ali aquela noite, uma vez que já se tinha feito tarde e não queria arriscar fazer uma viagem, que todos sabiam não ser muito segura por causa das actividades da guerrilha, que se estendia aos territórios limítrofes daquela zona.
- Bom, sendo assim, como fica cá, conversamos amanhã. Se me permite vou-me deitar, a minha esposa indica-lhe o quarto quando quiser dormir.
Dito isto desapareceu no interior da casa e ficaram apenas os dois na sala.
- Vamos até à varanda? Ainda é cedo - alvitrou a senhora.
- Com certeza - respondeu. Gosto de ver o pôr-do-sol, é maravilhoso.
Encaminharam-se para a varanda voltada para o rio, cujos raios solares reflectidos na água o transformava num espelho dourado, e sentaram-se nas cadeiras de bambu que se espalhavam pelo alpendre, no meio do qual se encontrava uma mesa do mesmo material.
- Sabe, isto acontece com frequência - começou por se explicar a senhora. Bebe e depois dorme até de manhã, mas por vezes tenta agredir-me. Já não sei o que fazer.
- Tente levá-lo à razão e dizer-lhe para não beber, que lhe faz mal, que prejudica a sua imagem, posição social e responsabilidade pública... sugeriu Marco António, tentando consolá-la.
Era uma mulher dos seus quarenta anos, bem conservada, vestia uma roupa leve, própria para suportar o calor que se fazia sentir. À medida que a conversa se prolongava e ela fazia as suas confidências, as suas pernas ficavam mais a descoberto, até ao ponto de se ver a peça minúscula de vestuário mais íntima.
Marco António não se sentia à vontade, mas nos seus jovens vinte anos, sabia bem da responsabilidade e do perigo que poderia correr. A falta de carinho e as carências daquela mulher, levaram-na àquele extremo de, mesmo com o marido deitado ali ao lado, tentar por atitudes, um hóspede mais novo e compreensivo.
Embora não querendo, o apelo desesperado dela não deixou Marco António indiferente, e num acto de carinho, levou-a para o interior da casa.
No dia seguinte, com o sol a nascer e a temperatura já a rondar os vinte graus, partiu para Tete, a pensar no que lhe havia sucedido.
Uma semana depois terminou o levantamento topográfico da área destinada ao Posto e a implantação em mapa com a respectiva sinalização das cotas de desníveis.
Deu-se então início à construção de bebedouros fornecidos de água por gravidade, com torneiras-bóia e a divisão da área em cercas vedadas com arame farpado. Foi também construído um tanque carra-cicida, que passou a proporcionar banhos semanais aos animais, de modo a mante-los limpos de parasitas e em bom estado sanitário.
Nas deslocações a Tete aos fins-de-semana, o tempo era passado na Taberna do Costa Cigano, onde por vezes o capitão To Zé Marinho, militar a prestar serviço na Zona Operacional de Tete, cantava o fado acompanhado à viola, com uma cerveja por companhia, ou então no Maxims, a boïte da terra. Num ou outro local permanecia até de madrugada.
Havia que compensar os longos dias passados sob o sol abrasador do Mandié. Para animar essas noites, assistia aos confrontos frequentes entre fuzileiros e pára-quedistas ou comandos, os quais aproveitando também os períodos de descanso, bebiam euforicamente, como se fosse a última vez que o faziam, matando a sede recalcada pêlos meses que permaneciam no mato enfrentando as minas e as emboscadas dos turras.
Foi num desses fins-de-semana que começou a frequentar o Aeroclube de Tete. Era uma construção em alvenaria com terraço, numa elevação de terreno, proporcionando uma bela vista sobre o rio Zambeze. Possuía uma piscina de água límpida e que o próprio sol abrasador mantinha quente, convidando a um mergulho a qualquer hora do dia ou da noite.
Ali começou a conviver com o nome dos aviões e das suas histórias, ouvindo falar constantemente do sonho que desde pequeno mantinha, voar. Ali se juntavam os pilotos comandantes do Gabinete do Plano do Zambeze, do Aeroclube, pilotos quer de aviões, quer de helicópteros, que diariamente levantavam voo da pista em terra existente na cidade.
Num desses domingos, em que fora ali almoçar, deparou com uma mesa comprida, onde, num papel colocado ao centro, se podia ler "Comandante Pereira e a sua tripulação". O Pereira, funcionário do tribunal local, simpático, era ainda e apenas um aluno piloto do Aeroclube.
Não se falando de outra coisa que não fosse de aviões, foi crescendo nele uma vontade enorme de, tal como eles, dar asas aos seus sonhos.
Naquele fim de tarde, a bebericar um whisky com soda, encontrava-se ali também o Doutor Prazeres, médico no hospital da cidade, piloto, o Braizinha, piloto instrutor, o Encarnação, piloto instrutor (que mais tarde viria a sucumbir num desastre aéreo na ilha da Madeira), e pilotos do Gabinete do Plano do Zambeze. O Pereira perguntou a Marco António:
- Não queres juntar-te a nós e tirar o brevet de pilotagem?
- O que é necessário para isso? - perguntou entusiasmado.
- Aparece no próximo Sábado no hangar, falamos com o Braizinha e tratamos disso.
No fim-de-semana lá estava ele. Após conversa com o instrutor, ficou definido que no dia seguinte poderia fazer parte do grupo que já se encontrava a frequentar o curso e que, caso o desejasse, poderia desde logo fazer um voo sobre a cidade para se familiarizar com o avião.
No outro dia, como combinado, chegou ao Aeródromo pelas dez horas da manhã. Cinco minutos depois, já Marco António estava sentado aos comandos de uma avioneta Auster D5 160 e a elevar-se nos ares sobre Tete. Foi de início um pouco assustador, estava um dia quente e as correntes ascendentes provocavam uma certa turbulência no avião, no entanto, pouco a pouco adaptou-se ao voo perdendo aquela impressão inicial, normal nas primeiras vezes.
Um mês depois fazia a sua primeira subida a sós. A mil pés de altitude sobre a cidade, numa tarde calma, sentia uma liberdade difícil de definir, havia esquecido todos os problemas terrestres, e olhando para baixo, vendo as casas de cima, os carros tão pequenos e aquela maravilhosa paisagem, pensou:
- Afinal, para quê tantas guerras? para quê tantos ódios e invejas entre as pessoas? para quê e porquê se na realidade ali em baixo nada somos?
Foi esta a primeira sensação de liberdade e do sentido da nudez da vida. Sempre que se sentia abatido, rumava ao Aeródromo, saltava para dentro do avião e subia às alturas, onde todo o stress desaparecia como que por encanto.
Naquela época e porque o país continuava a suportar uma guerra de guerrilha, havia companhias de soldados estacionadas em diversas zonas do interior, o que naquela zona de Tete não era excepção. Havia organizações, tal como a Cruz Vermelha Portuguesa, o Movimento Nacional Feminino, sempre prontas a tornar mais agradável e menos penoso o isolamento. Distribuíam produtos aos soldados, tais como medicamentos e prendas, principalmente em épocas festivas e no natal, pelo que havia necessidade de fazer chegar aos recantos do mato esses mesmos produtos. Assim, o Aeroclube, sempre que possível, tornava esse transporte rápido, através daqueles bravos pilotos que voavam em direcção ao mato, sobrevoando áreas ocupadas por turras, que facilmente os poderiam derrubar com um simples tiro de arma ligeira ou o lançamento de um míssil terra-ar.
Marco António havia terminado o trabalho que tinha efectuado no Mandié. Estando uma manhã sentado à secretária, já na Delegação, tocou o telefone. O senhor Almeida atendeu e chamou:
- É para si, senhor Marco António
- Está? Quem fala? - Perguntou ao atender o telefone.
- É o comandante Pereira - dizem do outro lado. É necessário ir levar um carregamento de medicamentos à Casula, queres ir?
- Mas, Pereira, é a primeira vez que vou fazer uma viagem tão longa, não haverá problema?
- Não há problema, segues rumo à Estima e após a passagem sobre a localidade, tens a barragem de Cahora-bassa à tua direita, segues em frente e numa curva bastante acentuada que o rio Zambeze faz, avistarás um aldeamento que será o teu destino.
- O. K., conta comigo.
- Vai para o Aeródromo que os sacos já estão no avião.
Os aparelhos de navegação daquela pequena aeronave eram praticamente inexistentes. Os pilotos faziam uma navegação visual, tendo apenas como ajuda a bússola que, mesmo submetida a correcções magnéticas, não se poderia considerar fidedigna, já que a deriva provocada pêlos ventos laterais poderia arrastar o avião para bem longe do local de destino. Tinham como última alternativa a visualização de um monte que servia de referência e para ali se dirigiam, para de seguida, após atingir esse ponto, visualizar um outro, seguindo naquela direcção até atingir o objectivo final. Não existia o GPS ou qualquer outro instrumento de navegação por satélite, nem rádios ajuda, o que só por si transformava estes jovens pilotos em grandes heróis.
Chegado ao Aeródromo, subiu para os comandos da Auster, rolou pela pista e subiu em direcção ao céu. Olhou a bússola, corrigiu o rumo e elevou-se até aos quatro mil pés para a Marara. Pela primeira vez olhou para baixo e não vendo a cidade sentiu-se um pouco intimidado, mas percorrendo com o olhar os instrumentos de bordo e vendo que tudo trabalhava na perfeição, sossegou. Olhou em frente e avistou uns cúmulos que se aproximavam, descontraiu-se e continuou a sua linha de subida até à altitude desejada, nivelou acertando as rotações do motor e mistura de ar-combustível de modo a manter uma velocidade de cruzeiro apropriada.
Cerca de quarenta minutos após a descolagem avistava a tal povoação junto ao rio Zambeze, numa curva do rio, tal como se indicava na carta aeronáutica, lá estava a pista. Sobrevoou o rio para norte, fez uma volta de cento e oitenta graus e iniciou a aproximação à pista. Era cerca de meio-dia quando as rodas do avião tocaram no chão, indo parar cerca de trezentos metros mais adiante. Fez inversão e rolou para um pequeno pavilhão de onde vinha já um unimog militar com um alferes e meia dúzia de soldados. Marco António desligou o motor e saiu do cookpit. Após cumprimentar o piloto, o alferes dirigiu-se-lhe num estado nervoso:
- Senhor piloto, pregou-nos um susto dos diabos. Estamos muito gratos, mas da próxima vez faça o favor de não fazer uma aproximação directa, sem primeiro dar uma volta sobre o acampamento para nos dar tempo a que possamos fazer uma segurança à pista. Ainda ontem tivemos um ataque ao aquartelamento e é perigoso voar a baixa altitude, há o perigo real de ser abatido.
Marco António não ficou impressionado; talvez por inexperiência, pouca idade e na euforia de pilotar um avião esqueceu-se do perigo que poderia ter corrido.
- Desculpe senhor Alferes, não tinha conhecimento de que esta zona era assim. Sabe, em Tete fala-se de guerra, mas de facto dificilmente ali se sente. De futuro tomarei as devidas precauções e agradeço-lhe as recomendações. Bom, já tiraram os sacos dos medicamentos, vou regressar.
- Agradecíamos que nos levasse este saco com correio para Tete -pediu o oficial.
- Certo, metam-no aí dentro e obrigado pelo aviso. Adeus e até à próxima.
Subiu para o avião e rolando novamente para a pista, alinhou e descolou rumando a Tete, procurando fazer uma subida rápida, pensando no que o alferes lhe havia dito. Deveria ter exagerado, mas pelo sim pelo não, regressou mais alto, agora a cinco mil pés.
Eram treze horas quando aterrou em Tete. O voo tinha corrido bem. Estava satisfeito. Tinha efectuado a sua primeira longa viagem sob aquele céu azul, desejando que ele nunca mais acabasse.
Era Domingo. Foi convidado para uma festa de aniversário que se realizava no segundo andar de um prédio situado na avenida central da cidade. No decorrer da mesma, alguém lançou um desafio a Marco António, dizendo não ter coragem de fazer passar o avião que habitualmente pilotava em frente à varanda do prédio. É claro que dez minutos depois já se encontrava no Aeródromo e punha o motor da Áuster em marcha.
Alinhou e descolou logo de seguida, subindo para dois mil pés em direcção ao centro da cidade, calculando o local onde todos os amigos se encontravam. Avistou a varanda onde alguns apreciavam a evolução do voo. Provocou uma perda com uma volta apertada e desceu a pique em direcção ao solo, tendo em vista aproximar-se o mais possível da altura do prédio, empurrando o manche para a frente e reduzindo a potência do motor, para evitar uma velocidade excessiva. A cerca de quinhentos pés, empurrou a manéte do combustível para a frente e puxou o nariz do avião para cima por forma a nivelar e fazer uma subida em chandel, que por certo iria impressionar os espectadores.
No entanto, o motor do avião não obedeceu começando a falhar, não ganhando potência que permitisse o avião subir. Verificando a situação grave que tinha provocado, Marco António sabia não possuir altitude suficiente para regressar ao Aeródromo, pelo que voltou pela sua direita e em direcção às areias existentes nas margens do rio  Zambeze, com a intenção de, se necessário, aterrar nas mesmas. Sabia ser perigoso e que a sua vida corria perigo.
O avião perdia altitude e ele procedia a determinadas tentativas para injectar combustível nos cilindros do motor, verificando que os níveis dos depósitos indicavam ainda como estando meios. Abriu o ar quente do carburador, continuava a perder altitude, trezentos pés!!! e eis que o motor dá sinais de retomar o funcionamento normal, deixando Marco António aliviado, mas com uma palidez que não desapareceu até aterrar e estacionar em frente do hangar.
- Que lhe aconteceu? - Perguntou o mecânico de aviões que ali se encontrava
- Nem queira saber - respondeu. Tive uma falha de potência sobre a cidade após ter feito uma picada durante algum tempo.
- Olhe lá! Nessa fase você não abriu o ar quente do carburador?
- Esqueci-me. Só o abri depois e quando o avião já falhava por todo o lado.
- Pois é! Sabe perfeitamente que há o perigo de formar gelo no carburador caso não proceda a essa operação. Não se esqueça que os erros se pagam caros, é fundamental cumprir as regras estabelecidas no manual do avião.
Marco António ficou pensativo. Um erro provocado pela inexperiência e falta de atenção poderia ter sido fatal. Foi uma lição para o futuro.

A cidade da Beira distava de Tete cerca de seiscentos quilómetros, distância que não era obstáculo para que ali se deslocassem com frequência, nem que fosse somente para passar um fim-de-semana. A estrada bem concebida e com rectas intermináveis, permitia manter uma velocidade constante, de modo que se tornava de certo modo fácil efectuar viagens longas e em pouco tempo.
Era Sábado, quinze horas. Findo o serviço, Marco António havia já combinado com um grupo de amigos irem passar esse fim-de--semana àquela cidade junto ao mar.
Com o depósito atestado do seu Austin 1000, a estrear, partiram de Tete. Para além dele, seguiam o Gonçalves, o Joaquim e o Marques.

(continua)


Contacto:
Leonido Frade

Edição de 2002

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