PAULINO   DOS   SANTOS   GIL

Em 1903 chegou a Lourenço Marques Paulino dos Santos Gil. Tinha dezanove anos de idade. Nasceu em Moita do Norte, Concelho de Vila Nova da Barquinha em 28 de Agosto de 1884. É possível que o navio que o trouxe tivesse já atracado à ponte-cais, ainda em construção, pois que foi nesse ano, no segundo semestre, que os navios, ajudados nas suas manobras pêlos rebocadores, começaram a acostar para as operações de carga e descarga.

As gazetas da terra assinalaram o dia do mês de Agosto em que atracou o primeiro navio, como o início de uma nova era que seria de paz e de trabalho, um dia festivo para a cidade que fez congregar no Cais Gorjão, para assistir às manobras, a multidão dos operários, dos homens da estiva, das autoridades do porto e da gente da cidade. Havia motivos para isso ; no Cais Gorjão estavam as nossas maiores esperanças e todos os recursos financeiros de que dispúnhamos e a que pudemos lançar mão e isso só foi possível com o sacrifício do progresso dos portos do norte da Província.

Para o jovem emigrante foi por certo maravilhoso o dia da sua chegada, depois de uma longa viagem de cerca de cinco semanas com escala por numerosos portos do Continente Africano. As impressões colhidas jamais se deveriam apagar da sua memória. Assim acontecia com todos os que vinham do Reino tentar fortuna. Nos últimos dias o navio navegara a poucas milhas de terra, com a costa do Natal à vista, e a ansiedade dos passageiros crescia à medida que se aproxi­mava do porto do destino.

A Ponta do Ouro foi-lhe assinalada como terra de Moçambique e a partir desse momento presta mais atenção ao contorno da costa baixa e arenosa, com as dunas de areia solta, que o sul por vezes sacode em rajadas violentas, a que muito a custo se agarra uma vegetação rasteira e pobre. Finalmente o navio chega ao extremo norte da ilha da Inhaca, aproa para oeste e devagar, cautelosa­mente, entra no canal que serpenteia entre baixios e ruma para o porto. Os passageiros já não deixam a amurada ; há sempre, entre eles, quem tenha viajado e que espontaneamente, num desejo súbito de se expandir e acalmar a sua excitação preste informações: — lá está a Xefina Grande ; aquela ao norte é a Pequena e a seguir são os dois braços do Incomáti. Sim, é o grande rio. Vem das montanhas do planalto de além da fronteira oeste, surgindo furioso pêlos desfiladeiros de rochas nuas cortadas a pique, precipitando-se com fragor nos fundões com uma torrente de espuma branca irisada pelo sol; chegado ao vale corre impetuoso abrindo fundo o seu leito na terra humosa continuando, depois, a marcha num chão pedregoso e em declive até Ressano Garcia e Muamba ; então, mais tranquilo, volta-se para o norte para as terras do Sábiè e Magude de onde ruma para sul, banhando as terras férteis da Manhiça, Calanga c Magaia até que, por fim, se entrega ao mar no abandono indiferente e resignado de uma fêmea cansada e vencida. — «Sim, além é a ponta da Maçaneta». Começa-se, então, a notar, com olhos maravilhados, a grandiosidade da baía. O navio cruza-se com outros que vêm do porto e com outros que entram, saudando-se por vezes. Já não são os sinistros veleiros e os misteriosos vapores estrangeiros que, como ladrões, frequentavam estes mares e aproavam ao Limpopo ou ao Incomáti e subiam os rios por algumas milhas para fazerem, com os nativos, o comércio ilícito de armas e munições destinadas a assassinar colonos pacíficos ou a levá-los à rebeldia. Os tempos eram, agora, diferentes. Os navios cruzavam-se na vasta baía com as bandeiras da sua nacionalidade desfraldadas no mastro da popa e saudavam-se num gesto tradicional que significava paz e votos de boa viagem.

O termo da viagem quebra o encanto dos longos dias descuidados e de descanso da vida de bordo e chama o emigrante, que de repente se torna mais grave e menos loquaz à realidade da sua situação ao confronto dos problemas do futuro e do dia de amanhã. Dobrada a Ponta Vermelha começa a desenrolar-se o panorama da cidade e colhem-se as primeiras impressões. Ainda que se esteja preparado pelo que se ouviu dizer ou por aquilo que se leu, o que agora se mostra aos seus olhos ávidos e atentos excede bem todas as suas expectativas causando-lhe uma surpresa justificável. A cidade é linda mas é uma cidade estranha, que não se conhece e as impressões que se sentem são, em muitos casos, como as que dominam o caçador inexperiente, que pela primeira vez vai para o mato e entra na selva cerrada. Mas, o moço Santos Gil é alegre, comunicativo, curioso e, acima de tudo, é corajoso e ousado. Desembarca alegre, satisfeito, notando tudo à sua roda, o trabalho dos guindastes, o movimento das pessoas, os armazéns, as mercadorias e os materiais de construção do cais amontoados por toda a parte, e é bem possível que tivesse dito para si mesmo, com optimismo e a con­fiança dos que triunfam na vida: — esta terra é minha!

Se assim foi, o futuro viria a confirmar que não tinha exagerado.

Empregou-se no comércio. Foi guarda-livros da casa Carvalho & David, cons­trutores que tinham a seu cargo os serviços de limpeza da cidade que, então, era feito com carroças puxadas a muares e cavalos.

A proclamação da República quebrou a tranquilidade sonolenta da vida administrativa da Província causando-lhe algumas perturbações que se sentiam ainda em 1912. O seu ilustre Governador-Geral Freire de Andrade deixa o governo e segue para Portugal: alguns altos funcionários resignam os seus cargos ; há substituições de chefes de serviço. A situação tornou-se embaraçosa porque não havia funcionários preparados e com a experiência requerida para as funções públicas de maior responsabilidade. Santos Gil foi nomeado para chefe dos Arma­zéns Gerais dos Caminhos de Ferro, cargo que desempenhou por algum tempo. Regressou ao comércio.

A certa altura, já estabelecido, Santos Gil arrematou em hasta pública, aberta pela Câmara Municipal, os serviços de limpeza da cidade que explorou por muitos anos. Trabalhador incansável estabeleceu com energia os alicerces da sua casa que viria a ser uma das mais importantes da praça.

Em 1915 assina com Pietro B. Bucellato e Tonetti, como empreiteiros, o contrato para a drenagem e aterro do pântano da Machaquene. Por parte do Estado outorgou no contrato o Dr. Francisco Frias, encarregado do Governo da Província.

Aparece-nos como Vogal das Direcções da Câmara do Comércio nos anos de 1916, 1917 e 1918. Veio posteriormente a exercer outros cargos na Mesa da Assembleia Geral.

O seu nome ficou ligado a grandes empreendimentos comerciais e indus­triais, cujas organizações se mantêm com prestígio e prosperidade. Activo e extraordinariamente inteligente vemo-lo a desempenhar papéis de relevo em todos os campos. Apraz-nos, sobremaneira, evocá-lo;  foi uma pessoa delicada e afável. A sua vida de trabalho impô-lo à consideração e respeito de todos os que o conheceram e pode ainda constituir um magnífico e encorajador exemplo para os jovens de hoje que iniciam a sua carreira. Foi incontestavelmente um grande trabalhador que viu coroados de merecido êxito os seus esforços.

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        É difícil falar de pessoas. Tratando-se mesmo daquelas que nos foram fami­liares deparamos,  sempre,  a certa altura com  um  muro intransponível,  formado pela falta de elementos de estudo, informações e pelo desconhecimento de factos que no-las poderiam revelar na sua maior beleza. Ficamos, assim, a ignorar importantes aspectos do seu carácter e das suas personalidades, os elementos necessários para um estudo sério.

Dir-se-ia que os homens, em regra, ao esconderem por modéstia ou pudor no seu íntimo os tesouros dos seus melhores sentimentos e os actos da sua bon­dade, procedem como os avarentos que escondem o seu oiro da própria luz do sol com uma diferença: — é que estes são levados a aferrolhar as suas moedas por motivos mesquinhos e condenáveis.

Não tentamos justificar-nos: — estas simples e breves notas têm apenas por fim lembrar alguns dos nomes que não devem ser esquecidos.

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