UM ACONTECIMENTO HISTÓRICO NOS ANAIS DA CÂMARA DO  COMÉRCIO

Logo que chegou a Lourenço Marques a notícia de que Sua Alteza o Príncipe Real D. Luís Filipe tinha embarcado em Lisboa com rumo a África, para uma visita de estudo a algumas das províncias portuguesas, entre as quais figurava Moçambique, a população e entidades oficiais empenharam-se com entusiasmo na tarefa de uma recepção condigna e de festejos populares. Nomearam-se comis­sões ; fizeram-se programas e prepararam-se laudatórios e patrióticos discursos alguns dos quais não chegaram a ser proferidos.

Os telegramas do Cabo Submarino para Londres, Paris e Lisboa davam uma nota flagrante da ansiedade e nervosismo das altas esferas sociais ; além dos negócios do costume relacionados com o embarque de produtos coloniais para Marselha, Hamburgo e Estocolmo, aberturas de créditos e outras transacções e ainda notícias de carácter geral, tratavam de assuntos aparentemente triviais mas que, na verdade, se revestiam de alta importância pois que afectavam directa­mente o prestígio e o bom nome dos colonos destes Territórios; tais telegramas pediam a remessa urgente de chapéus altos, vestidos, casacas e sobrecasacas.

Sua Alteza tomava a imaginação das mulheres da pequena colónia europeia como um príncipe dos maravilhosos contos de fadas — e não tiveram desilusões: as suas expectativas foram excedidas; o Príncipe deixou-lhes recordações que nunca se deveriam apagar, pela sua esbelta figura e pelo encanto das suas maneiras e trato.

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Pouco antes da uma hora da tarde do primeiro dia de Julho, Sua Alteza Real tomou no cais do Arsenal a galeota que o levou ao navio África que, uma hora antes, havia largado a amarração do cais de Santa Apolónia e, subindo o rio, viera lançar ferro em frente ao Arsenal da Marinha a cerca de meia milha de distância. Acompanharam-no Suas Majestades El-Rei D. Carlos e a Rainha D. Amélia, seu tio D. Afonso e seu irmão o Infante D. Manuel, e noutras em­barcações os altos dignitários da corte e membros do Governo da Nação. Curta demora a bordo ; depois das despedidas as galeotas largaram o costado do navio levando para terra a Família Real, sua comitiva e outras pessoas.

O Africa, festivamente engalanado, levanta ferro e começa a navegar ; uma fragata dá a salva de vinte e um tiros e a seguir, à medida que o navio desce o Tejo, ouvem-se as salvas da bateria do Bom Sucesso e dos cruzadores São Rafael e Vasco da Gama, ancorados a oeste da Torre de Belém e, por último, as da bateria de São Julião. Passada a barra grande o navio entrou no mar alto para seguir um roteiro histórico cuidadosamente marcado.

O jovem príncipe, na amurada, ao ver apagar-se no horizonte o dorso alcan­tilado da serra de Sintra há-de ter sentido a funda mágoa que toca o coração de todos os portugueses que partem, e os seus braços ter-se-ão levantado repetindo o gesto comum de um adeus murmurado em íntimo recolhimento.

O comandante do navio, Guilherme A. Vidal Júnior, dá-nos no seu livro uma descrição pormenorizada da viagem, da vida a bordo, da chegada aos portos, das recepções e festejos em homenagem a Sua Alteza, que se lê com vivo interesse e emoção. Era um moço príncipe da nobre e antiga Casa de Bragança que vinha conhecer terras de África que continuavam a nação, numa viagem de estudo das suas actividades económicas e dos seus povos formados por gentes várias, algumas estranhas, ligadas fortemente pêlos elos da mesma fé cristã, da mesma língua e dos mesmos sentimentos de amor pátrio ; a viagem seria um complemento da aturada e cuidadosa preparação a que tinha sido submetido desde criança para o penoso ofício de rei, como primogénito e herdeiro presuntivo do trono.

Diz o comandante, para ilustrar a simplicidade, afabilidade de trato e comunicabilidade do príncipe, que Sua Alteza Real mandava convidar todos os dias para almoçarem à sua mesa, dois passageiros, tendo iniciado os convites pelos primeiros a desembarcar nos portos da escala.

Em Luanda, onde desembarcou no dia 17, foi recebido pelo capitão de arti­lharia Henrique de Paiva Couceiro, ilustre Governador-Geral de Angola, que três anos depois viria a ser reconhecido como o mais dedicado servidor da coroa, não como palaciano mas como soldado.

Passada a Inhaca, o navio lança ferro às 5 ½ horas da tarde ao largo da Ponta Vermelha. Na manhã seguinte às 8 horas, a bateria da Ponta Vermelha dá três tiros de peça como sinal para a entrada e o navio imediatamente suspendeu e seguiu a navegação pelo canal da Polana. Atracou no cais Gorjão às 9 ½ horas.

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À Associação Comercial de Lourenço Marques coube o papel mais importante na organização dos festejos e da recepção. A situação financeira da Câmara Muni­cipal era deficitária;  não tinha dinheiro; tinha dívidas e compromissos; devia ao Banco Ultramarino 540 contos e ao comércio no. E, então, como hoje, tanta coisa por fazer ! A Associação tomou a seu cargo a construção de um arco triunfal, colunas, e a organização de um baile grandioso para o qual foram convidadas trezentas pessoas. Poderíamos indicar o custo destas despesas em cifras que hoje se nos afiguram ridículas. Não consideramos isso digno de menção — não era momento próprio para se olhar a gastos.

A iluminação da Avenida D. Carlos, e outras ruas foi imponente, e o fogo de artifício importado directamente de Portugal para as festas deslumbrou pretos e brancos ; foi uma verdadeira maravilha.

Sua Alteza chegou a Lourenço Marques no dia 29 de Julho. O Ministro do Ultramar, Aires de Orneias c Vasconcelos, que o acompanhou trouxe como pre­sente o Decreto da Organização Administrativa da Província que vigorou até à publicação do Decreto n.º 23 228, de 15 de Novembro de 1933, isto é: vinte e seis anos. No dia imediato houve parada de 22 000 indígenas do Sul do Save — entre os quais figuravam os vátuas de Gaza, tribos das terras da Magaia c da Cossine — e o mais grandioso batuque de que há memória. Este é, sem dúvida, o pormenor mais importante a registar do programa dos festejos, porque dava um testemunho vivo do nosso prestígio e confiança junto dos povos nativos, da harmonia das nossas relações, e da lealdade admirável desses mesmos povos que compartilhavam com a população o seu grande regozijo pela visita de um Prín­cipe da Casa Real.

O grandioso baile de gala dado pela Associação em honra de Sua Alteza realizou-se na noite de 31 de Julho no grande salão do primeiro andar de um edifício da Rua Araújo (em frente ao Carlton Hotel, onde durante muitos anos funcionou a Associação dos Empregados do Comércio). O Principe abriu o baile dançando com a ilustre e formosa senhora D. Sofia Cagi. Falou-se durante muito tempo do baile e as senhoras de então nunca chegaram a acordo sobre este ponto de magna importância: — a quem é que devia competir a honra da primeira contradança com Sua Alteza?

Mas não houve só festas. Tratou-se também de assuntos de alta gravidade.

No dia 9 de Agosto o presidente da Associação Comercial recebeu, expedido da Beira, um telegrama do ajudante de Sua Alteza, dizendo: “- Sua Alteza agra­dece amável recepção - Costa». A sobriedade da linguagem protocolar não cor­respondia exactamente à grandiosidade e entusiasmo da festa. Mas, na verdade, tratou-se também de assuntos sérios.

Sua Alteza e comitiva regressaram a Loureço Marques, da sua breve visita à Beira, Moçambique e Quelimane, no dia 16 de Agosto. No dia imediato a Di­recção da Associação Comercial teve uma reunião extraordinária a que estiveram presentes o Conselheiro Aires de Orneias e Vasconcelos, Ministro da Marinha e Ultramar, e o Conselheiro Alfredo Augusto Freire de Andrade, Governador-Geral da Província. A reunião, realizou-se pelas 11 horas no referido edifício da Rua Araújo. Solenemente, o presidente da Associação, Sr. Leão Cohen, leu a longa exposição laboriosamente preparada sobre os problemas do momento. Submetiam--se à consideração de suas excelências e pediam-se providências, entre outros, os seguintes pontos:

a) Tratado Comercial com o Transvaal, havia sido negociado e era urgente a realização de outro que salvaguardasse a entrada dos nossos produtos naquele território, livres de direitos, medidas sobre emigração dos trabalhadores nativos e obrigação do seu repatriamento após os contratos ;

b) Péssima situação financeira da Câmara. Suas dívidas. Necessidade de um empréstimo de 1125 contos para se fazer a drenagem das águas pluviais e outros melhoramentos urgentes. Criação de novas receitas municipais «... que poderão ser dez réis por litro em todo o vinho importado e uma licença de trân­sito sobre os indígenas que trabalham na cidade ...”, diz o memorial.

c) Décima de juros que, no dizer do presidente da Associação se opunha à colaboração e entrada de capitais estrangeiros ;

 

d) Construção de linhas férreas de penetração c exploração económica do vasto território da Província ;

e)       Dragagem do canal da  Polana ; eram constantes os encalhes de navios ;

f)        Pede-se a aprovação do foral da cidade de Lourenço Marques ;

g) Repressão de bebidas; era o principal negócio; fabricavam-se bebidas alcoólicas clandestinamente e era urgente a fiscalização e disciplina deste comér­cio. Recomendava-se como medida salutar um imposto de dez réis por litro para se obterem receitas para a fiscalização;

h) Contribuições e multas ; a má situação dos negócios impossibilitava o pa­gamento das contribuições por parte de um grande número de contribuintes; pedia-se a suspensão das multas e outras medidas ;

i) Estado sanitário da cidade; merecia cuidados; nesse tempo ainda o uso interno do álcool tinha um grande papel na terapêutica da malária , as poções de quina eram desagradáveis de tomar.

        Impunham-se uma acção vigorosa para a eliminação total dos pântanos ainda existentes e a construção de esgotos. Enfim, preconizava-se ainda a reali­zação de um grade empréstimo para a Província ... (-- «que o dinheiro venha para a Província para aqui ser gasto em obras de fomento ...”).

       O Governador-Geral considerou todos os pontos da exposição relacionados com o seu Governo e com o Município. Ao referir-se às relações económicas e polí­ticas com a União Sul-Africana expõe os pontos de vista largamente tratados nos seus relatórios, a segurança, larguesa e o apetrechamento do porto de Lou­renço Marques dão-lhe o primeiro lugar e a maior importância na classificação dos méritos dos portos abertos à exploração marítima no continente africano; é, sem favor, o melhor. A sua situação privilegiada torna-o, para os territórios vizinhos em objecto de desígnios e atenções que influenciam profundamente as relações. Por outro lado a forte concorrência que lhes é feita pêlos portos de Lourenço Marques, Beira e Lobito afecta o desenvolvimento dos seus portos. As convenções ou acordos tornam-se pois numa necessidade imperiosa tanto para eles como para nós ; dispúnhamos do porto do qual dependiam exclusivamente, alguns anos antes de extinta a república transvaliana, para as suas relações com o exterior ; dispúnhamos da mão-de-obra sem a qual não seria possível a explo­ração mineira desses ricos e vastos territórios com a intensidade e urgência requeridas pelas suas necessidades. Por nossa parte, necessitávamos do seu tráfico e de relações amistosas que lhe permitissem um intercâmbio comercial que dia a dia se tornava mais importante. Era a razão de ser do nosso caminho de ferro, do cais e apetrechamento do nosso porto. A convenção seria feita ; teríamos de contar porém com uma guerra de tarifas que só poderia desaparecer quando fosse excedida a capacidade de exploração dos portos envolvidos na luta da concorrência.

O Ministro abordou largamente os assuntos fundamentais sobre os emprés­timos à Província e ao Município ; o problema da revisão das pautas aduaneiras — em Angola tinha encontrado para resolver o mesmo problema --; a orientação da política do Governo nas relações da Província com os territórios vizinhos e anuncia a próxima transferência do Tribunal da Relação para Lourenço Marques.

Faz ainda em termos eloquentes o elogio do Governador-Geral dizendo que todos reconheciam a sua superior inteligência, competência e patriotismo e o interesse que põe no estudo dos problemas da administração da Província.

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Entre as numerosas mensagens de boas-vindas apresentadas a Sua Alteza Real figuram as que lhe foram lidas pelos Mayors dos municípios da União Sul--Africana: de Vereeniging, Pretória, Johannesburg, Pietermaritzburg, Durban, Harrismith, Bloemfontein e Cape Town.

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Vindo do norte o África atracou na ponte cais às 18 ½ horas do dia 16 de Agosto. Sua Alteza desembarcou e seguiu, de comboio, com sua comitiva para Cape Town onde tomaria de novo o navio, no dia 31, para o seu regresso a Portugal.

A recordação da sua visita mantém-se ainda viva, na memória dos velhos colonos, com um misto de simpatia, saudade e respeito pela memória desse infor­tunado príncipe.

O Príncipe figura na história como um meteoro que sulcou o espaço deixan­do-nos por alguns momentos deslumbrados com o seu fulgor. Representava as maiores esperanças que eram bem fundadas, não só pela sua educação, corno pelo seu carácter, patriotismo e inteligência. Para evocá-lo vamos recorrer às referências que o Sexto Marquês de Lavradio, seu fiel servidor, amigo dedicado e companheiro lhe faz nas suas memórias.

Diz, ele, de Sua Alteza: «... era alto, louro, tipo nortenho, cultivava os desportos, principalmente o automobilismo e a caça. — A educação de SS. AA. (D. Luís Filipe e D. Manuel) fora muito cuidadosa tanto sob o ponto de vista científico como moral e ambos tinham além de uma funda cultura uma verdadeira noção da honra, da lealdade e do dever. — ... era mais inteligente que o vulgar, sendo ao mesmo tempo o homem mais leal, mais franco, mais nobre, mais valente que tenho conhecido. Falava pouco e devagar e ouvia sempre com atenção.» Págs. 52, 53 e 54.

Seu Augusto Pai tinha-o preparado para ser um seu digno sucessor. A sua vinda ao Ultramar obedecia aos desejos de El-Rei que considerava que tal pre­paração não seria completa sem que Sua Alteza conhecesse as nossas possessões ; correspondia ainda ao desejo do próprio Príncipe que também assim pensava.

Refere o marquês nas suas memórias que Sua Alteza quando na Câmara Municipal de Pretória teve de responder às mensagens que lhe foram dirigidas, o fez de forma brilhante, realçando factos históricos do passado e do presente da África do Sul, revelando conhecimento sobre a vida do país que bem paten­teavam o cuidado e a seriedade dos seus estudos.

Passadas as paixões que agitaram e profundamente dividiram a nação, em campos inimigos e implacáveis a história atenta no seu nome ; estuda a sua perso­nalidade e faz-lhe justiça.

Foi um grande Príncipe que o povo bem amou.

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