A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



COSTA MONTEIRO



ALÁ É GRANDE

          Havia horas que Assan Shahid esperava à porta do posto médico. Ao lado, tagarelavam mulheres, quase todas com a cara pintada de branco e algumas de cigarro na boca, mas com o lume virado para dentro. Nas cabeças traziam lenços garridos em forma de turbante. Duas delas seguravam crianças ao colo. Todas calmas e pacientes, como se o tempo não contasse. Sentado e encostado à parede, um velho meio desdentado, de pele engelhada e com uma enorme chaga numa perna, comia tranquilo uma raiz de mandioca fresca, enquanto enxotava as moscas que insistiam em pousar na ferida.
          Assan contrastava do grupo. Caminhava de trás para a frente, com birra de urso, frenético e nervoso. O dia estava já a escurecer, o médico nunca mais chegava, e ainda tinha que aviar a receita. De vez em quando, puxava a corrente de um enorme relógio de bolso para consultar as horas, enquanto fazia passar pelos dedos as contas do seu "rosário" islâmico. Indiano de nascimento, fazia parte dos muitos excluídos da sociedade, os intocáveis, cujas famílias abraçaram o islamismo como forma de se livrarem da tirania do sistema de castas, que só permitia a promoção na escala social através do duvidoso sistema das reencarnações... Talvez por isso, o Islão era tudo para ele. Estava-lhe profundamente grato, sobretudo por ter deixado de se sentir um ser impuro e desprezível, marginalizado pelos seus semelhantes, por mais baixa que fosse a casta a que eles pertencessem. Era um homem satisfeito consigo próprio. Fazia tudo nos conformes: rezava cinco vezes por dia, reunia-se com os outros monhés todas as sextas-feiras para a oração comunitária, jejuava no Ramadão, não comia carne de porco, dava esmolas e punha todo o cuidado nas lavagens, por mais íntimas que fossem, que o Corão tinha destas coisas... Mas na sua terra, dominada pelos hindus, não era fácil pertencer a uma religião minoritária e muito menos fazer fortuna. Na prática continuavam a ser marginalizados. Por isso, emigrou com a família para Moçambique.
          Mucala, a terra onde acabou por se fixar, era uma pequena vila situada numa enseada que servia de porto. Em boa verdade, não passava de uma aldeola com meia dúzia de casas. Junto a um pequeno cais onde acostavam dois velhos batelões, ficavam dois armazéns de paredes caiadas, sujas e em mau estado, com telhados de chapa ferrugenta. Numa pequena elevação, à sombra de enormes poilões, destacava-se sobranceiro o posto administrativo, conjunto de vários edifícios: a residência do chefe de posto com a bandeira sempre hasteada, a casa dos sipaios, o pequeno posto médico e a estação dos correios, que não passava de uma pequena casota onde um funcionário mestiço passava os dias a martelar a chave do telégrafo.
          A completar o quadro, umas tantas casas coloniais típicas, com alpendres de ferro fundido e telhados de zinco. Mais abaixo, perto do porto, ficava a zona comercial com as inevitáveis cantinas. Numa delas, à sombra de um alpendre, dois alfaiates em tronco nu davam à manivela nas suas antiquadas máquinas de costura. Faziam vestidos de mulher, em tecidos garridos, e também calções e camisas de homem. As suas obras, penduradas em cabides do lado de fora da cantina, emprestavam ao ambiente um ar alegre, quase festivo.
          Por detrás da vila propriamente dita, ficava a antiga aldeia indígena, com as suas palhotas fumegantes, as mulheres a malharem nos almofarizes, os homens a jogar as cartas, e as crianças, despidas, a brincarem felizes na sua inocência, de monco no nariz, barriga inchada e umbigo proeminente... Na pequena baía ornada de coqueiros, esguios e curvados do vento, baloiçavam pirogas e outras embarcações. Na praia, com água pêlos joelhos, os pescadores lançavam as suas pequenas redes, em gestos hábeis e precisos. Ao largo, uma velha lancha a vapor, que mais parecia uma casa de bairro da lata, vomitava fumo negro pela enorme chaminé, sinal de que estava a aquecer as caldeiras para zarpar.
          Assan era mais que um cantineiro, era um comerciante de sucesso, dono de um pequeno empório comercial. Negociava quase tudo. Produtos orientais, sedas e louças da China, tapetes, especiarias, perfumes exóticos. Nos seus armazéns junto ao cais, podiam ver-se, prontas a serem vendidas, toneladas de copra, caju, mandioca, peixe seco, marfim, farinha, pau-santo, toros de madeira preciosa.
          Era um homem amável, um tanto subserviente e mesureiro, sempre a fazer vénias, mas com um comportamento por vezes estranho. Passava horas esquecidas numa espécie de banco de jardim à sombra de uma enorme mangueira, que quase cobria a tal casota que fazia as vezes de correios. Dizia que o local lhe fazia lembrar a sua terra natal, que era o único sítio fresco onde conseguia descansar, isto e aquilo... Na verdade, essas horas de aparente lazer eram a chave do seu grande sucesso. E que o finório, que sabia o alfabeto Morse, enquanto fingia que rezava ou descansava, escutava atentamente os bip-bip do telégrafo para ser o primeiro a saber as cotações das mercadorias... No Corão não vinha nada em contrário e o estratagema não lhe causava peso na consciência. E, além do mais, todos o admiravam pelo seu faro comercial. Quando lhe gabavam a sorte, a resposta era sempre a mesma: - Alá é grande!
O médico enfim chegou, numa moto Indian, mais velha do que ele, todo envolvido em poeira. Tinha-lhe acabado a gasolina e teve que esperar mais de duas horas, à torreira do sol, que lha levassem da vila. Mandou entrar de imediato o senhor Shahid, que era a única pessoa "civilizada" do grupo. Mal entrou, o cantineiro apressou-se a entregar-lhe um boião cheio de achar de manga verde, bem picante e perfumado.
- É um presente da minha mulher... ela sabe que o senhor doutor gosta muito...
- Obrigado Assan, não era preciso incomodares-te. Então o que te traz por cá?... O costume?
- Sim, senhor doutor, é que me sinto ainda muito fraco. É sempre esta coisa aqui no peito... Este calor abafado que me não deixa respirar... Mas tenho medo que Alá me castigue...
- Está bem, não é preciso pecares. Não és o único que anda fraco... Eu passo-te mais uma receita. Dose dupla?
- Sim... é melhor, senhor doutor...
Passados minutos, o escrupuloso seguidor de Maomé saía feliz e apressado do consultório, com a preciosa receita no bolso. No papel timbrado do posto administrativo para que não houvesse dúvidas da legitimidade, o médico apenas escrevera:
Duas garrafas de vinho do Porto.


ÁGATA R.I.P


Muidumbe era a sede de um belo posto administrativo, situado num esporão do planalto de Mueda em plena região Maconde. A povoação em si era pequena, mas muito bela, rasgada por uma pequena avenida central de terra batida, ladeada de coqueiros que continuava a picada vinda de Mueda e Nangololo. A entrada, duas cantinas abandonadas. Ao centro, um grande terreiro com enormes mangueiras rodeado dos edifícios administrativos. Do lado direito, uma meia-lua rodeava o mastro onde todos os dias se procedia ao hastear solene da bandeira. Mais à esquerda, a povoação maconde e a pista de aterragem. Finalmente, ao fundo, debruçada sobre a encosta, a residência do administrador de posto, uma bela vivenda virada a nascente, com um jardim em frente e uma pérgula coberta de buganvílias. Daqui avistava-se um imenso vale densamente arborizado, que se estendia para lá do rio Messalo até ao oceano ĺndico. A meio do vale, os lagos N'Guri e Namanga. Mais ao longe, as elevações do Chai.
          Paisagem majestosa e bela. Ver nascer o Sol em Muidumbe era algo inesquecível e convidativo à paz e meditação. Se não fosse a guerra, seria um autêntico paraíso para os amantes da natureza. O clima era ameno e as terras férteis. Nas muitas povoações, agora abandonadas, cresciam e frutificavam coqueiros, bananeiras, mangueiras, laranjeiras e imensos cajueiros. Nas encostas, e só nas encostas, brotavam fontes.
          Os Macondes são um povo de grande personalidade, com características muito marcadas e diferenciadas dos povos circundantes. Apesar de muito aguerridos, são conhecidos pelos seus extraordinários dotes artísticos. Trabalham o pau-preto, o m'pingo, do qual fazem belas estatuetas e outros objectos de arte. As suas canções tradicionais são melodiosas e bem ritmadas, tendo-se celebrizado a famosa Missa Maconde. Faziam-se tatuar por quase todo o corpo, incluindo a cara. No fundo, estas tatuagens não eram mais do que cicatrizes de feridas provocadas por cortes à navalha, sobre os quais era colocada cinza. Havia quem morresse das infecções. E como se tal não bastasse, as mulheres furavam o lábio superior para colocar o n'dona (ou indona), uma rodela de pau-preto com um espigão metálico ao centro. Com a idade, o orifício alargava e o rídona tinha que ser cada vez maior. Para que este enfeite se segure no devido lugar, é necessário partir os incisivos. Os homens, limam os dentes em forma de serra. Para os nossos padrões estéticos, tais "ornatos" davam-lhes apenas um ar feroz e temível, mas para eles, as tatuagens eram meros enfeites tradicionais.
          Trata-se de um povo rebelde, que não aceita o jugo de qualquer autoridade, mesmo proveniente do seu próprio povo. Nunca tiveram um chefe, no verdadeiro sentido da palavra. Podia dizer-se que os Macondes eram chefiados pela sua personalidade, tradição, língua, costumes e pelo terreno que habitavam - a bacia do baixo Rovuma. Um povo que resistiu à escravatura dos negreiros que infestavam a costa. Para se desvalorizarem como produto comerciável, optaram por se desfigurar com a dolorosa artimanha da tatuagem. E que os que tivessem os dentes em mau estado e um aspecto menos atraente eram rejeitados...
          Considerados um povo cristianizado, na prática limitaram-se a acrescentar às suas antigas crenças alguns ritos e costumes cristãos. Embora tivessem sido catequizados ao longo de vários anos pelas várias missões espalhadas pelo planalto, foram enormes as dificuldades de explicar a um povo, que vive num mundo primitivo, conceitos religiosos provenientes de uma evolução histórica totalmente diversa. Nem tudo é traduzível para uma língua e uma cultura tão diferentes. Muitas coisas, muitos conceitos, tinham que ser adaptados ou mesmo profundamente modificados. Não era por acaso, que o Cristo do enorme crucifixo que encimava o altar-mor da igreja da missão de Nangololo, tinha as feições macondes.
         Na prática, pouco mudou. Continuaram a ser macondes como sempre foram no passado. Os sinais mais evidentes dessa cristianização são as inúmeras campas cristãs que por todo o planalto, abandonado pelas populações durante a guerra, sobreviveram às suas vicissitudes. Os macondes, sempre que possível, continuaram a enterrar os seus mortos nas aldeias de origem, e as suas campas mantidas com cuidado. Os corpos são amortalhados num pano e metidos numa espécie de gaveta lateral aberta no fundo da cova, costume anterior à cristianização. Mas, em todas elas, é colocada uma cruz com o nome de baptismo e as iniciais de Requiescat In Pace.
          Em Muidumbe, à parte das peripécias das operações militares que tinham quase exclusivamente a ver com a tropa, a vida fazia-se quase na normalidade. A maioria dos habitantes do aldeamento, cerca de cinquenta pessoas, eram capturados do mato. Se por um lado viviam numa espécie de cativeiro longe dos seus, por outro lado beneficiavam de uma vida aparentemente agradável, no seu habitat tradicional, o planalto de Mueda. Contrariamente aos que continuavam no mato, podiam lavrar em segurança as suas machambas1, vender os objectos de arte de pau-preto, ganhar dinheiro prestando alguns serviços pesados, comprar roupas nas cantinas de Mueda e, acima de tudo, dançar aos domingos o batuque e por vezes o mapico2. Não se podia considerar que estivessem acomodados à situação. Para eles, a permanência em Muidumbe constituía apenas uma pausa, um compasso de espera, que aproveitariam enquanto lhes conviesse...
O fim da época seca aproximava-se e era tempo de se preparar o terreno para as lavras. Havia que cortar o mato, esperar que secasse, queimá-lo e, aproveitando a cinza como fertilizante, plantar ou semear, conforme os casos. Demasiado trabalho, para gente idosa.
          Chileu Amisse, um simpático velho de pequena estatura, apresentou-pe no posto administrativo para se casar com mais uma mulher. Com a única que tinha, também idosa, já não conseguia cultivar a área necessária para subsistir mais um ano. A noiva chamava-se Buanadei, uma mulher de meia-idade que tinha sido capturada há pouco tempo. Feito o registo, o administrador selou a cerimónia com um "aperta a mão e dá beijinho". Cumprido o rito, lá partiram para a lua-de-mel, ou seja, trabalhar a machamba.
          A vida continuava tão calma e pacífica quanto o permitia o cativeiro em que viviam. Sementeiras, colheitas, nascimentos, mortes, chegadas de novos capturados, milandos3, batuques e danças do mapico eram a rotina daquela gente.
Mas, um belo dia, foi capturada uma estranha personagem, o Iacobo M'Bela, um homem de meia-idade, de porte altivo e bem apresentado. Dirigia-se por um caminho de pé posto para os lados de Nangololo, vindo de Miteda. Conversava em voz alta com uma mulher, quando caiu nas mãos de uma patrulha. Apanhado de surpresa, não ofereceu resistência. Vestia um casaco preto às riscas por cima do calção curto e trazia no bolso quinhentos escudos, uma verdadeira fortuna, dadas as circunstâncias.
          Entrou em pânico ao ver-se encaminhado, mais à sua companheira, para Muidumbe. Estranhamente, começou a declarar-se simpatizante da tropa e inimigo dos guerrilheiros, que só faziam confusão. Repetia frequentemente:
- Tropa ambone, bandido cunhata!4.
          Parecia apavorado e, apesar da sua cor negra, notava-se que estava pálido.
          Chegado a Muidumbe, ao avistar outros macondes que julgava mortos, confessou com uma alegria mal disfarçada que pensava que ia ser executado mal chegasse, como lhe tinham dito os guerrilheiros no mato. Em poucos minutos, toda a comunidade nativa apresentou-se à sua frente para o cumprimentar. Pelo ar cerimonioso com que o faziam, concluiu-se que era pessoa importante.
          Foi interrogado e, como de costume, não acrescentou nada de útil. Fugia sistematicamente a qualquer pista que o pudesse levar a revelar fosse o que fosse. Não conhecia a mulher que o acompanhava quando foi capturado, o casaco e o dinheiro tinham sido achados junto a uma fonte, vivia sozinho e não conhecia ninguém. No entanto, ao ver consultar as fichas de recenseamento da população, declarou que também se chamava Francisco Milimba e que era natural do Cavanga, povoação a cerca de cinco quilómetros de Muidumbe. O interrogatório visava mais comprometê-lo do que a recolher informações, pelo que não merecia a pena insistir muito. A seguir, aplicava-se o tratamento do costume. Vestia-se-lhe um fato camuflado e saía com a primeira patrulha, para ser visto a "colaborar" com a tropa. Era remédio santo. A vontade de fugir ficava para depois...
          Mas, com o passar do tempo, a sua presença no aldeamento começou a fazer-se sentir. A postura da população mudou radicalmente. Deixou de se dançar o batuque e o mapico, deixou de haver voluntários para ganhar uns trocos a partir lenha, e as caras mostravam-se menos simpáticas. Numa noite, seis mulheres fugiram para o mato.
          Iacobo foi mandado para Mueda. Aparentemente, a situação voltou à antiga normalidade.
          Pouco tempo depois, ao romper da madrugada, Muidumbe acordou ao som de tiros. Uma espingarda e uma pistola metralhadora disparavam pequenas rajadas. Depois silêncio. É que, à frente dum posto de segurança, tinham passado uns vultos que, por não obedecerem à ordem de parar, foram alvejados pelas sentinelas.
Já com dia claro, encontrou-se deitada de borco uma mulher. Era a Buanadei, a que há poucos meses se tinha casado com o Chileu Amisse. Havia pegadas de outra mulher, mas, pelos vistos, tinha sido mais feliz.
          Na enfermaria, o médico nada pôde fazer. Uma bala de pistola metralhadora tinha-lhe entrado por um rim e feito enormes estragos nos intestinos. As esperanças de a salvar eram menos que nulas. A única coisa a fazer, era aplicar uns pensos para estabilizar a situação, e minorar o sofrimento. Mesmo assim, Buanadei submeteu-se ao tratamento sem se queixar. Pediu apenas para ir para casa.
          Horas mais tarde, Chileu, muito abalado, pediu para que lhe fizessem uma cruz para colocar na campa. Revelou que a mulher, só ao aperceber-se de que a morte se aproximava, é que resolveu fornecer-lhe, para figurar na cruz, um dado que ocultara ciosamente desde a sua captura e que ele próprio não sabia: o seu nome cristão.
          No que hoje restar de Muidumbe, existe provavelmente uma campa, cuja cruz tem gravada a seguinte inscrição: "ÁGATA R.I.P."

1 Pequena lavra.
2 Dança tradicional maconde.
3 Questão, disputa, acidente, complicação.
4 A tropa é boa, os bandidos (guerrilheiros) são maus!


O RAUL


Conheci o Raul na primeira vez que fui a Muidumbe. Nome completo, Augusto Raul Alface. Os seus feitos, como guia, corriam o planalto de Mueda. Era tão estimado e respeitado pêlos ditos "amigos", como temido pelos "inimigos".
Era um enorme landim de pele negra e luzidia, sempre com uma pistola metralhadora a tiracolo. Vestia calção e camisa camuflados e os pés enormes estavam descalços - não havia calçado daquela medida. Na arma, tinha três carregadores atados com adesivo, de forma a não perder tempo se os tiver de mudar... A cara era redonda, enfeitada por um pequeno bigode quadrado.
Como sipaio que era, estava a guardar um grupo de macondes, que capinavam a área do posto administrativo. Quando cheguei, exibia na ponta de um pau, sorridente e vitorioso, uma cobra surucucu que tinha provocado o pânico entre os capinadores. A cobra ainda mexia na ponta do pau que ele, descuidado, transportava na mão. Eu, que nunca tinha visto tal repelente bicho tão de perto, não me contive e disse-lhe:
- Cuidado, porque a cobra parece que o quer morder. Há muitas cobras dessas por aqui?
- Há, mas não faz mal. Isto aqui é mesmo assim. - e rematou: - É mato!
Continuei a visita ao local, onde iria passar os meus próximos doze meses, sempre a magicar naquela figura imponente do sipaio. Quando levantei voo de regresso a Mueda, vi o Raul encostado ao poste da manga de vento, acenando um adeus com a mão com que empunhava a inseparável pistola metralhadora...
Dias depois, lá cheguei a Muidumbe com o meu pessoal todo, sem incidentes de maior. Partira de Mueda antes do alvorecer, para fazer o percurso com luz do dia e a protecção dos T6 da Força Aérea, que davam voltas e voltas por cima de nós. Chegámos já de noite. Por razões de segurança, os cerca de quarenta quilómetros do percurso foram feitos a pé, com as viaturas em primeira velocidade. Havia que pesquisar minas, e evitar emboscadas. Todas as cautelas eram poucas.
Finalmente, Muidumbe avistava-se lá ao fundo da interminável picada. Alguns sipaios que seguiam na coluna, cansados de tanta e demorada tensão, explodiram aos gritos de júbilo, assim que viram as luzes:
- Muidumbe à vista, Muidumbe à vista!
À medida que nos aproximávamos, começavam a distinguir-se melhor as luzes do sistema de segurança, cintilando como estrelas ao ritmo lento e compassado do velho gerador. Por detrás das lâmpadas, viam-se estranhos reflectores, improvisados com meias latas de óleo.
À chegada, os soldados "velhos" saudavam os novos, chamando-lhes checas1. Eles, os que se consideravam velhos, auto-intitulavam-se cocuanas2!
Passados os primeiros dias de instalação e adaptação, tudo entrou na normalidade possível. As instalações eram precárias, as condições de segurança quase nulas, o isolamento total. Nem sequer havia colchões para as camas. Mas para o Raul, vivia-se no melhor dos mundos. Quando alguém se queixava das dificuldades, lá vinha o fatal "é mato", e estava tudo explicado.
O Raul, o "Laul", como os macondes pronunciavam, sendo sipaio, exercia por "acumulação" e, julgo que por conveniência própria, as funções de chefe da povoação.
Como quase régulo que era, casou com a mulher mais desejada do aldeamento, a Beata, uma jovem maconde muito bela, apesar das tatuagens, e de quem já tinha um filho. Foi ele mesmo que a capturou no mato. Se já era casada ou não, foi coisa que ninguém lhe arrancou da boca. Se casou de livre vontade ou não, ninguém o sabia ao certo... Desagradar ao Raul não era das coisas mais sensatas que se podia fazer naquelas paragens. Para mais, era conhecido pelo ódio visceral que devotava aos macondes, que considerava uma raça inferior.
Nos patrulhamentos que se faziam pelo mato, tanto no planalto como no vale, era o Raul que seguia na frente como guia. Não sabia ler, mas o mato era para ele um livro aberto. Os analfabetos éramos nós. Uma simples marca na areia de um trilho era um autêntico capítulo duma obra literária. Depois, "lia" para nós:
- E uma pegada de mulher velha, ia com pressa e carregada. Ainda era noite.
- Como é que sabes tudo isso?
- É fácil. Tem o pé pequeno de mulher, os dedos já estão muito grossos devido à idade, a marca é funda por causa do peso, e os dedos estão mais fundos que os calcanhares, porque estava a andar depressa! Era noite, porque as pegadas de quizumba estão por cima. A quizumba passa aqui de madrugada, para ir beber.
Simples e claro como água! Sempre que se via algum indício, era uma autêntica lição de leitura. Para ele, o mato era um livro, as pegadas os parágrafos, o orvalho as páginas, e as chuvadas novos capítulos.
Se tinha sede, com a catana cortava um pedaço de liana trepadeira, aprumava-a por cima da boca e bebia a seiva fresca, tal como ensinam os manuais de sobrevivência! Eu próprio provei aquela água, que era deliciosa. De manhã, fazia uma toilette cuidada, que incluía a lavagem dos enormes e alvos dentes. Cortava um pequeno pau, trincava-lhe a ponta até formar um pincel, e escovava cuidadosamente a dentadura. Perante o nosso pasmo, a explicação do costume:
- É mato...
Como não há bela sem senão, com o Raul, tal como para a generalidade das gentes do mato, havia uma dificuldade inultrapassável: o tempo, ou melhor, o conceito e a gestão do tempo. Nas sociedades pouco desenvolvidas, e com pequena capacidade para influenciar o curso natural das coisas, as pessoas são fatalistas e levadas a acreditar que a sua vida é condicionada por forças superiores, apenas influenciáveis por intermediários especiais, possuidores de conhecimentos ou poderes misteriosos. É da suprema vontade dos espíritos, feitiços, deuses, crenças várias, que depende o seu destino. Não sabendo sequer em que dia do nosso calendário nasceram, e não vendo a morte como um fim, a medida exacta do tempo tem para elas pouco sentido. O relógio, coisa de branco, é bom para fazer chibante,3 mas pouco ou nada contribui para influenciar as atribulações da vida. Quando muito, serve para fazer as coisas que os brancos querem, quando eles querem. O que tem que ser, tem que ser, não importa quando.
Este homem que dominava o mato, era completamente incapaz de perceber o que queríamos, quando o importunávamos com perguntas do género:
Raul, falta muito? E longe? Quando vamos chegar? Vamos atingir o objectivo durante o dia?
A resposta era sempre a mesma:
- É já ali à frente, falta pouco.
Na verdade, no meio do mato, que diferença fazia? Agora ou logo, hoje ou amanhã, era tudo a mesma coisa. O destino é que regulava os acontecimentos, não o relógio.
Uma tarde, durante um patrulhamento, enquanto se descansava no que restava duma aldeia abandonada do vale, Raul deu um pulo e correu para a periferia do improvisado estacionamento. Em frente, corriam duas cabeças de carapinha curta, só visíveis por cima do capim. Ninguém antes tinha notado ou ouvido fosse o que fosse. Com a surpresa, os mais assustados esvaziaram carregadores de rajada. Raul desapareceu. Ordens de cessar fogo imediatamente. Cabeças junto ao chão espreitando através dos pontos de mira.
Raul aparece, furioso com duas velhas quase dependuradas nos enormes braços.
- Fazer fogo contra duas mulheres? Quase que me iam matando!
Fiquei comovido ao ver aquela bisarma de ar temível a defender a vida de duas mulheres, velhas andrajosas. Na confusão, uma delas perdeu o rídona e o lábio superior pendia-lhe quase até ao queixo. Não descansou enquanto não preencheu o buraco vazio com um pedaço de folha de bananeira, enrolado à medida.
Expliquei-lhe que não sabíamos que se tratavam de mulheres, que para nós, cabelos curtos significam homens, e que estávamos tensos, num ambiente desconhecido. Que os soldados foram apanhados de surpresa e tinham pouca experiência, etc. O Raul percebeu a explicação, e acalmou.
Prosseguimos com cuidados redobrados. O curto tiroteio desencadeou uma onda de alarme. Ao longe, ouviam-se tiros de canhangulo e gritos:
- Tropa, manhoco4 ! Tropa manhoco! Ao anoitecer, montada a segurança, aparece o Raul com a proposta mais inesperada:
- Deixe-me matar estas velhas. Não custa nada...
- O quê? - respondi perplexo. - Matar as velhas, mas porquê? Não estás bom da cabeça, Raul.
Parecia uma criança, a quem tiravam o brinquedo preferido.
- É só esta vez... Aqui só estão a atrapalhar; não vão fazer nada para Muidumbe; são tão velhas, que não servem para nada!
Embora reconhecesse que eram umas carcaças à beira da cova, argumentei enquanto pude. Mas apercebi-me cedo, de que pouco valia confrontá-lo com os nossos conceitos morais. Eu vinha de um mundo totalmente diferente.
- Não matas as velhas, porque eu não quero. E uma ordem!
Acatou a decisão sem murmurar, e o assunto ficou encerrado. Raul era ao mesmo tempo fera e cordeiro. Tinha um coração de passarinho. Era obediente, prestável e simpático. Os soldados gostavam dele, e admiravam a sua coragem, destreza e argúcia. Quem o visse a brincar com o filho ao colo, ou a jogar a bisca com os outros sipaios, nunca imaginaria do que era capaz no mato.
O ódio e o desprezo pela raça maconde ultrapassavam o nosso entendimento. Era qualquer coisa de ancestral, de atávico. Talvez fosse por isso, que a sua colaboração com as autoridades fosse tão dedicada. Mas, parece-me que as verdadeiras razões, por que arriscava a vida quase todos os dias, continuarão a ser um mistério. Talvez por simpatia pelo "nosso lado", talvez por algo mais profundo, mais ligado a um longo passado histórico e lendário. Mais um mistério africano que ficará por desvendar.
Raul morreu numa madrugada chuvosa, à saída de Miteda, na picada para Mueda. Uma granada de lança foguetes de fabrico chinês atingiu-o em cheio nas pernas, que literalmente desapareceram. Das coxas, sobravam dois disformes rodilhões de carne dilacerada, a jorrar sangue. Com o Raul, na emboscada, tombaram alguns dos seus companheiros brancos e, mais à frente, alguns dos emboscados.
A vida fugia-lhe, no meio de uma enorme poça de água, onde se misturava sangue de várias raças. A sua volta, homens mal refeitos do susto, tentavam a todo o custo dar algum consolo aos últimos momentos de vida, daquele que viam como um verdadeiro herói. Raul ouvia em silêncio. Olhava para os presentes, como quem quer guardar uma boa recordação para a eternidade. A cabeça começava a pender-lhe, como se estivesse com muito sono... Apenas comentou com um sorriso:
- É mato...

1 Novos, numa das línguas do Sul de Moçambique.
2 Velhos, idem.
3 Bonito, vistoso.
4 Tropa, filhos da puta.

Edição de 1996

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