A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



COSTA MONTEIRO



CHÁ E TOIROS


Depois de um ano em Muidumbe, acabar a comissão na Zambézia era como ir para o Paraíso. Era mais um ano de mato, sem os atractivos e distracções das cidades, mas sem as dificuldades da guerra. É que, só quem as viveu é que pode dar o devido valor à paz e tranquilidade.
Apesar de tudo, o nosso local de destino era lá para as longínquas montanhas do Tacuane, bem longe da civilização, na região do imponente monte Mabú, bem no meio duma enorme e pacífica plantação de chá.
Embora fosse necessário estar pronto para qualquer intervenção, o que poderia acontecer em caso de alteração da ordem vigente, ou necessidade de entrar em alguma operação em grande escala, a actividade operacional limitava-se quase a uma acção de presença numa vasta área, e a contactar e apoiar as populações.
Pequenas patrulhas percorriam, dias a fio, picadas mais ou menos impossíveis, de forma a chegarem a todas as povoações da região, por mais remotas que fossem. Quando chegavam às povoações, eram recebidas pêlos régulos, e instalavam-se no "quartel", uma enorme palhota construída de propósito para acolher a tropa, e onde havia compartimentos para cozinhar e dormir. A seguir, hasteavam a bandeira com pompa e circunstância. Os soldados perfilavam-se em formatura, e as gentes locais formavam em frente, em atitude de veneração e respeito. Finda esta cerimónia introdutória, os habitantes faziam fila para as mezinhas. O enfermeiro, conforme as queixas, ministrava então alguns medicamentos: aspirinas, analgésicos, pomadas, antitússicos, antipalúdicos, etc. Se alguém tinha ferimentos, fazia-se-Ihe um penso, tendo o cuidado de utilizar álcool como desinfectante. Isto, porque as populações acreditavam que só o que ardia ou fazia doer é que curava. Para eles, o máximo era uma injecção, de preferência dolorosa, mas isto era luxo que só acontecia quando o médico ia na patrulha. Nos casos mais graves, fora do alcance teórico do enfermeiro, transportava-se o doente ou o ferido até ao posto administrativo mais próximo, para ser tratado ou encaminhado para o hospital.
Durante a permanência na aldeia, conversava-se com o régulo, contactava-se com a população, compravam-se objectos ou armas gentílicas, para levar para o "Puto" como recordação. Os mais habilidosos na caça trocavam macacos por galinhas. A carne desses pequenos símios era um petisco para as populações nativas, e o seu abate um descanso para as lavras. E que os terrenos cultivados pareciam ser os locais preferidos, para as tropelias e destruições desses irreverentes antepassados da espécie humana.
Passada a patrulha, a vida no mato retomava o seu ritmo ancestral, com os seus trabalhos, usos e costumes. Nem o curandeiro notava a diferença na clientela, nem as mezinhas nem os feitiços dos brancos lhe faziam concorrência. Eram apenas um complemento à sua actuação. Feitiço de branco é mais um feitiço, e quantos mais melhor... Há que confundir as mentes, provocar o medo, a ansiedade, a necessidade e dependência da protecção do sobrenatural... É que só ele tinha o dom de influenciar os espíritos; é que só ele sabia a verdadeira causa das doenças, os feitiços envolvidos, os ritos, as palavras mágicas, as desgraças a profetizar, as recompensas do além, as oferendas a receber...
Na plantação de chá, dentro do conjunto de edificações que serviam de quartel, a vida decorria calma, embora trabalhosa, que tropa ociosa é tropa indisciplinada e inútil, seja para o bem, seja para o mal. Mas não era necessário inventar trabalho. Havia que preparar as patrulhas, havia que fazer a manutenção do armamento, já que, contrariamente ao ditado, é em tempo de guerra que se limpam as armas. Havia ainda que cuidar das viaturas, que sofriam um desgaste enorme ao circularem em terrenos e picadas tão difíceis. E, além do mais, um quartel dá sempre que fazer: melhoramentos, arranjos, pinturas, caiações, limpezas, capinações, etc.
Nos poucos tempos livres, praticava-se desporto, escrevia-se à família, liam-se os aerogramas vindos da Metrópole. Na escola improvisada, graduados tentavam enfiar o alfabeto e a tabuada na cabeça quase impenetrável de cerca de duas dezenas de soldados, a quem o destino ensinou a manejar a espingarda antes da caneta. Outros jogavam à bisca ou à lerpa e, nos intervalos, atacados pelas securas, molhavam as respectivas goelas com cerveja bem gelada.
Havia ainda quem passasse os tempos livres a ensinar habilidades de circo a uns pobres macacos, apanhados no mato, ou comprados nas aldeias. No meio deles, dos macacos, passeava-se o inesquecível Ambrósio, o intelectual do grupo, que era mais inteligente que o dono... Andava à solta, entretinha-se a atirar pedras aos passantes, e a fazer a vida negra a um pequeno cachorro chamado Tarzan, com as suas diabruras e provocações. Dentro dos seres humanos, manifestava uma nítida preferência por senhoras, em frente das quais se quedava extasiado. Questão de bom gosto.
Muitos dos "treinadores" desses macacos, desejosos de se fazerem acompanhar para a Metrópole pela sua obra educativa, tinham dois exemplares: um para morrer da vacina obrigatória e quase sempre fatal, outro para viajar com o certificado...
Durante as chuvas, se não havia muito para fazer, ficava-se dentro de casa a ler, ouvir música, ou à janela a contemplar a tempestade e os pássaros a caçar em voo as formigas com asas, que aos milhares, fugindo da água, abandonavam as suas tocas. Pareciam Spitftres a abater Messerschnitte nos céus de Inglaterra, em tardes de blitz.
Se a chuva parava antes do entardecer, largava-se a papelada durante uma hora ou duas para, de caçadeira aperrada, percorrer as picadas à procura de galinhas do mato ou perdizes. Estas, para fugir à vegetação molhada, mudavam-se para os caminhos, os únicos locais secos disponíveis. Infelizmente para elas, um tiro de caçadeira para o meio do grupo, "limpava" logo umas três ou quatro, que iam de seguida lavar os pés na panela.
À noite, quando o soldado Maia, que era cigano, estava bem disposto, ouviam-se flamengos trágicos lembrando o seu perro amigo que lo mataron. Isto, em troca de generosos bagaços, bem entendido. Português de ocasião, era uma figura pitoresca e um tanto turbulenta, que aceitava, com pouco sentido de desportivismo, aquele calvário bélico e longínquo, que pouco ou nada tinha a ver com o seu passado histórico.
Se ocupar a tropa é muito importante, cuidar da sua alimentação é fundamental. Não há disciplina que resista a uma má alimentação, especialmente se as deficiências resultarem de actos de má gestão ou de pouco interesse dos responsáveis. Sendo contudo desejável que as refeições tenham qualidade, o mais importante neste campo é que elas sejam o melhor possível, dentro das naturais limitações financeiras e geográficas. Há que dar voltas à cabeça para adquirir, ao melhor preço, os melhores produtos alimentares.
Pois, numa das tais voltas da cabeça, resolveu-se comprar no Chire, terra de criadores de gado, um par de belos e gordos novilhos. Os animais vivos saíam muito mais baratos e, havendo um magarefe no quartel, a transformação dos ditos em matéria-prima comestível não levantava problemas de maior.
O primeiro novilho foi abatido dois dias depois da sua chegada ao Tacuane, o tempo suficiente para o animal se recompor da longa viagem e eliminar o ácido láctico que o esforço lhe acumulara nos apetecidos músculos. O outro novilho foi levado para uma cerca de arame farpado propositadamente construída para o alojar, situada numa pequena baixa, pouco exposta ao sol, e onde o capim crescia fresco e viçoso.
Consumido que foi o primeiro, e só quando as saudades de uma boa carne de bovino começaram a tornar--se insuportáveis, tornou-se necessário mandar desta para melhor aquela suculenta fonte de proteínas. Mais uma vez, ia ser utilizado o método prático e expedito do tiro certeiro na espádua.
Para azar do carrasco improvisado, que não resistiu a espalhar a notícia do abate, juntou-se uma pequena multidão para assistir ao acontecimento. O pobre animal, ao ver aproximar tão numeroso grupo de afici-onados, baixou a cabeça, investiu contra a vedação, e desapareceu picada abaixo por entre as plantas de chá. Centenas de trabalhadores em pânico, largando as enormes cestas de verga carregadas de preciosas folhas de chá, fugiam quais turistas americanos nas ruas de Vila Franca em dias de largada de toiros.
A situação era mais que desesperada. Para nós, aquele lindo novilho não passava de uma sábia de combinação de lombo, costeletas, pojadouro, acém, alcatra, chã de dentro, cachaço e outras iguarias. Se desaparecesse na floresta, seria um petisco para os leopardos, hienas, chacais e outros carnívoros que abundavam naquelas paragens.
Mandei o magarefe trazer umas cordas, fui buscar a pistola, que o tiro poderia ser o último recurso. Enquanto esperava nojeep, um dos alferes, engenheiro agrónomo e pegador de toiros, ribatejano de gema, de boas maneiras e famílias, apresentou-se como espontâneo para a recuperação dos bifes em debandada. Mal o magarefe chegou, seguimos os três, plantação fora, pedindo informações a tudo e a todos, o que não era fácil, porque à medida que o fugitivo passava, os trabalhadores desapareciam. Cerca de meia hora depois, e por mero acaso, vislumbrámos no alto de um pequeno cabeço nos limites das plantas de chá, o nosso fugitivo. Estava todo transpirado, ofegante, mas de cabeça baixa, com ar ameaçador. A baba caía-lhe da boca... Olhei a ver se havia alguém que nos pudesse ajudar, mas nada. O local estava mais que deserto.
Mal tive tempo de parar a viatura. O alferes, obedecendo aos reflexos criados ao longo de vários anos de lides taurinas, correu para a frente do toiro tresmalhado, tal como se estivesse numa praça. Citou-o de largo, com garbo, com palmas, gritos e pequenos saltos. Este, com a nobreza de um animal de raça, num último esforço, mas sem qualquer respeito pelo uniforme militar, investe direito para aquele forcado imprevisto, que embarbelou a preceito.
Encantado com aquele inesperado espectáculo, só dei conta da gravidade da situação, quando me apercebi de que não estava, nem em Salvaterra de Magos, nem na bancada da sombra da praça de toiros. O que estava a acontecer era que o nosso cornúpeto, com um alferes na cabeça, ameaçava seguir caminho, rumo à floresta. E nem sequer havia uma teia, que lhe impedisse a fuga para fora daquela arena improvisada. Corri quanto pude, e agarrei com toda a força o rabo da fera, puxando-a para o lado, a fim de lhe quebrar o ímpeto, e desviar-lhe a trajectória. As botas rojaram-me pelo chão ainda um pouco. Finalmente, esgotado pelo esforço da fuga, e já sem forças para reagir mais, o bravo animal parou de vez, consumando-se assim a pega de caras. O magarefe puxou da choupa que trazia consigo, e desferiu-lhe um golpe certeiro na nuca. A vítima caiu fulminada, terminando desta forma uma inesquecível tarde de toiros em terras moçambicanas.
De repente, como por encanto, centenas de trabalhadores que estavam escondidos de medo a presenciar a cena, perante aquela eloquente manifestação de força, irromperam num estrondoso e demorado aplauso.



APROVEITAR A VANTAGEM


          Mocuba, a norte de Quelimane, era uma agradável vila no coração da Zambézia. Atravessada por uma bela avenida central onde se situavam os edifícios e moradias dos mais notáveis da vila, era cruzada por ruas perpendiculares quase todas arborizadas e bem arranjadas. Mais abaixo, numa rotunda, encontrava-se o clube, o restaurante e o cinema. As casas eram ainda poucas. Mocuba esperava pelo progresso e desenvolvimento, tal como uma jovem que, tendo terminado o seu enxoval, fica à espera que lhe apareça um noivo.
Aos domingos, quem estivesse na esplanada do clube a saborear uma Manica1, acompanhada de marisco grátis, podia apreciar o espectáculo da passagem da comunidade indiana para o cinema. A maioria dos homens vestia à europeia, embora alguns usassem as tradicionais calças estreitas envolvidas por uma túnica, vestindo por cima um casaco de modelo europeu. As mulheres apresentavam-se de sari. Eram lindas, com as suas cores vistosas, onde abundavam dourados. Deixavam à vista, nua, parte da cintura. Exibiam imensas jóias, brincos enormes, colares e pulseiras. Na testa, a meio de negras sobrancelhas, uma pinta vermelha. Algumas delas, especialmente as mais novas, eram muito belas. Todas de pele moreno-escuro, olhos negros e profundos, cabelo muito preto e luzidio e lindamente penteado. Um verdadeiro descanso para a vista...
De Mocuba, irradiavam várias estradas de terra batida que se dirigiam para as regiões mais variadas, desde as savanas do Chire até às remotas montanhas do Gurué, de Milanje, do Tacuane, do vizinho Malávi, entre outras. Montanhas onde o clima é ameno, e no Inverno há dias muito frios. Na época quente, a chuva cai copiosa, dias a fio, em consequência do efeito das monções. Condições climatéricas ideais para o cultivo duma variedade de camélia, de cujas folhas mais tenras se fabrica o apreciado chá.
Fiz imensas vezes o percurso entre Mocuba e Tacuane, onde está uma das mais belas plantações de chá da Zambézia. A viagem em si, não sendo propriamente uma aventura, era de certo modo um acontecimento. Nunca havia duas viagens iguais. Acontecia sempre qualquer peripécia que podia ir desde uma simples avaria, a ter que passar a noite na picada com a viatura atascada até aos faróis. Umas vezes, batia-se simplesmente o record da velocidade ou passava-se por cima duma jibóia. Outras via-se a atraente cunhada do adjunto da administração, uma bela rapariga casadoira que vivia em Lugela, a meio do caminho...
Inicialmente, o percurso é quase plano e a floresta apresenta clareiras. Depois, o terreno vai-se tornando cada vez mais íngreme e acidentado. As clareiras são substituídas por floresta cada vez mais densa. A estrada vai deixando de o ser, dando lugar a uma simples picada. As curvas são mais apertadas, serpenteando por encostas abruptas. O perigo é muitas vezes camuflado pela densa vegetação, que não deixa ver os desníveis. Só nos apercebemos das enormes escarpas, porque dum lado temos taludes e troncos enormes, enquanto do outro quase só se vêem as copas das árvores. A passagem dos cursos de água faz-se por pontões, umas vezes de alvenaria, outras de troncos pavimentados com canas atravessadas. São as conhecidas "pontes de gargalhada", tal é o som produzido pelas rodas ao pisarem as canas.
No final do percurso, ao entrar-se na plantação, depara-se com um mundo totalmente diferente. Quando já se desespera daquele inferno verde, vemos a ordem tomar o lugar do caos. A plantação de chá, o tea garden, aparece em todo o seu esplendor de beleza ordeira e pacífica. É um conjunto de sebes niveladas, muito bem tratadas, formando pequenos socalcos nas encostas roubadas à floresta.
Afastadas cerca de uma dezena de metros umas das outras, vêem-se belíssimas árvores de sombreamento: imponentes carvalhos prateados, ou belas acácias rubras. As primeiras, assemelham-se a enormes árvores de Natal enquanto que as segundas, na época da floração, alegram de vermelho todo o ambiente.
De onde em onde, nos locais proeminentes, aparecem belas vivendas brancas de estilo colonial, onde moram os empregados mais qualificados. Na periferia, avistam-se os aldeamentos dos trabalhadores de campo, com as suas tradicionais casas redondas, limpas e arrumadas, rodeadas de pequenas lavras onde trabalham mulheres com crianças às costas.
Ao centro da plantação, a administração da empresa, a fábrica, o hospital, os armazéns, o quartel da polícia e outras construções de menor importância. Ligando tudo, uma extensa rede de picadas bem cuidadas e limpas, ladeadas de chá.
Numa pequena baixa, uma formosa lagoa espelha um imponente rochedo, quase uma montanha. É o Mabú, que coroa toda aquela maravilhosa paisagem. O penacho de nuvens que permanentemente o rodeia dão-lhe um ar misterioso. Correm lendas de que vivem lá enormes manadas de pacaças e outros animais.
Mais abaixo, junto a um ribeiro pedregoso, encontra-se uma plantação de enormes bambus cujos caules, abrindo para cima, formam autênticas colunas duma frondosa e fresca catedral. Plantado com a finalidade inicial de produzir paus para as palhotas dos aldeamentos dos trabalhadores, tornou-se uma atracção turística.
Por todo o lado, centenas de trabalhadores protegidos da chuva por gabardinas e chapéus amarelos, transportam às costas enormes cestos de vime para onde lançam as folhas do chá, à medida que o vão colhendo.
A plantação é um inesperado oásis de civilização no meio da longínqua floresta. Dum lado, a força e o encanto da natureza no seu estado quase puro; do outro, a mesma força, mas dominada pelo homem.
Pois numa dessas viagens, à saída de Mocuba, pede-me boleia um rapaz dos seus vinte anos. Era um típico calcinha2 da cidade. Fato completo, engravatado, sapatos e óculos escuros espelhados. Uma beleza irresistível...
Uma companhia, naquelas paragens, até me poderia ser útil. A picada enlameada era uma armadilha permanente, e uma viatura atascada ou enfiada num barranco era um bico-de-obra para um homem só.
Mal entrou no jeep, arrependi-me logo. É que o pobre homem cheirava a catinga que tresandava. Embora calcule que o nosso "odor corporal" incomode tanto os negros como a catinga nos incomoda a nós, eu não aguentava o cheiro de forma nenhuma. O ar ficou irrespirável.
- Para onde é que você vai? - perguntei, na esperança de não ser para longe.
- Vai no Lugela.
Não me dei por fraco, eram só uns quinze quilómetros. Abri o vidro da frente para arejar a cabina, mesmo com o risco de apanhar com alguma chuva na cara. Nada feito, o cheiro persistia. Mudei de táctica, e entabulei conversa com ele para me distrair. Embora não fosse propriamente um conversador, consegui saber que tinha trabalhado seis meses na Sena Sugar, que ia visitar a mãe que estava doente, e vivia numa aldeia próxima de Lugela.
              Concentrei-me então na paisagem. Divertia-me sobretudo a apreciar os macacos que frequentemente apareciam em bandos na estrada, ou dependurados nas árvores às cabriolas. Tentava descobrir alguma cobra, das que por vezes se viam nos ramos, confundindo-se com a folhagem. Enfim, tudo que, durante a dezena de quilómetros que ainda faltavam para o destino do meu cheiroso companheiro de viagem, me pudesse desviar a atenção daquele pivete.
De concentrado que estava, passei por Lugela como um raio. Da enfermaria junto à casa do administrador, uma figura feminina, que não tive tempo de reconhecer, acenou-me com o braço a dizer adeus. Respondi da mesma forma.
Quilómetros passados, passei a dar mais atenção à condução, porque já começava a subir para as montanhas. Evitar poças de água, fugir aos pedregulhos que a chuva punha a descoberto, meter a tracção às quatro rodas nas subidas lamacentas. Curvas e mais curvas. No céu, as nuvens escureciam a anunciar tempestade. Ao meu lado, o calcinha parecia fascinado com as manobras do jeep.
Uma baforada de catinga chamou-me à realidade.
- Então você não queria ir para Lugela?
- Queria sim senhor.
- Mas Lugela já vai longe. Vai ter que andar muito, e vai chover.
- Não faz mal, senhor. - respondeu com um sorriso.
- Então porque é que você não me disse nada? - perguntei.
- E que eu estava a andar de carro...

1 Uma das marcas de cerveja fabricada em Moçambique.
2 Nome dado aos nativos que vestiam à europeia.


O CASACO DE PELES


         Encontrava-me em Mocuba, onde tinha ido com o médico tratar de vários assuntos, quando um telefonista espavorido nos abordou. De ofegante que estava mal conseguia falar. Muito a custo, comunicou-nos:
- Vão já para Lugela, que o administrador Magalhães levou um tiro e está muito mal.
Em plena época das chuvas, aquilo que restava da picada não passava de uma alternância de lamaçais nos troços planos, e de escorregas nos inclinados. O jeep, ora voava, ora flutuava, ora ladeava, como um cavalo em exibições de alta escola.
Estávamos mudos, eu e o médico. Era a responsabilidade de salvar uma vida, era o pavor de não se saber se conseguiríamos chegar sãos e salvos ao nosso destino, tais eram as cabriolas da viatura.
Magalhães andava pêlos quarenta, bastante jovem para o cargo de administrador de circunscrição. Usava barba cerrada, bem cuidada, aparada curta, e onde se viam algumas brancas. Recém-viúvo, notava-se que sofria com a situação, embora parecesse pessoa de reservar para si só o que sentia. Por questão de respeito e amizade, sempre evitámos conversas que se relacionassem com o seu passado, ou com as circunstâncias em que enviuvou. Uma morte é sempre um acontecimento que se sente terrível, de consequências muito complexas. Parece que não se apagam nunca. Sendo o casamento uma única vida, partilhada a dois, a viuvez é uma amputação dessa mesma vida. E como um corpo que, sem pernas, deixa de poder seguir o seu caminho. É todo um ambiente que se modifica: as coisas, os locais, as pessoas. Enfim, tudo muda, tudo fica estranho e longínquo. É uma fortaleza que se desmorona, como um baralho de cartas. A própria casa fica diferente, vazia, fazendo lembrar uma sala donde se retiraram os móveis e os sons mais familiares ecoam de fornia estranha. Vive-se um constante desejo de voltar para a "antiga" casa, para a segurança e o conforto perdidos. É uma sensação permanente de pesadelo, vivendo-se uma esperança subjacente de tudo voltar ao normal na manhã seguinte, ao acordar.
Apesar da velocidade, o jeep parecia avançar com uma lentidão enervante, atravessando-se a cada travagem, "dando de traseira" a cada curva. A perspectiva de chegarmos tarde de mais era um convite ao pessimismo, a ponto de pensarmos que aquela corrida louca contra o tempo já não tinha razão de ser. Eu e o médico trocávamos olhares significativos, estávamos talvez a pensar o mesmo, mas não tínhamos coragem de abrir boca sobre o assunto.
Como sempre nestas ocasiões, a memória traz-nos torrentes de recordações onde não falham os mais ínfimos pormenores. O local e as circunstâncias em que conhecemos o administrador, as conversas, as anedotas, as discussões e as divergências. Sempre polido nas suas críticas, adivinhava-se que partilhava da opinião geral das pessoas radicadas nas antigas colónias, que não concordavam com a forma como se estava a conduzir o combate à guerrilha. Criticavam sobretudo o sistema de mobilização das tropas, sendo de opinião que as unidades só deviam regressar à Metrópole depois de resolverem o problema, ou seja, depois de acabarem com a rebelião. Achavam que as tropas eram muito brandas para os guerrilheiros, e só se preocupavam com o tempo que faltava para o regresso a casa. Vendo a guerrilha como uma simples perturbação local, desenquadrada do contexto mundial, acreditavam que o conflito só continuava porque os soldados não combatiam, porque os oficiais ganhavam de mais, e não lhes convinha acabar com aquela fonte de rendimento e de promoções rápidas. Convencidos de que o "Puto" vivia à custa das colónias, defendiam que era o "Puto" que tinha a obrigação de resolver o problema, e o mais rapidamente possível. Havia até quem achasse que tinha o direito de não ser incomodado com as dificuldades da guerra, e não tinha qualquer obrigação de nela participar.
O administrador já tinha passado o pior da sua viuvez, cerca de um ano a viver só, na altura mais difícil, em que a solidão, má conselheira, convida à melancolia e ao desespero. Mas a natureza é mais poderosa do que todos os desesperos e do que todas as crueldades das convenções sociais. Na sua imensa sabedoria, encarregou-se de lhe fazer notar que a Sãozinha, a cunhada do secretário da administração, tinha deixado de ser aquela rapariguinha que ia para Lugela passar férias e que ia lá para casa brincar de vez em quando. Com os seus vinte e um anos, era já uma bela mulher, de corpo roliço, cara redonda, nariz um pouco curvo, queixo graciosamente bicudo e uns enormes olhos redondos e castanhos. Usava o cabelo cortado como o da Beatriz Costa. A franjinha dava-lhe um ar gaiato e simpático.
Os olhos doces da jovem operaram um autêntico milagre. Magalhães parecia outro, muito mais comunicativo, e sempre bem humorado. O noivado estava anunciado, e só faltava marcar o casamento.
Finalmente chegámos a Lugela. Um sipaio gesticulava à porta da enfermaria, indicando-nos que era lá que o administrador estava. À entrada, deparámos com o velho enfermeiro.
- Senhor doutor desculpe, mas foi o senhor administrador que insistiu em mandá-lo chamar. Se calhar, nem era preciso. Ele agora já está melhor...
- Acho que fez muito bem - respondeu o médico.
- O que foi que aconteceu?
- Felizmente o pior já passou. O senhor administrador levou um tiro de caçadeira numa perna. Perdeu muito sangue, mas já está a sentir-se muito melhor. Disse-me que está com muito sono e que quer dormir.
O médico, inesperadamente, correu para a enfermaria. Começou a dar ordens em voz alta, e só se via gente de bata a correr com coisas na mão, frascos, instrumentos vários e um enorme suporte de ferro para ministrar soro...
Durante a demorada espera que se seguiu, o secretário contou-me que o administrador tinha mandado montar armadilhas para leopardos.
- É que os animais apanhados em armadilhas podem ser abatidos sem que se arrisque a furar as preciosas peles. O senhor administrador queria que o casaco da noiva ficasse impecável...
O secretário fez uma pequena pausa, como que a realçar a insinuação velada, e continuou:
- Mas desta vez aconteceu o pior. Quando chegámos, demos conta que o leopardo tinha desaparecido, mais a armadilha. O senhor administrador começou logo a seguir as marcas deixadas no chão pelo bicho. A armadilha tinha sido arrastada, e havia muitas marcas de sangue.
- Mas isso é uma loucura - argumentei. - Um homem, com tantos anos de mato, sabe isso muito bem. Uma fera ferida é perigosíssima!
- A gente nem teve tempo de pensar. Foi tudo tão rápido... O animal estava emboscado numa moita e saltou para cima do senhor administrador que ainda disparou um tiro à queima-roupa com a Mauser. Eu, ao ver aquilo, puxei da caçadeira, apontei ao leopardo, e dei-lhe um tiro de zagalotes. O leopardo morreu logo de seguida, mas o senhor administrador apanhou com doze bagos, na parte de dentro da coxa direita. Não percebo como é que isso aconteceu. Fiz a pontaria com todo o cuidado.
E em tom de desculpa:
- Se eu não fizesse fogo, o leopardo matava o senhor administrador. Se visse como tem a cara e os braços... Rasgou-lhe a carne toda com as unhas! O que vale é que parece que já está livre de perigo... A artéria femural não foi atingida, mas foi por pouco!
Só depois de mais de uma hora, é que o médico assomou à porta da enfermaria, com ar exausto. Tinha a camisa completamente molhada de suor.
- Parece que já está fora de perigo. Se a gente não chega a tempo, ia desta para melhor...
- Mas então não estava a sentir-se bem? - perguntei-lhe.
- Veja como são estas coisas no mato. O enfermeiro, homem experiente, estava convencido que o administrador estava a melhorar. Foi só quando me disse que estava a adormecer, que tive o pressentimento que qualquer coisa estava a correr mal. Medi-lhe a tensão arterial, e estava mesmo a apagar-se.
- Mas o senhor administrador até me disse que estava a sentir-se muito bem - atalhou o secretário.
— Isso mesmo, lá isso é verdade. O que ele estava era pura e simplesmente a entrar em coma. Foi por uma unha negra...


CULTURA E JUSTIÇA


A justiça é uma noção que todos têm mas, quando se trata de a definir, o caso fia mais fino. Em termos de conceito, é como a presunção e a água-benta. Cada qual toma a que quer. Na prática, faz-se justiça quando as partes em litígio acatam a decisão de uma terceira parte, seja ela um árbitro, um amigo comum, ou um tribunal. Se o desacordo prevalece, terá que se apelar para as instâncias superiores e a justiça continua por fazer, até que uma dessas instâncias consiga encerrar o caso. Se mesmo assim a solução não é encontrada, pode recorrer-se à vingança. Esta pode variar desde eliminar marquesmente o adversário com família e tudo, e com direito a estátua, até ao simples acto de lhe cuspir chinesmente no café, o que não dá direito a estátua nenhuma. Mas o que é necessário, é acabar com o litígio.
A justiça é, sobretudo, uma forma mais ou menos burocratizada de apaziguar os ânimos. Não interessa que, na essência, a decisão seja justa ou injusta. Num jogo de futebol, por exemplo, é o juiz da partida que decide se determinado jogador foi rasteirado ou não, mesmo quando os fiscais de linha assinalam o contrário. Uma vez tomada a decisão, o facto em si torna-se irrelevante. O que importa é que as duas equipas acatem o veredicto, e que o público continue a desfrutar do espectáculo.
O conceito de justiça varia de local para local, de época para época, de cultura para cultura. Utilizar dissidentes religiosos como combustível sólido na iluminação de praças públicas já foi justo em locais onde hoje não se vê com bons olhos que os pais castiguem corporalmente os seus filhos. E todo um ambiente em que se vive, que condiciona profundamente a nossa maneira de ver e de sentir as coisas. Se nas civilizações que dispõem de escrita, a justiça se faz com base em extensos e complicados códigos, que pretendem cobrir todas as situações possíveis, nas civilizações que ainda não beneficiam de tal ferramenta, a justiça é simples, directa, imutável e facilmente compreendida e aceite por todos. As regras são poucas, mas bem claras. A justiça é, portanto, eminentemente cultural.
Vem isto a propósito do que aconteceu a um típico caçador profissional da Zambézia, o Rui Silvano. Conheci-o em Milanje, onde me encontrava por razões operacionais. Estava eu a tomar um drink com várias pessoas relacionadas com a operação que se iria desenrolar, quando Silvano chegou, com informações importantes, colhidas no vizinho Malávi. Entre os presentes, estava uma senhora, a mulher do médico do contingente militar. Foi-nos apresentado, e sentou-se para tomar uma Manica. Era alto e de boa figura. Como bom zambeziano que era, tinha o estômago um tanto dilatado da cerveja. Aparentava uns quarenta e tal anos. Como era noite, já não se apresentava com o habitual calção e meia alta a condizer. Vestia calças compridas, uma balalaica azul-clara e, no pescoço, trazia um lenço de seda azul-escuro às pintas, um tanto manchado de suor. Cabelo loiro e ondulado penteado para trás. Olhos verdes, redondos e salientes. A pele da cara era avermelhada de tanto ter sido exposta ao sol. As boas maneiras e o farto bigode de pontas retorcidas emprestavam-lhe um certo ar afidalgado.
A conversa era interessante, e de um grande sentido de humor. À medida que as suas extraordinárias histórias avançavam, as pessoas que o ouviam, estavam encantadas com aquela figura enigmática de africanista aventureiro. Algumas nunca tinham visto tão de perto um autêntico herói, como os do cinema. Silvano fazia um pouco de tudo. Era informador do presidente do Malávi, Hastings Banda, com quem jantava frequentemente, organizava safaris, criava e vendia gado, enfim, um fascínio. Mas, além do mais, era caçador profissional. Era nas savanas do Chire, na terra dos búfalos, gazelas, leões, elefantes e rinocerontes, que Silvano passava a maior parte da sua vida, caçando e criando também o seu gado.
À senhora, intrigava-lhe porém o facto de tal conquistador de trofeus de caça não referir minimamente vitórias sobre os corações femininos. Talvez fosse casado, e não o quisesse revelar, para manter o charme. Quase a medo, perguntou-lhe.
- De qualquer forma, o senhor Silvano é casado...
- Não, minha senhora, não sou.
Surpreendida com a resposta, quis saber se haveria alguma razão oculta que impedisse aquela figura, aparentemente transbordante de masculinidade, de se relacionar com as mulheres.
- Mas então não gosta do casamento? Resposta imediata:
- Gosto muito, minha senhora. Mas só em pequenas doses!
Silvano despediu-se de beija-mão e fomos jantar. Só ouvi falar dele meses mais tarde, por causa de um acidente de viação.
Contaram-me que, numa tarde de Setembro em plena época seca, conduzia a sua enorme carrinha Nissan em direcção a Quelimane. Atravessava uma extensa plantação de sisal. De repente, vinda duma picada da esquerda, meteu-se à sua frente uma camioneta. Como fazia uma poeirada dos diabos, abrandou a marcha para se distanciar e ver alguma coisa. Mas eis que sai da berma uma bola de trapos imediatamente seguida por um miúdo. Não conseguiu evitar o choque e a criança ficou estendida no chão.
Presenciaram a cena vários trabalhadores que comiam mandioca fresca enquanto descansavam. As mulheres desataram a gritar. Silvano viu-se envolvido por toda aquela gente, ao tentar socorrer a criança. A situação agravou-se quando se verificou que estava morta.
Valeu-lhe ser conhecido e respeitado por quase todos, e por beneficiar da presença de espírito do capataz que, com autoridade e firmeza, serenou os ânimos.
Mandaram chamar o chefe do posto administrativo, o senhor administrador, como lhe chamavam. Já todos desesperavam de esperar, quando, na noite que caía, se avistaram os faróis do Land Rover da administração. Na caixa de carga vinham quatro enormes sipaios, armados de velhas espingardas Lee Enfield. O administrador e o adjunto vinham na cabina. Trataram das formalidades legais, e seguiram para o posto levando consigo os pais e algumas testemunhas. Silvano, levando ao seu lado o adjunto, também seguiu para o posto.
Com a ajuda de intérpretes, ouviram-se as testemunhas, bem como as outras partes envolvidas. Era mais que evidente não haver culpabilidade da parte de Rui Silvano. Não ia em excesso de velocidade, ia distanciado da viatura da frente, estava na sua mão, etc. Todos concordaram que era impossível parar a viatura a tempo de evitar o acidente. Todos concordavam que o senhor Silvano era bom pessoal e tinha feito tudo ao seu alcance para evitar o desastre e para salvar o pequeno. Parecia, enfim, que tudo estava resolvido e que a justiça tinha sido devidamente aplicada.
          O administrador mandou aquela gente embora, depois de registar os depoimentos, a fim de elaborar o processo. Silenciosamente, os intervenientes foram saindo. Para surpresa de todos, o pai da vítima manteve-se teimoso na sala. O intérprete mandou-o sair, mas o homem ficou onde estava. Uma troca de palavras e o intérprete disse:
- Senhor administrador, pessoal diz que milando não cabou.
- Como assim? Então ele não concorda que senhor Silvano não teve culpa?
- Pessoal diz que senhor Silvano tem culpa, sim senhor - disse o intérprete depois de longa algaraviada com o pobre homem.
- Explica-lhe bem que senhor Silvano não teve culpa nenhuma. Diz-lhe que todos concordaram que ele não podia ter evitado o acidente.
Nova algaraviada.
- Senhor administrador, pessoal diz que o filho não tem culpa. Diz que minino não estava a fazer mal nenhum e não devia morrer. Diz que o culpado é o branco, porque estava a andar de carro. Se ele não tivesse carro, minino não morria...


Edição de 1996

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