A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



GLÓRIA DE SANT'ANNA



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Glória de Sant' Anna

Nasceu em Portugal e cresceu em Moçambique.
Está representada em Espanha, Inglaterra, África do Sul, Brasil, França, antiga Jugoslávia e Bélgica.
Incluída em Antologias e em livros de estudo.
Corresponde-se com Escritores Portugueses e estrangeiros.
É acima de tudo, Poeta.



ALGUNS TEXTOS

Moçambique - Malema(anos cinquenta)

A primeira a cantar é a perdiz.
E o sol surge lento por sobre as outras vozes do mato, que trinam, chilreiam, assobiam e arrulham, ou regougam.
Ao mesmo tempo há um sussurrar de arrasto - são os pés dos homens a formar fila para começar o trabalho da plantação.
Riane, do nome da serra onde há ametistas.
Alguns são peças de estatuária humana. Tranquilos e negros. Aguardam a distribuirão das alfaias, formando grupos chefiados por um "capitão".
À ordem do capataz que é branco e magrito e gagueja muito mais do que o habitual em presença do Agricultor - patrão(1) a fila põe-se em andamento pelos trilhos até ao tabaco, ao trigo, ao centeio, ao arroz.
Caminham calados de tronco nu e calção uns, outros de m'cota(2) que por vezes lhes toca os calcanhares com o balanço da cauda de um pássaro.
O que comanda os imensos hectares da machamba(3) é o tabaco.
Comanda pela extensão em si mesma e pela aliança com a chuva que vai incidir no humor do patrão - difícil quando os milímetros de água caídos do céu não chegam. E então sim. Então nem o capataz gagueja sequer. Não fala.
E claro que o trabalho dos homens não é escravo. Recebem semanalmente um salário na acepção corrente do termo, e na outra - a romana: alimentos e uma mão cheia de sal.
Na altura da colheita e da secagem das folhas de tabaco, aparecem sem que ninguém os chame, magotes de rapazitos vindos das aldeias perto. Vêm ajudar a fazer os molhos. Eles sabem que lhes será dado um saguati (4).
E como desde sempre, tudo se cumpre ao ritmo dos cantares de trabalho marcado pelo esboço da dança e de uma ou outra risada.
As enormes estufas recebem os molhos suspensos em bambus. E a partir daí o fogo é aceso para manter constante a temperatura nos termómetros. Os vigias não podem nem pensar em dormir durante os seus turnos.
E o Agricultor caminha para as estufas duas, três, quatro vezes por noite indiferente ao miar do leopardo.
Quando muito naturalmente alguém acende um cigarro em Nampula ali a mais ou menos duzentos quilómetros, ou até muito mais longe em qualquer cidade europeia, desconhece por completo o processo "tecnológico" que precedeu aquele gesto.
E por vezes até desconhece de todo o esplendor e a autenticidade do mato.
O calor humano. A partilha da fogueira. O silêncio.

(1)  Felismino da Fonseca, iniciador da cultura do tabaco em Moçambique depois de a ter estudado na Rodésia ( actual Zimbabwe ).
(2)  Tanga presa na cintura por um fio de corda.
(3)  Plantação, horta, fazenda.
(4)  Recompensa, neste caso dada em comida.


Moçambique - Cabo Delgado (anos sessenta)

A noite está tranquila de mar manso que sussurra. O silêncio instalou-se no trinar dos insectos. Tudo se prepara para o sono deslizante e indefeso.
O anúncio chega inesperado. Há feridos junto do Rovuma, o rio fronteira ao norte. Das transmissões pede-se incessantemente um avião da OCAPA(1). E a torre de controle do aeroporto, que se ergue pintada de muito feio a substituir já de cimento a antiga palhota do Alto Jingone, a torre mantém-se em "stand by".
A organização de carreiras aéreas tem a finalidade de manter rotas diárias de transporte de passageiros, bagagem e correio em todo o Cabo Delgado. E faz implicitamente a aproximação de populações isoladas no tempo das chuvas quando as estradas se tornam quase ribeiras ou passadeiras de matope. Quando toda a baixa do rio M'salo se alaga e o batelão preso por cordas é uma jangada inútil.
Há pequenos campos de aviação e o cuidado de os manter operacionais.
Porém a OCAPA não foge a pôr no ar o transporte indicado para casos urgentes.
Mas qual dos pilotos acede a ir a esta hora pelo escuro a dentro até à zona referida?
Qualquer deles o fará. E vai o que é solteiro(2) que espontaneamente se oferece. É um excelente piloto e a camaradagem na orgânica da empresa é verdadeira.
A noite desdobra-se morna, preguiçosa, de uma beleza intensa e insensível.
Os apelos mantêm-se a um ritmo angustiado. Estão dadas as coordenadas do lugar. Não há grande extensão de campo aberto. Há árvores. O piloto não conhece o terreno.
O avião está na pista. Descola. O piloto pede o máximo de faróis, lampiões, luzes que iluminem o local e incidam na margem do Rovuma, no limite da água.
Mantem-se constante o contacto pela rádio: frases breves. Interrupções. Perguntas.
O tempo toma uma pesadíssima e incalculável medida.
E do meio da noite o aviso:
"É aqui. Vou aterrar. Seja o que Deus quiser."

Pela madrugada é o regresso. A ambulância espera.
Todos estão cansados
Cansados os que intervieram neste voo cego.
Cansados os que todos os dias ao nascer do sol olham o fio branco do horizonte e com raiva ou amargura mas sem palavras, votam ao fim da guerra.

(1)  Organização de Carreiras Aéreas de Porto Amélia, empreendimento pioneiro da iniciativa do Arquitecto Andrade Paes. Operava com dois monomotores e um bimotor "mininor". Fazia também intercâmbio com os aviões bimotor da empresa de Mr. Lebret (das Ilhas Comores), para promoção do turismo entre Moçambique e essas Ilhas.
(2)  José Quental - ex piloto da Força Aérea Portuguesa.


Moçambique - Cabo Delgado

A Escuna Angra é um marco histórico navegando o mar no reinado de D. Pedro V, para as terras de Cabo Delgado ao norte de Moçambique.
Comandada por Jerónimo Romero, l ° tenente da Armada, leva consigo sessenta colonos que irão fundar a colónia agrícola de Pemba, em 1857.
Mãos amigas fizeram chegar até mim um livro sóbrio que relata o facto.
Baseia-se ele essencialmente na adenda à memória descritiva de Jerónimo Romero, e na recolha da tradição oral de toda a região que abraça a baía de Pemba.
É seu autor Luís Alvarinho nascido em Pemba em 1959 .(1)
Este jovem que na sua meninice por certo correu pela orla das ondas, colheu búzios na praia do Wimbe, bebeu sumo dos cajus, trincou maçanicas e jambalão:
              e na sua juventude se sentou frente aos microfones do Emissor Regional de Cabo Delgado, cativado pela magia e o poder da Rádio:
              este jovem, também ele elemento de mudanças políticas, inicia com o livro "PEMBA, SUA GENTE, MITOS E A HISTÓRIA- 1850 /1960", datado de 1991, um caminho de pesquisa etnográfica e política das terras de Cabo Delgado - Pemba - nos séculos XIX e XX.
Da recolha oral conta o autor uma terna história que transcrevo:
"em anos muito recuados da nossa história a baía de Pemba era frequentada apenas por alguns pescadores malgaches e swailis que em suas pequenas lanchas e pangaios arrecadavam o alimento sem nunca ali se fixarem.
Conta então uma antiga lenda que por essa altura uma de tais embarcações apanhada por um temporal naufragou tendo como sobrevivente uma mulher que se viu obrigada a procurar algum refúgio nas proximidades da baía.
A mulher importante (NUNO em língua local) conseguiu sobreviver e montar aí a sua guarita.
Naturalmente conotada a NUNO pelos pescadores como "mensageira divina" demonstrando que a zona poderia ser perfeitamente habitada, ela fê-los seguir o seu exemplo."
Esta obra com a qual me congratulo, não apenas pelo valor que tem, é uma pedra angular no espaço das letras moçambicanas.
Como o próprio autor diz em nota introdutória, "este trabalho não tem pretenções de um rigor histórico, como talvez se possa interpretar. A pesquisa histórica com certa sistematização poderá, isso sim, permitir identificar as raízes do local e da sua gente...
A principal motivação para este empreendimento, foi precisamente a de preservar a tradição oral de Pemba, já bastante perdida."

(1) - Foi meu aluno no ensino secundário e faleceu alguns anos depois de ter escrito este livro histórico a que se refere esta crónica.


Moçambique - Cabo Delgado (anos sessenta)

O maior embondeiro é o da Cumilamba o bairro de caminhos de areia onde o mar se desfaz deixando búzios e restos de algas.
É enorme.
E o largo tronco desproporcionado assenta em raízes grossas que se afundam poderosamente sugando o que será depois folhagem pequena e frutos para usar no caril.
Quando se passa parece que se evola do vegetal gigante uma aura tranquila e protectora.
Como se nos visse e nos cedesse um mínimo da sua alma de tempo.
Os nativos consideram os embondeiros árvores sagradas. Acontece verem-se presos aos troncos rectângulos de pano branco e logo abaixo no chão uma tigela com oferendas - em lembrança de alguém.
Não se cortam ramos de embondeiro para a fogueira. Apenas os frutos são colhidos porque no alimento haverá comunhão com a árvore.
Contaram-me que uma vez um administrador se predispôs a alargar uma estrada.
(Seguiria ela mais ou menos o traçado da picada marcada pelo alferes Campeio que sob as ordens do comandante de Marinha Jerónimo Romero - fundador da colónia agrícola de Pemba - escolheu o lugar estratégico para a construção de um fortim hexagonal na ponta de Miranembo, um dos fechos da Baía).
A aspiração do administrador ia colidir com a existência de um embondeiro.
E os nativos recusaram-se a cortar a árvore.
O administrador que não estava a pedir mas a ordenar, ignorou as frases de "Embondeiro castiga quem o corta". E o embondeiro foi cortado. Só que ao cair apanhou o administrador, matando-o.
Posso considerar este facto como uma lenda. Mas esta lenda contém a forma de aviso usada por muitos nativos quando contam uma história que tem como intenção ensinar outro a não prejudicar a cadeia ecológica e a respeitar a mitologia própria da sua cultura.
Mitologia essa pela qual fui abrangida.
Ao fundo do quintal da minha casa, perto do muro, nasceu uma planta para mim completamente desconhecida. Uma arvorezinha. E só reparei nela quando ela teria mais ou menos a altura de um dos meus filhos mais pequenos.
Encostei-me ao muro a olhar. E não havia ali nada de parecenças com as outras árvores - mangueiras, papaieiras, ateiras, amoreiras... Nem com a árvore de St.° António do jardim e muito menos com as casuarinas.
Maçanica? A bravia de frutinhos em forma de maçã e de cujas folhas os coelhos e os cabritos gostam? - Não.
Jambaloeiro cujos frutos parecem azeitonas e deixam a língua azul? -Não.
Uva de macaco? Nem pensar.
Mandioca? Também não.
Chamei o Domingos, o guarda hortelão.
"Diz-me - que planta é esta ?"
Ele olhou-me com uma sombra de sorriso e não respondeu.
"Então? Também não sabes?"
"Sei, sim. Esta é a planta de Embondeiro"
"Como assim? Donde é que podia vir ter aqui um embondeiro?"
O Domingos pacientemente fez uma sugestão: "Quando Malia vem à tarde e traz fruto de embondeiro para juntar no caril, espalha semente por aí. Alguma foi essa."
Malia era a mulher de Domingos e ambos viviam ali e ali acendiam a fogueira. Lugar morno e calmo para conversar antes de dormir.
Tornei a olhar para ele e para a planta.
Havia na expressão da face dele qualquer coisa que me escapava. Como se entre o seu olhar e o seu sorriso estivesse o embrião de uma conjura.
"Tens a certeza?"
"Sim senhor."
Surgiu-me o pensamento de certa forma idiota e ridículo: "Já terei morrido há milhares de anos quando este embondeiro for igual ao da Cumilamba. Mas antes disso vai-me deitar abaixo o muro."
Fitei o Domingos e com uma carga de desconfiança que ele nem merecia, disse-lhe:
"Vai lá buscar a enxada."
Percepcionei nele uma hesitação muito intensa. Mas foi e trouxe a enxada já sem a mais pequena sombra de sorriso.
Começou a cavar.
E foi um espanto para mini a fundura a que iam as raízes, a força com que se agarravam, a quase elasticidade do pequeno tronco que era empurrado e voltava ao mesmo sítio.
A verdade é que não se conseguiu tirá-lo.
"Deixa lá - disse eu. Deixa lá."
De repente o Domingos começou-se a rir.
"Senhora viu? Senhora viu que ele não quis sair? Pequeno e tudo ele não quer sair deste quintal. Embondeiro é assim. Só nasce e fica onde quer. E ele quer ficar da família deste quintal."

O que pode uma pessoa contrapor a uma verdade circunscrita à enorme força anímica de um país onde um ser humano acredita que um embondeiro a escolheu?


O Fio de Amizade - Lisboa (anos oitenta)

Eu já tinha visto lá adeante por sobre as cabeças que se movem os olhos azuis do Mia.
Há um aceno.
Está muita gente.
A Teresa aproxima-se feliz no ambiente da inauguração da exposição dos seus quadros, em que aqui e além por entre os outros, há pássaros bizarros de outra dimensão.
"Venha cá. Olhe o Rui Nogar."
Todos nos conhecemos de nome, mas por vezes não em pessoa.
É o caso. A curiosidade é reciproca.
Ele tem um rosto calmo de curvas cheias, onde se reflecte uma espécie de serenidade fugidia. A face é de um suave bronze claro. Uma poalha de cabelo branco.
Quebro o momento:
"Está sempre em Lisboa?"
"Nem sempre."
"Alguém me disse que está com um trabalho sobre literatura."
"Sim. Estou a fazer, estou a preparar um estudo literário para Moçambique. Mas as recolhas, as pesquisas, as análises comparativas, tudo leva tempo. Mais tempo do que se prevê.
Mas quando vem alguém de lá e queira fica em minha casa.
Hoje chegou o Mia."
"Eu sei. Estou a vê-lo. Vem aí."
Entretanto a Teresa já deambula por entre os visitantes.
Sorrio ao Mia - que ainda recordo pequeno, em algumas das minhas breves idas do norte à Beira.
"Agora estou na Inhaca, diz ele. Troquei medicina por uma defesa de tese em biologia. A Inhaca precisa de cuidados urgentes. O mar faz uma grave erosão na Ilha. Há que estudar a maneira de a deter antes de dez anos..."
O Rui Nogar escuta. Eu escuto enquanto vou pensando no que de esforço, paciência e tecnologia serão precisos para não perder a Inhaca. Porque isso me comove digo de repente:
"Plante pinheiros!" •    O Rui exclama: "Isso não..."
E o Mia, rápido, corta a possível súbita associação de ideias:
"Nada. Ela está-me a picar."
A conversa suspende-se em risos.

Foi assim que vi o Rui Nogar pela primeira e última vez.
Soube que ele morreu.
Quem mo disse chorava.
É a partida. O vazio. A ausência.
Mas o fio indefinível da amizade que une os poetas, permanece.
Seja onde for, permanece.

Edição DE 1999

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