Lourenço Marques ou a busca nostálgica de uma cidade perdida

Lourenço Marques, de Francisco José Viegas, é uma viagem, embalada pelo vento de memória, à antiga cidade colonial,

 

Adelto Gonçalves

 

Escrito como se fosse um romance policial, Lourenço Marques, de Francisco José Viegas, é uma viagem, embalada pelo vento de memória, à antiga cidade colonial, a uma época pouco anterior à Revolução dos Cravos e ao processo de independência de Moçambique. Miguel, alter ego do autor, volta à "cidade das acácias", antiga pérola do Índico, 27 anos depois de a ter abandonado, para procurar uma mulher, Maria de Lourdes, aliás Sara, que agora é mais uma miragem.

De volta à cidade onde amou pela primeira vez, Miguel reencontra um país virado do avesso, embora não carregue dentro de si nenhuma saudade dos tempos do colonialismo. Para reencontrar essa mulher – mais uma entidade mítica do que um ser de carne e osso –, recorta o mapa de Moçambique, indo de Maputo a Pemba e a Nampula, da Ilha de Moçambique ao Lago Niassa, fazendo dessa busca um discurso nostálgico de uma África que não existe mais porque reconstruída pela memória. Miguel lamenta assim a perda de um mundo que não viveu: o amor da mulher que desapareceu, a oportunidade perdida de viver um grande amor, o arrependimento por não ter ficado e vivido as transformações (para pior ou para melhor).

Narrado em estilo límpido, fluente, em que fica claro o domínio pelo autor dos segredos da fabulação literária, Lourenço Marques exerce fascínio desde o início, quando, como numa narrativa policial, o leitor descobre logo nas primeiras linhas que um corpo apareceu inerte, numa manhã de março de 2001, num arrabalde de Maputo. É o corpo de Gustavo Madane, ex-homem forte do regime marxista, agora caído em desgraça, depois de ter sido um dos organizadores dos campos de "reeducação" e de abusar de suas funções.

Em seguida, começa o itinerário da busca da mulher amada por Miguel, que, nesse trajeto, acaba por cruzar com Domingos Assor, companheiro de infância, agora transformado em policial que investiga o assassinato de Gustavo Mandane. Em seu retorno à infância perdida, Miguel refaz a tessitura do tempo que vivera no início da década de 70. "Tinhas, portanto, quinze anos. Não. Dezasseis. Dezasseis e os grandes jogadores de basquete do Sporting de Lourenço Marques, Mário Albuquerque, Nelson Serra, Rui Pinheiro, os restaurantes da Facim, uma temporada de Lucília do Carmo e de Carlos do Carmo, o automobilismo sul-africano de fórmula um em Moçambique, com John Love, fumo a sair do motor, a velocidade a que o carro saiu da pista, e lembrava-se de Jody Scheckter na pista de Lourenço Marques e, sobretudo, daquele Renault Gordini branco, o Renault Gordini de Antunes Guimarães, branco com uma faixa dourada à volta (...)".

Na Ilha de Moçambique, Miguel encontra Abdurrazaque, xehe da mesquita do local, que havia trabalhado com seu pai numa empreitada para levar dois barcos gigantes para o Niassa. Abdurrazaque, que lhe recita de trás para a frente os versículos do Alcorão, faz-lhe reparar também que o mar da Ilha é diferente do mar do continente, "azul, amarelo, ocre, verde cinzento, um arco-íris, o mesmo arco-íris que Deus mostrou a Noé depois do dilúvio". No Niassa, Miguel é tratado pelo último médico branco de Lichinga, que ali aguarda a chegada da morte depois de ter sido abandonado pela mulher e de saber que está sendo corroído pelo câncer.

Durante esse périplo pelo país, de Norte a Sul, Miguel carrega consigo a lembrança de Lourenço Marques como a metáfora de uma vida que poderia ter sido – e não foi –, interrompida pela guerra e pela decisão do pai-engenheiro de retornar a Portugal. É uma Lourenço Marques que só existe na memória de quem a viveu e que Francisco José Viegas reconstrói com uma mestria que faz lembrar a Havana dos anos 40 e 50 recuperada por Guillermo Cabrera Infante em La Habana para un infante difunto.

Nessa busca nostálgica de uma cidade perdida, sente-se a voz de Rogéria, "a cantora brasileira do Denis Dwarte Show acompanhada pela Orquestra Moderna Os Embaixadores", vive-se o entrai-e-sai nas boates, "Tamila Dancing, ao lado do Pinguim e da Cave: Pepita Cortés, as argentinas Star Dancer´s, Rony Vali, a judia rodesiana Rochele, Consuelo Martinez e os Latin Soul Quartet, que apareceriam no programa "Chuva de Estrelas", de Maria Helena Bramão, na Rádio Clube de Moçambique. E os passeios, as entradas nos cafés, nas cervejarias, no Píri-Píri, o restaurante Vitória, a cervejaria Imperial, a pastelaria Cristal, o Baía, a Adega da Madragoa, o restaurante Comandante, no Hotel Cardoso, onde tocava o Quinteto de Pereira Pinto e Carlos Parker (...)"

Depois de percorrer todo Moçambique, Miguel ouve de um preto que a sua Lourenço Marques acabou há muito tempo. E que agora o que resta é uma cidade suja, "com merda onde deviam estar flores", depois da guerra fratricida e do fracasso da experiência socialista. Apesar disso, esta reconstituição que Francisco José Viegas faz de Lourenço Marques nada tem de ressentimento colonialista. Essa Lourenço Marques que recupera está reconstruída não só com memória mas também com muita fantasia, assim como a Dublin de James Joyce, a Trieste de Italo Svevo, a Buenos Aires de Julio Cortázar e de Jorge Luis Borges ou a Havana de Cabrera Infante. É um discurso poético em prosa, centrado na temática da paixão amorosa tradicional, a busca de uma mulher que já não existe porque, 27 anos depois, ninguém é mais a mesma pessoa. Uma história da memória portuguesa feita por um mestre da escrita.

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LOURENÇO MARQUES, de Francisco José Viegas. Porto, Edições ASA, 2002, 208 págs.

IN “O Primeiro de Janeiro, do Porto, em 03/03/2003”