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DOCUMENTOS DO IMPÉRIO


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EDUARDO MONDLANE

1968


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Educação e submissão


               As  escolas são necessárias, sim, mas escolas
                       onde ensinemos ao nativo
                  o caminho da dignidade humana
                 e a
grandeza da  nação que o  protege*
                     Carta  pastoral do Cardeal  Cerejeira,
                        Patriarca de Lisboa, 1960.

 

Tem  sido costume entre os  Europeus e  os Americanos
conceber todo o pensamento humano como proveniente do
espirito ocidental. Em  particular à África nunca  foi atribuída
qualquer contribuição para o desenvolvimento humano; sempre
foi olhada como um mundo fechado e completamente atrasado,
trazido para a corrente do desenvolvimento em resultado da inva-
são europeia. Estudos mais recentes têm provado que estas afir-
mações resultam da introversão e etnocentrismo do pensamento
ocidental. A obra de Leakey  apontou  para a África central e
oriental como possível berço da sociedade humana na sua forma
mais primitiva**. Em tempos muito mais recentes, há cinco ou
seis mil anos, foi no vale do Nilo  que se desenvolveu  pela
primeira vez aquilo que se convencionou chamar sociedade
"civilizada". Eaquanto os Europeus ainda viviam em sociedades
tribais primitivas, isolados na cintura das  florestas nórdicas,
os Africanos do Norte estavam aprendendo a dominar o meio
ambiente, desenvolvendo a tecnologia e constituindo uma socie-
dade estável e complexa. Já utilizavam a matemática para medir


   * O sublinhado é meu.
   ** Adam's Ancestors, Methuen, 1934
.
a terra, calcular o movimento dos astros e desenhar grandes
e complicados edifícios; inventaram algumas das primeiras
técnicas de extracção de minério,  fundição e forja do ferro;
deram  alguns dos primeiros passos na ciência médica. Foi esta
sociedade que absorveu os primitivos invasores muçulmanos,
e por meio  duma fusão cultural criou a aperfeiçoada cultura
islâmica na África, a partir da qual a Europa ganhou muitas
das ideias científicas que tornaram possível a Renascença. E não só
as regiões de influência islâmica se podiam gabar duma cultura
material avançada. Sabe-se hoje que algumas cidades da África
ocidental e do Congo foram construídas antes da adopção do
Islão. E se nos últimos cinco ou seis séculos a África deixou
de estar na vanguarda do desenvolvimento, nem por isso foi
um   "continente fechado". Há vestígios de consideráveis trocas
culturais entre as várias zonas de África, e entre a África e o
Médio Oriente e a índia.
   Enquanto  os arqueólogos e historiadores mostraram a
falsidade histórica da tese do "Continente Negro", os soció-
logos atacaram outros aspectos da mesma. Os Europeus su-
punham  que, porque a África estava atrasada no tempo em
que a invadiram, os Africanos não tinham cultura alguma,
nem  moralidade, nem instrução. Hoje, já se compreendeu que
havia várias culturas em África, algumas mais complexas do
que  outras, mas apresentando  todas elas aspectos morais e
métodos  educacionais, mediante os quais as crianças podiam
absorver a cultura e tornar-se membros bem adaptados à socie-
dade onde tinham nascido.
   Tudo  isto está já suficientemente reconhecido na maioria
dos países da Europa e da América, e não há necessidade de
insistir mais neste ponto e aqui. Mas,  fora dum  reduzido
círculo de peritos, o reconhecimento destes factos é em grande
parte o resultado do período pós-colonial. Convém evidente-
mente  a um  governo  colonial a noção de  que a  cultura
do colonizado ou  não existe ou não  tem qualquer valor -
demasiado  conveniente  para  permitir a  simples cientistas
corrigirem-na.
   Os colonialistas em geral desprezaram e ignoraram  a
cultura e educação  africanas tradicionais. Assaltaram-nas, ins-
tituindo uma  versão do  seu próprio sistema de educação,
totalmente fora do contexto, que viria a desenraizar o Africano
do  seu passado e a forçá-lo a adaptar-se à sociedade colonial.
Era  necessário que o  próprio  Africano adquirisse desprezo
pêlos seus próprios antecedentes. Nos territórios portugueses
a educação do africano teve duas finalidades: formar um ele-
mento  da população que agiria como intermediário entre o
estado colonial e as massas; e inculcar uma atitude de servi-
lismo no africano educado. Estes dois fins estão claramente
expostos numa  carta pastoral do Cardeal Cerejeira, em 1960:

   "Tentamos atingir a população nativa em extensão e profun-
didade para os ensinar a ler, escrever e contar, não para os fazer
'doutores*. [...] Educá-los e instruí-los de modo a fazer deles
prisioneiros da terra e protegê-los da atracção das cidades, o
caminho que os missionários católicos escolheram com devoção
e coragem, o caminho do bom senso e da segurança política
e social para a província. [...] As escolas são necessárias, sim, mas
escolas onde ensinemos ao nativo o caminho da dignidade
humana  e a grandeza da nação que o protege."

    Em  todos os níveis, as escolas para africanos são primeiro
que tudo agências de expansão da língua e da cultura portu-
guesas. Em  geral, o ideal português tem sido procurar que
uma instrução controlada vá criando um povo africano que
fale só português, que abrace só a Cristandade e seja tão inten-
samente nacionalista português como os próprios portugueses
da metrópole." Se todos os africanos de Angola, Moçambique
e Guiné-Bissau se tornassem naturais portugueses, sonharam
os Portugueses, não haveria ameaça de nacionalismo africano.
Mas em 1950 só 30089 africanos* em Angola e 4554 em Mo-
çambique  tinham atingido o estado de assimilação à cultura
portuguesa legalmente reconhecido.

    * Este número inclui familiares de africanos e mulatos.

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