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2 5 DE ABRIL
"Toda a terra
ficará branca com a luz das estrelas e o céu será engolido pelas andorinhas"
Shaka Zulu a Dingane, seu assassino
O pide estranhou quando lhe pareceu escutar a voz do doutor Peixoto. O médico da família em
casa? A mãe o chamara? Parecia impossível, ela ter insistido naquela vontade. Desta feita, a maçaneta
da porta não rodou com educação. O pide entrou brusco e desmaneirado. Nem cumprimentou ninguém.
O médico e a mãe permaneceram de pé, trocando silêncios. Lourenço voltou atrás, sem modos, e puxou a
mãe por um braço. Conduziu-a para a sala contígua. - Como teve a ousadia de chamar o médico?
- Não é isso, filho. - Eu não lhe disse que não queria ser seguido? Não estou doente, mãe!
- Eu sei. Fale baixo, o doutor está a ouvir. - Então, mande-o embora! Vá! Mande-o ou mando eu,
à minha maneira! - E a tia Irene! - A Irene o quê? - Está grávida. Lourenço
não foi capaz de mais que um riso aparvalhado. A tia grávida? E engravidara de quem? A cabeça recolheu-se
entre os braços. Ficou, assim, irreactivo, durante um tempo. De súbito, seu corpo foi atravessado por
uma decisão. Levantou-se e apressou-se pelo corredor. A mãe ainda o tentou parar: - Não vá ao
quarto. Ela está a dormir. - Deixe-me, quero falar com ela. Lourenço evitou a mãe e entrou
nos aposentos de Irene. O médico e Margarida ficaram na sala. O quarto de Irene permanecia iluminado
apenas pelo silêncio. Uma magra fatia de luz escoava por entre os cortinados. No leito, a tia dormia
semidespida. Lourenço respira a custos. Custava a crer que aquele corpo tenha sido tocado. E por quem?
Certamente, um preto. Um cabrão, desses escarumbas. Sentado na berma do leito, o pide foi soerguendo
a combinação da tia. Seus dedos estremeceram, transgressores. Só então ele reparou nas tatuagens no ventre
dela. Se espantou: ela se marcou como fazem as pretas? A reprovação lhe fez crispar os dedos no
lençol. Onde será que ela tinha mais tatuagens? Suavemente, ele foi deixando a descoberto o colo, depois
os seios. Seus dedos, quase sem respiração, roçaram os mamilos de Irene. O peito de Lourenço estava mais
revolto que o mar em tempestade. A mão se apressava para lugares mais íntimos, descia por dentro das
roupas de Irene, penetrava os mais fundos recantos. De repente, ele sentiu um líquido escorrendo entre
os dedos. Não era o molhado do corpo dela, era um líquido mais espesso, preguiçoso. Se ergueu de um salto.
Contemplou, enojado, a própria mão. Sangue? Nesse momento, o médico Peixoto entrou de rompante
pelo quarto. Flagranteado, o pide escondeu as mãos por trás das costas. Se alterou, voz escaniçada:
- Não disse para me deixar sozinho? - É por causa da notícia... - Que notícia? -
Na rádio, dizem que houve um golpe de Estado, caiu o regime. Regime? Qual regime? Para ele não
havia um regime. Havia Portugal. A pátria eterna e imutável. Portugal uno e indivisível. O visitante
repetiu, como se duvidasse que o outro o tivesse entendido: - Foi um golpe, houve um golpe em
Lisboa! O médico soletrou as palavras, em extremosos cuidados de dicção. Depois, retirou-se, andando
de costas e em bicos de pés. Como se acabasse de anunciar um falecimento. O pide estava derrubado, vertido
dentro de si mesmo. Seus olhos estavam parados, o olhar ausentado deles. Reviu sua vida, num ápice: os
gritos da cadeia todos se acumularam, como se as celas se fechassem de um só golpe em sua cabeça. De
repente, um baque: é o corpo de seu pai caindo nas águas. De chofre, se levantam espumas, mas não são
brancas. Antes, são vermelhas. O pide não tinha alma para tanto. Levantou-se para enfrentar a visão.
Durante os tantos anos, seu pai disputou as nuvens como um pássaro. Agora ele tombava, fulminado por
nada a não ser o não haver céu. De um momento para outro, o corpo do pai boiava sobre o oceano e era
como uma sombra branca imensa, um lenço recobrindo todo o Indico. E tudo se calava, em sossego de milénios.
Finalmente, seu pai sofria sua última morte. Voltou a enfrentar Irene que permanecia adormecida.
Fechou a porta com cuidado e atravessou a sala com porte solene. Num canto, a mãe se tinha ajoelhado.
Lourenço se aproximou dela para a consolar. Mas foi sacudido pelas palavras dela: - Até que
enfim, aconteceu! Deus seja louvado. A mãe agradecia a Deus aquela tamanha desgraça? O juízo
da senhora teria sofrido um idêntico golpe de Estado? - Mãe, como pode dizer uma coisa dessas?
- Estou contente, sim. Nem pode imaginar como estou feliz. O pide sentou-se, combalido. Fosse
melhor receber a notícia de sua total orfandade? Lhe cabia suportar sozinho todo o peso daquele infortúnio?
A mãe parecia transfigurada. Ihuda, lhe segurou pelas mangas do casaco e puxou-o como se receasse que
ele não a escutasse bem: - A única coisa que eu quero é ir embora. Todos esses anos, esse foi
o meu sonho. E agora, Lourenço de Castro, só nos resta mesmo é ir embora. O filho não reconhecia
a progenitora. Ela crescera para um outro personagem, uma outra mulher nascera dentro do seu frágil corpo.
- Quando o teu pai morreu eu pensei que tudo tinha acabado. E que voltávamos para a nossa aldeia,
de onde nunca devíamos ter saído. Mas depois tu quiseste-o vingar, seguiste-lhe as pisadas, essa merda
da política. - Não acredito que esteja a usar essa linguagem, mãe. - Merda é pouco, filho.
Merda é pouco. É por isso que, por mais que nos lavemos, não há água que chegue para nos limparmos do
passado. Margarida se levantou. O filho parecia nem a reconhecer, os passos de sua mãe ensaiando
uma nova dignidade. Sem sequer lhe dirigir o olhar, ela ainda ordenou: - E vá lavar a mão, Lourenço.
Desta vez é sangue, mesmo. O português se apressa para o lavatório. O sangue, essa doença que
o persegue, tinge agora as suas mãos. E mais que as mãos, se ruboriza do pecaminoso gesto. -
Mãe, a tia vai perder o bebé? Pela primeira vez, Dona Margarida passa pelo corredor sem dar
atenção ao filho. Lourenço repete a pergunta. Displicente, a portuguesa responde: - Esse é um
assunto de mulheres.
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