Pioneiros

 

Por alvará de 19 de Agosto de 1911 o alto Comissário da República na Pro­víncia, Dr. José Francisco de Azevedo e Silva, aprovou o projecto de alteração dos estatutos da sua constituição que a Associação Comercial de Lourenço Mar­ques lhe apresentara. Por força do disposto no artigo primeiro dos novos estatutos esta antiga colectividade passou a denominar-se Câmara do Comércio de Lourenço Marques, mantendo-se os objectivos de promover e proteger os interesses do comércio, indústria e navegação do porto e distrito de Lourenço Marques, etc., incluindo nas suas obrigações a sua colaboração, que a todos os títulos foi notável, à administração pública.

A vida da colectividade, nos setenta e cinco anos decorridos desde a sua fundação, é a vida da própria cidade, com as suas lutas, sobressaltos, prolongadas crises políticas, financeiras e económicas, ansiedades, esperanças e as grandes alegrias do triunfo que saravam sofrimentos e apagavam da memória os grandes revezes sofridos. Lourenço Marques é o fruto do labor dos seus colonos e o grande quinhão, nesse labor honrado pode-se, com segurança, dizer que pertence à gente do comércio, desde o humilde mercador dos primeiros tempos — Lourenço Marques, não foi somente um navegador, ao serviço de El-Rei de Portugal, com a missão de explorar a costa africana ao sul de Sofala, de colher informações sobre os seus povos, os seus portos e riquezas, ele foi também um mercador e como explorador e mercador meteu-se corajosamente pela baía que tem o seu nome (a da Boa Paz ou Fermosa dos cronistas do século XVI) e explorou os seus rios fazendo o resgate do marfim, cobre e outros produtos.

       A associação viu derruir a muralha e os seus baluartes que circunscrevia pelo norte, pelo este e oeste o acanhado burgo às estreitas línguas de areia solta que emergiam das margens lodosas do Estuário do Espírito Santo e que o mar ameaçava tragar quando dos grandes temporais. Tomou através dos seus mem­bros parte activa na administração municipal, nos órgãos de justiça e de admi­nistração pública. A partir da reorganização administrativa da Província de Mo­çambique, de 1907, que marcou uma nova fase na evolução dos nossos processos administrativos, dentro dos princípios preconizados por Rebelo da Silva que recomendava «... é preciso que se lhe iniciativa e acção local, reconhecendo-lhe a maioridade e a capacidade e, dando-lhe a Metrópole liberdade de se governar, deixe-se-lhe a responsabilidade que lhe caiba ...”, a acção dos membros da associação tornou-se verdadeiramente notável. No Conselho de Governo, criado pelo artigo 47 “ do decreto de 23 de Maio, composto de dez membros natos e oito eleitos em representação das actividades económicas e dos proprietários da capital e dos distritos figuram os seguintes colonos como representantes do comércio e indústria e proprietários cujos nomes ainda hoje nos são familiares: — eleitos pela Associação Comercial, efectivos: Dr. Angelo Ferreira e Ernesto Torre do Vale;  suplentes: Alexandre Couto e Clemente Nunes de Carvalho e Silva;  eleitos pela Associação dos Proprietários: Dr. Eduardo de Almeida Saldanha, como efectivo e Francisco Inácio de Mendonça, como suplente. Também no Conselho de Distrito, nomeados por portaria de 15 de Janeiro desse ano de 1908 vamos encontrar nomes que perduram ainda hoje, entre nós, através dos seus descendentes ; foram nomeados como representantes do comércio e indústria: José Joaquim de Morais e Alexandre Couto, efectivos, e Alfredo Luís e José Maria da Costa Veiga, suplentes ; por parte dos proprietários: Eduardo David da Silva e Luciano Inácio Féliz, efectivos, e Pedro Xichorro e Manuel Lopes de Araújo Gomes, suplentes. No Conselho de Administração do Posto além do Presidente da Associação Comer­cial  João José Machado, vamos encontrar de novo os nomes já familiares de Ernesto Torre do Vale e Alexandre Couto.

Soldados e mercadores ; foram com frequência, simultânea e sucessivamente, uma coisa e outra os nossos bravos colonos que trouxeram de Portugal, além do vigor dos seus braços, um sonho grande que nascera na hora em que foram apa­relhadas as vigas, os pranchões e os mastros dos pinheiros das dunas de Leiria que se afeiçoaram nas primeiras embarcações lançadas ao mar para um destino incerto e trágico, para a grande aventura que jamais morreria: — Que vão com Deus, clamava o povo que as via partir levando os melhores, os mais ousados dos seus filhos.

Num recolhimento íntimo que o bulício desta grandiosa cidade, vindo de longe nos chega mal abafado pela espessura das paredes, e nos perturba o espí­rito, tentamos em vão destacar algumas personagens que desejaríamos pôr em relevo, dar-lhes vulto e rememorar: — os feitos heróicos de uns e o labor e o fim trágico de outros. Mas, por onde começar? De alguns seria tarefa fácil e fastidiosa recordar-lhes os nomes que figuram nos anais da nossa história ultramarina, em monumentos dispersos pelo sertão, nos letreiros das praças e ruas da cidade e ainda, nas lápides semi apagadas de cemitérios abandonados. Ficaria, porém, de fora a grande massa anónima dos cabouqueiros que lança­ram as sólidas fundações em que assenta o progresso e a prosperidade destes territórios, preparando-os para um futuro de paz. Tarefa demasiado grande que jamais ficaria completa.

Não tentámos realizá-la. Não seria possível seguir os passos dos ousados colonos que, cheios de esperança, de optimismo e coragem, cheios de fé, se me­teram pêlos caminhos agrestes do sertão, não como os aventureiros pesquisadores de ouro e pedras preciosas, nómados do mato que chegam e partem como aves de arribação, à procura de fantásticos filões de que ouviram falar, mas tão so­mente como homens que desejam apenas algumas geiras de terra que possam trabalhar com os seus próprios braços, que possam chamar sua — que seja sua.

O navio chegou e eles partiram para o interior mal despertando a curiosi­dade à sua passagem. Ninguém tentou saber os seus nomes ; ninguém atentou nas suas feições ou no seu vestuário ; é gente humilde que segue o seu destino. Mas, não tarda que se fale dos seus trabalhos e que se destaque, com respeito e admiração o nome de um ou de outro que tenazmente, com perseverança e não se poupando a canseiras, desbravou o mato, cultivou a terra, fez albufeiras e rea­lizou uma obra que parece mais de gigantes do que de simples e modestos mortais.

Agricultores e criadores de gado, a terra dá-lhes o sustento e os elementos fundamentais de uma economia sã.

Surgem as povoações, que num futuro não muito distante, serão vilas e cidades ; e as estradas que ainda há pouco eram trilhos de chão bravio, que ensan­guentaram seus pés e rasgaram as suas roupas. As casas são de alvenaria; os colonos que as levantaram sentem-se protegidos pêlos seus tectos e, satis­feitos, acompanham com o olhar os filhos que vão para a escola,  olham agora serenamente e com confiança à sua volta e sentem e sabem que não estão em terra estranha; as incertezas e sobressaltos dos primeiros tempos deram lugar à tranquilidade e aos cuidados duma vida normal; fala-se português — a língua que trouxeram de além-mar, que será dos seus netos e das gerações que lhes sucederem. As leis que os regem são suas ; não têm nada de estranho ; são os elos robustos e indestrutíveis de uma tradição multissecular que os mantêm unidos, que os protegem e os torna fortes. Os costumes da grei conservam-se e não se consente que sejam adulterados ; no templo modesto soam as badaladas do sino de bronze que os chama às suas obrigações religiosas, que anunciam com alegria o baptismo de uma criança e as festas tradicionais do padroeiro. Fundaram na rocha a sua casa ; tornaram um pouco maior a Pátria lusa.

Mal repararam neles quando chegaram ; mas, a testemunhar os seus esforços e as suas lutas ficaram o frutos do seu trabalho: — esta obra admirável de colo­nização e civilização que nos impõe ao respeito dos inimigos de sempre.

Cumpre-nos continuar o seu trabalho.

VOLTAR