A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



COSTA MONTEIRO



O PODER DE COMPRA


Para as populações rurais de Moçambique, como em outras regiões de África, o dinheiro não é encarado da mesma forma como nos chamados "países desenvolvidos". Colhe-se directamente da terra uma parte significativa dos bens essenciais. Vai-se ao mato cortar paus e apanhar capim para construir a casa. Na machamba, cultiva-se a mandioca, o milho, a mapira e o feijão. Na caça e nas armadilhas, sempre se vai apanhando um coelho, uma gazela, ou mesmo um javali. No capim seco dos telhados, crescem enormes ratazanas que, chamuscadas ao lume e fumadas, dão um bom petisco. Depois das chuvadas, apanham-se formigas com asas, um verdadeiro marisco campestre para assar na chapa. Quando o caju está maduro, às escondidas dos "administrativos", destila-se a cachi-pemba1. Os rios são abundantes em peixe. Das cascas das árvores e das folhas do sisal fazem-se cordas e tecidos.
Não é que se viva na abundância. Nem tudo são rosas, e as carências muitas vezes são enormes. Basta pensar nas incertezas provocadas pela própria natureza, com as suas secas prolongadas por um lado, fortes chuvadas por outro, e consequentes destruições de casas e lavras. As doenças, os perigos da floresta, os incêndios, os animais selvagens, as cobras venenosas, os feitiços, a guerra, enfim, um sem-número de coisas fazem "pessoal sofrer muito no mato".
          O dinheiro em forma de moeda, invenção dos brancos, serve sobretudo para adquirir "coisas de branco". Mas, diga-se em bom abono da verdade, que para as gentes do mato, não lhes resolve nada de verdadeiramente essencial. Viveu-se sem moeda durante milénios e não é de um dia para o outro que o sistema de trocas de produtos tradicionalmente comerciáveis se vai ocidentalizar. Esses, continuarão a ser também trocados.
Mas o contacto com civilizações mais poderosas (e pouco preparadas para esperar que a história africana siga os seus próprios caminhos) tentou impor novos hábitos, novas necessidades, novos padrões. O comércio passou a obedecer a novas regras. Sem dinheiro, os produtos apetecidos da civilização ficam fora do alcance, mesmo que quem os compre não necessitasse verdadeiramente deles. O que interessa é que os negócios continuem de vento em popa. Tudo em abono da dita civilização.
Havia portanto que modificar este estado de coisas. Havia que civilizar os nativos. No mínimo, fazê-los entrar no jogo da produção e do consumo. Para isso, era necessário criar-lhes poder de compra. Era fundamental adquirirem hábitos de trabalho que lhes proporcionassem rendimentos, fora do quadro da simples e tradicional subsistência.
Obrigaram-se assim as gentes a trabalhar mais e melhor, e fizeram-se nascer enormes palmares, plantações de chá, algodão, caju, sisal, arroz, algodão, cana-de-açúcar. Em certos casos, forçaram-se populações a abandonar as suas lavras de subsistência e fazer, elas mesmo, "culturas de rendimento" de produtos agrícolas comerciáveis. Que cultivassem sem receio o que não comiam, porque depois o dinheiro iria satisfazer-lhes todas as necessidades.
O dinheiro, a moeda, seria assim um dos primeiros degraus para o progresso e consequente felicidade.
Com ele, podiam comprar-se sapatos, roupas "de branco", utensílios domésticos mais práticos e duradoiros, viagens de autocarro. Os mais afortunados até compravam enormes telefonias, garridas e fáceis de transportar de tão leves que eram... Só é pena que no mato as pilhas durassem pouco. Eram compradas nas cantinas e deviam ser das melhores, porque o cantineiro as tirava, ele mesmo, do seu rádio! Lá em casa, parece que quase tudo funcionava a pilhas...
Mas o mais apreciado era o vinho, ou melhor, a "água de Lisboa".
- Água de Lisboa é bom mesmo! O pessoal fica com "cabeça grande" e petece fazer coisas que não lembram ao diabo.
Um dia, conversando com um trabalhador de uma plantação, perguntei-lhe se achava que ganhava pouco.
- Isso não sabe, senhor. Trabalho é que é muito. Reformulei a pergunta:
- Então você não gostava de ganhar mais?
- Sim senhor. Gostava muito mesmo.
- E então o que é que você fazia com mais dinheiro?
Ele, com um sorriso malicioso:
- Comprava mais vinho!
Na realidade, este singular benefício da civilização não escasseava nestas paragens. E, como os consumidores não eram propriamente escanções, a qualidade, origem e método de fabrico da "pomada" nem sempre eram controlados com grande rigor.
Para a venda deste duvidoso líquido, lá estavam as famosas cantinas do mato. Estes estabelecimentos comerciais, com as suas inevitáveis virtudes e defeitos, constituíram um meio eficaz da penetração de outros povos no interior africano. O cantineiro, europeu ou monhé, aventurava-se pelo mato adentro estabelecendo o seu negócio em locais onde, às vezes, poucos se atreviam a passar.
          Uma cantina do mato era um mundo. Compravam produtos agrícolas aos nativos, e vendiam um pouco de  tudo. Mercearias, frescos, bebidas, produtos farmacêuticos, electrodomésticos, bicicletas, candeeiros a petróleo, combustíveis e lubrificantes, roupas, calçado, enfim, uma infinidade de coisas que só vendo. Um regalo para a imaginação!
O cantineiro era reconhecido pelas populações nativas como elemento necessário e importante na ordem estabelecida e era em regra pessoa estimada, respeitada, mas também cobiçada. Alguns pagaram com a vida a ousadia de se estabelecerem em pleno sertão. Originário de camadas menos favorecidas do país de origem, era acima de tudo um aventureiro. Há quem diga que o cantineiro e a catana construíam os alicerces da civilização em África, na era do colonialismo. Não vendia fé nem império, bem entendido, mas também não vendia moral, preconceito, política, intolerância e hipocrisia.
Só que as cantinas ditas "particulares" nem sempre ficavam à mão dos trabalhadores das grandes explorações agrícolas, que cobriam áreas enormes e tinham aldeamentos próprios. Era por isso forçoso autorizar essas empresas a explorarem as suas próprias cantinas. Aqui, por vezes, o esquema era um pouco diferente. Os trabalhadores recebiam alimentação em espécie e, além disso, as suas mulheres eram normalmente autorizadas a fazerem o cultivo de produtos tradicionais, em áreas para o efeito reservadas dentro da própria plantação. Assim, o dinheiro que recebiam servia na quase totalidade para comprar as tais coisas de branco. Desta forma, a cantina da firma recebia de volta grande parte dos salários. Mas o pior de tudo é que, embora ilegalmente, estes salários eram por vezes pagos, longe dos olhares das autoridades e dos curiosos, sob a forma de vales, a descontar apenas na tal cantina...
          Aqui, por vezes, deparava-se com um espectáculo inédito. Quase só se viam inutilidades e artigos de proveniência e qualidade duvidosas. As roupas pareciam quase todas de fardo, e o resto não passava de artigos de refugo, verdadeiros monos dos estabelecimentos da cidade. Embora não faltasse a famosa água de Lisboa, esta só podia ser vendida ao domingo. É que "cabeça grande" durante a semana prejudica o trabalho!
Entra um cliente. É um trabalhador, de chapéu de plástico amarelo na cabeça. Veste uma espécie de gabar-dina do mesmo material, em mau estado, que lhe foi distribuída pela empresa. Calção curto, sujíssimo, de cor indefinida, a esfiapar-se nas pernas. Pé descalço.
- Um cafeteira.
- Acabaram-se as cafeteiras. Só para a semana, se a camioneta for à cidade.
- Hoje vou na minha terra. Meu mulher quer um...
- Já te disse que não tenho. Compra outra coisa.
- Quer sapato.
- Também não há sapatos.
- Hoje vai na minha terra. Quer levar uma coisa - estende a mão e mostra - tem aqui maningue2 vale.
- Se vais à terra, por que não levas um sobretudo? Olha este, é maningue chibante3. Custa só trezentos escudos. O senhor administrador até tem um igual!
Os olhos do pobre homem brilharam de contentes. Um sobretudo, como o do administrador...
          A transacção foi rápida. Tirou o casaco de plástico, e vestiu aquele luxo, que nunca imaginara vir a possuir. Era cor de tijolo claro, com a parte de trás da gola forrada a veludo preto. Embora parecesse usado, diga-se em abono da verdade que estava em bom estado. Teve, no entanto, que dobrar um pouco as mangas para poder ver as mãos. Quase que lhe dava pelos pés.
          Vaidoso com sua elegante indumentária, saiu da loja, à torreira do sol, todo contente. Levava os botões apertados, para esconder o que levava por baixo.
          Na cabeça, o mesmo chapéu amarelo. Pelo chão escaldante, dois enormes pés descalços avançavam firmemente em direcção à paragem da camioneta da carreira.

1 Bebida fermentada muito forte.
2 Muito.
3 Bonito, vistoso.


ADEPTOS DO MAIS FORTE


- Olha para aquilo, nunca vi uma manada tão grande.
- Chut, pouco barulho.
Duas pancadas no tejadilho do unimog eram o sinal para o condutor parar o motor e apagar os faróis. Era necessário que os animais não dispersassem a atenção por várias luzes, e fixassem apenas a do farol de caça. Na noite de breu, centenas e centenas de olhos brilhavam e piscavam como se fossem as luzes de uma cidade. Paralisada pela curiosidade, a imensa manada não conseguia deixar de fixar a luz que a encandeava.
Por cima da lona da cabina do unimog uma mauser com o ponto de mira pintado de branco apontava para o par de olhos que lhe ficava mais a jeito. Um tiro. O estampido repercutiu-se pela savana, como um trovão, seguido de um tropel imenso que diminuía à medida que se afastava.
Acesos de novo os faróis, a viatura avançou cautelosamente até ao local onde se presumia que estivesse a peça abatida. Quatro auxiliares negros saltaram da caixa de carga.
- Cuidado, que pode estar ainda viva. Os cascos cortam como navalhas de barba.
Com efeito, uma gazela estrebuchava no chão. Para se evitar mais barulho, em vez do habitual tiro de misericórdia, um dos auxiliares acabou com a vida do animal, com uma estocada no alto da cabeça, de modo a atingir o bolbo raquidiano. Era a forma mais rápida, menos dolorosa e menos arriscada, que evitava os movimentos bruscos dos cascos.
A caçada prosseguiu pelas savanas do Chire, junto à fronteira com o Malávi, nas margens do rio Chilomo. Andava-se ao acaso, farolinando à esquerda e à direita evitando as poucas árvores que havia. Avançava-se cautelosamente através do capim já quase seco, donde se levantavam nuvens de mosquitos que nos picavam sem piedade nos braços e, sobretudo, nos tornozelos, onde a pele é mais fina.
De vez em quando, um ou mais pares de olhos brilhantes espreitavam curiosos a estranha luz que brilhava no escuro. De vez em quando, um tiro certeiro. Os animais iam tombando, vítimas da sua própria curiosidade e da pontaria e serenidade do atirador. Por sua vez, o farolinador, ao avistar as suas vítimas, abanava o farol para atrair a sua atenção.
- Vinte e duas gazelas já devem chegar para aquela gente toda passar o dia. Espero que tenham trazido mandioca e mapira para encherem a mula. Caso contrário, não vão ter forças para aplaudir a nossa equipa.
- Vamos embora, que ainda morrem à fome antes do jogo - disse o condutor. - Por onde seguimos?
A pergunta era pertinente. Depois de quilómetros e quilómetros às voltas, à procura da caça, ninguém sabia ao certo onde estava. O terreno estava cheio de marcas dos rodados da viatura e nem os próprios nativos sabiam para onde ir. Vira para aqui, vira para acolá, mas sempre o mesmo déja vu, se é que se via coisa de jeito. De noite, na savana, todos os locais se assemelham. Havia que esperar pêlos primeiros sinais do dia. Depois, era mais fácil. Seguir em direcção ao Sol, de costas para o rio, que não se sabia ao certo onde ficava. Finalmente, ao encontrar a picada principal, virar à direita e seguir para o Chire.
Chegámos ao nascer do Sol. Na povoação ainda ninguém se tinha deitado. O batuque começado na véspera não parecia que estivesse para acabar. Milhares de nativos dançavam ao som de tambores e instrumentos gentílicos, num ritmo infernal e irresistível.
Sentia-me exausto, depois de mais de vinte horas de solavancos por más picadas e em todo o terreno. Na véspera, tinha sido a interminável viagem de jeep por más picadas, desde o Tacuane até ao Chire, com passagem pelo Liciro e Metolola. Um estirão. À noite, não resisti ao convite para assistir a uma caçada numa das melhores regiões de caça que havia em Moçambique.
Deitei-me para dormir um pouco, depois de ter matabichado* uns bifinhos de gazela acabada de caçar, acompanhada de ovos mexidos. Adormeci a coçar as picadas dos mosquitos ao ritmo do batuque, e sonhei com a inesquecível paisagem da savana vista do alto de Metolola. Imagens inesquecíveis mas misturadas com antílopes a piscar os olhos luminosos, mas, como de costume, a acção acabava nos locais onde passei a minha infância...
O jogo era às quatro da tarde. Logo de manhã, o campo de futebol ficou rodeado de uma moldura humana de espectadores que, desde a véspera, não abrandava o batuque. Iam defrontar-se as equipas militares de Morrumbala e da casa. O jogo era decisivo para o campeonato, e uma boa massa apoiante podia dar a volta ao resultado. Foi assim que o comandante da tropa estacionada no Chire resolveu convidar as gentes das aldeias da região, para assistir e apoiar a sua equipa. As instruções eram para só aplaudirem as avançadas dos jogadores que envergavam as cores da casa, camisola verde e calção preto. A distribuição da carne de gazela era apenas um pequeno incentivo...
À hora marcada, o árbitro, médico militar do Tacuane e meu companheiro de viagem, apitou para o começo do jogo. Avançada de um lado, contra-ataque do outro. Lateraliza daqui, corta dali. Esférico de um lado para o outro, para cima e para baixo. Pontapés, cabeçadas, centros, remates e defesas. As coisas pareciam equilibradas. Muito nervosismo de parte a parte, com algumas sarrafadas à mistura, prontamente assinaladas pelo árbitro, que não dava tréguas ao apito.
Quanto a aplausos, tudo bem de princípio. Os "convidados" seguiam a preceito as instruções dos que, propositadamente espalhados por todo o lado, comandavam a incomensurável falange de apoio. Sempre que os verdes se apossavam da bola, era uma gritaria infernal. A equipa visitante parecia, cada vez mais, fraquejar, esmagada pela força daqueles tifosi improvisados. Mas, nem tudo são rosas. Ao intervalo, o empate a zero bolas mantinha-se.
Mal recomeçou o jogo, a bola caiu na posse da equipa da casa. Pontapé em profundidade até à grande área, bola passada para a direita, cruzamento, centro, cabeçada e golo!
Um a zero para os verdes! Um zero para os da casa! Até que enfim! É o delírio, e o campo foi invadido pela multidão exultante. O jogo teve que ser interrompido e só muito a custo se conseguiu convencer aquela gente toda a voltar aos seus lugares. Restabelecida a ordem, a partida prosseguiu.
Os da casa, confortados pelo resultado e sentindo--se apoiados pela imensa claque, remeteram-se à lei do menor esforço, ou seja à defesa. Bastava-lhes segurar o resultado. O jogo estava "no papo", e só faltava esperar pelos três apitos finais. Era canja...
Mas, para a equipa visitante, o golo sofrido foi uma "chicotada psicológica", conforme se diz no meio futebolístico. Enraivecida pela injustiça de se verem confrontados com uma claque comprada pelo adversário, ganhou forças e passou a dominar a situação. A disputa passou a fazer-se quase apenas no meio campo adversário que, apanhado de surpresa, entrou em pânico e pontapeava, desnorteado, a bola para todo o lado, para aliviar a pressão.
A claque começou a vacilar nas suas simpatias. Em África, aprende-se a respeitar a força. O contacto íntimo com a natureza, coloca as pessoas perante a dura realidade, onde o mais fraco é condenado a perder. A lei da selva é a lei do mais forte. A própria evolução das espécies é o resultado da vitória do forte sobre o fraco. Conceitos morais como a razão, a fidelidade, a gratidão, são produto de sociedades mais complexas e evoluídas, e muito mais humanizadas. Aplaudir o fraco não faz sentido aos povos africanos.
À medida que o jogo prosseguia e os golos do adversário iam entrando, o feitiço ia-se virando contra o feiticeiro. Os aplausos passaram-se assim para a equipa que, dominando os acontecimentos, evidenciava a sua força.
Acabado o jogo, para o espanto e surpresa dos presentes, a assistência, indiferente à derrota daquela que devia ser a "sua" equipa, galvanizada pela vitória do mais forte, prolongou a festa e o batuque até às tantas...

1 Tomado o pequeno-almoço.


O MILAGRE DE MONSENHOR LIRÁ


A irmã Maria Teresa encontrava-se deitada na cama com um forte ataque de paludismo. À porta do quarto, a Domingas, uma auxiliar de enfermagem moçambicana, chamava-a insistentemente:
- Irmã, a Beata vai ter minino. Está muito mal. Vai morrer mesmo!
Maria Teresa tentou levantar-se, mas em vão. Caiu da cama. Tinha a roupa vestida, mas completamente molhada de suor. Tremia violentamente de frio, e as dores no corpo eram insuportáveis.
Era natural de Lamego, da remota aldeia da Póvoa, nas serranias que dão para Castro Daire. Andava quase pelos sessenta anos, mas parecia ser muito mais nova. Não sendo bonita, era uma figura agradável. Tinha um ar fresco e limpo de sabor campestre, e nunca regateava um sorriso.
Filha única de um casal de lavradores, fez-se franciscana por causa de um amor contrariado. O convento foi o caminho que escolheu para esquecer o desgosto, e encontrar nova justificação para a vida. O muito amor que tinha para dar, distribuiu-o pelas inúmeras crianças que trouxe ao mundo, assistindo as mães nas ânsias do parto.
Trabalhou quase exclusivamente em África. Primeiro em Moçambique durante a administração portuguesa, depois na Guiné, e finalmente em Moçambique, já depois da independência.
- Irmã, vem depressa, senão Beata morre.
A Beata era uma boa mulher que morava perto do hospital. Era conhecida e estimada pela sua permanente boa disposição e disponibilidade para ajudar no que fosse possível. Casada com um antigo chefe guerrilheiro, o Pedro Cavalo, mudou-se para a capital, depois da independência. Através do marido, que desempenhava um cargo político, conseguiam-se muitas coisas que faziam falta numa casa repleta de doentes.
Era de Muidumbe, terra distante da região de Mueda, o coração dos macondes moçambicanos. Durante a guerra foi capturada pela tropa, mas nunca revelou ser casada, para não dar informações sobre o marido. Viveu cerca de dois anos com uni sipaio, com quem fingiu casar, e de quem teve um inevitável filho. O pai desta criança morreu numa emboscada em Miteda, na estrada para Mueda... Só voltou ajuntar-se ao verdadeiro marido, quando a guerra acabou.
Via-se que devia ter sido muito bonita em nova. Como maconde que era, tinha a cara tatuada na testa, maçãs do rosto, queixo e peito. No entanto, não usava o tradicional n'dona e, portanto, não tinha o lábio superior furado nem os incisivos partidos. Já tinha uns quarenta e tal anos e estava à beira de dar à luz o seu sexto filho.
Mas as coisas corriam mal. A idade não ajudava, a criança não deu a volta, a bolsa das águas tinha rebentado, e há dois dias que estava a perder sangue. Sentia-se exausta, e muito enfraquecida. A falta de condições do hospital de Maputo agravava a situação.
Maria Teresa, ajudada pela Domingas, conseguiu erguer-se e sentar-se cama. Era a única parteira que, de momento, se encontrava disponível. Há dois dias que tinha tido um primeiro ataque de paludismo mas, mesmo assim, lá ia dando conta do recado. Faltava quase tudo mas, com muita paciência e sacrifício e unias cunhas ao Pedro Cavalo, ia-se evitando o pior. Nas últimas horas, sofrera um novo ataque da doença, com uma violência que nunca tinha sentido antes. É que os medicamentos para o paludismo estavam esgotados há dias, e não se sabia quando voltariam a ser recebidos. Sem eles, não havia maneira de fazer parar os acessos regulares da doença.
A parteira fez um último esforço. Tentou levantar--se mais uma vez, e fixou os olhos num pequeno quadro na parede com uma fotografia de Monsenhor Lira, de quem era muito devota. Era uma fotografia a preto e branco que mostrava o santo - não tinha dúvidas que era santo - com um ar sereno, os olhos distantes por detrás de uns óculos sem aros. Nas mãos, um livro que exibia um crucifixo na capa. Os cabelos, iluminados por trás, tinham um brilho místico, como se fosse uma auréola de santidade a envolver-lhe a cabeça... De olhos fechados, suplicou-lhe por tudo que a deixasse ir salvar aquela mãe aflita, mais a criança que estava para nascer. Além disso, a Beata fazia imensa falta.
Abriu os olhos e, em vez da Domingas, tinha à sua frente Jesus Cristo em pessoa. Reconheceu-o imediatamente. Apresentava-se tal e qual como sempre o imaginara. Uma bela figura de homem. Rosto comprido, a barba arruivada partida no queixo, e longos cabelos castanhos e ondulados apartados por um risco ao meio da cabeça, caindo até aos ombros em formosos cachos. Os olhos eram de um azul fascinante. Tinha um olhar meigo e um sorriso bondoso, mesmo fraternal. Vestia um manto de seda branco, atado na cintura por um grosso cordão, também branco. Nos pés, umas simples sandálias castanhas.
- Vejo que me conheceste. Não te surpreende eu ser tal como me imaginaste?
- Na verdade, não esperava. Perdoai-me!
- Não tem nada de mal. Eu gosto de aparecer tal como me imaginam. Assim, é mais fácil reconhecerem-me. Como sabes, posso ser e parecer todas as coisas. Tal como o Homem, tudo é feito à minha imagem e semelhança.
 Maria Teresa ao pressentir que a conversa se iria demorar, olhou instintivamente para o relógio. A Beata esperava-a...
- Não tenhas pressa, mulher; deixa-me estar um pouco contigo. É que neste momento, para nós, o tempo está parado; tem um pouco de paciência! Eu sei que estás ansiosa, eu sei...
- Sim, a Beata...
- Não me esqueci dela. É uma boa mulher.
A Irmã respirou de alívio com esta resposta. Estava certa de que Monsenhor Lirá tinha intercedido por ela. Assim tudo iria correr bem...
- O que estás para aí a pensar? No tal... Monsenhor?
- Sim. Estou-lhe muito agradecida.
- Pois estás muito enganada. Lira não é santo nenhum!
Colocou-lhe a mão no ombro, e continuou em tom apaziguador:
- Não te apoquentes, porque Lira, em seu devido tempo, vai viver comigo... Mas não por agora. Ainda tem umas contas para acertar...
- Mas então, a obra que deixou? - perguntou Maria Teresa, tentando defender o seu santo. - Não vai pesar na balança?
- Isso a que chamas obra não cassou de um projecto megalómano de promoção pessoal. E um autêntico lobby no Vaticano! Já não me bastam os Jesuítas... Não te esqueças que esse homem só se aliou aos ricos e poderosos. Era só aí que recrutava os seus aderentes. Até conseguiu ser Marquês! De vaidoso que era, juntou os dois primeiros nomes para parecer mais aristocrático! Pretende que se chama Paulomaria, em vez do Paulo Maria com que foi baptizado... Que nome ridículo...
- Mas, Senhor, ninguém é perfeito - interrompeu a irmã, em defesa de Monsenhor.
Jesus continuou, ignorando a interrupção:
           - Eu erigi a minha Igreja com uma dúzia de pescadores. Tudo gente pobre e humilde. É aí que toda a semente deve ser lançada. Não precisei de banqueiros, de marqueses e de membros do alto clero para nada!
- E depois - prosseguiu -, a maneira como ele tratava as mulheres da obra era abominável. Todas elas inteligentes, mas quase que não passavam de criadas de servir. A massa cinzenta que ele desperdiçou!
- Na verdade - reconheceu Maria Teresa - mas... eu rezei a Monsenhor Lirá, não sendo ele santo, como é que estais aqui comigo?...
- Que é que isso conta? No meu Reino há um Totosanto para premiar apenas os que apostarem no santo certo. A minha justiça não funciona à base da cunha! Se a prece é de atender, não é o santo que me vai influenciar. Muitas vezes, nem é preciso pedir.
E em tom de despedida:
- Bom, basta de conversa por agora. Vai, minha filha, que estás no bom caminho. Qualquer dia chamo-te para a minha casa! Vai ajudar a nascer mais uma criança, que tudo vai correr bem. Adeus!
De repente, a imagem desvaneceu-se. Maria Teresa tinha ainda à sua frente a velha e devotada Domingas. A roupa estava seca, e sentia-se forte, cheia de energias. Parecia-lhe que alguém lhe tinha feito como que uma luz na alma, mas não se lembrava ao certo o que tinha acabado de se passar. Sabia apenas que há poucos minutos estava com um enorme ataque de paludismo. Tinha, no entanto, uma vaga sensação de que acabara de ter uma longa conversa com alguém... O Mundo e a vida pareciam-lhe agora fazer mais sentido e sentia-se muito mais confiante.
           Estava, no entanto, um pouco confusa, sem saber ao certo o que se tinha acabado de passar. Só se recordava que tinha rezado, com todas as suas forças, a Monsenhor Lirá...

Edição de 1996

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