Lourenço Marques, 25 de Abril de 1974
Quinta-feira, teste de História no último tempo. Ao contrário do que me é habitual fazer em circunstâncias semelhantes, decido faltar também à primeira aula, Físico-Química, e peço à minha mãe que me deixe ficar no «Safari», o café onde costumo passar as tardes a estudar, entre outros verbos.
À minha espera na esplanada, dado que o estabelecimento só abre às oito, estão já a Graça, furiosa por ter que estudar em pleno dia de anos, e o Silva, figura popular da cidade e, apenas segundo o próprio, jogador do Sporting.
Meia hora depois, já sentada na nossa mesa de sempre, abro o calhamaço de História na primeira das páginas dedicadas à Revolução Francesa. Estou em branco, informo. Culpado, felizmente, o TEC1 de Carlos Avilez, que passa entre nós esta temporada e a quem devo o gostar tanto de teatro. «Dom Quixote», «Ivone, Princesa da Borgonha» e «Fuente Ovejuna» fazem parte das peças que então vi, magistralmente interpretadas por Santos Manuel, João Vasco, Eunice Munoz e Zita Duarte, entre outros (já em Lisboa virei a saber, Mário Viegas, que, por estares na tropa, não pudeste estar também presente).
Logo a seguir, vieram fazer-nos companhia meia dúzia de colegas que, mais uma vez, saíram da turma à gargalhada em consequência de uma brincadeira que inventei quando, no início do último período lectivo, a freira que nos entrou sala adentro, apresentando--se como a terceira professora da cadeira nesse ano, colocou sobre a mesa a estátua da santinha da sua devoção. Perante tão inédita cena, ocorreu-me associar ao seu gesto o facto de, nessa altura, o detergente que usávamos em casa estar a oferecer, em cada embalagem, uma estatuetazinha em plástico dos jogadores mais populares da primeira divisão de futebol da Metrópole. Foi assim que, logo na aula seguinte, professora e alunas pousaram sincronizadamente nas respectivas mesas o seu protector (claro que, previamente, as tinha ameaçado de que o deveriam fazer com o mais sério e natural dos rostos). Ainda me lembro do meu boneco, o malogrado Pavão, pois, apesar de ser da Académica, devo ter emprestado o Rui Rodrigues e o Brassard a colegas consumidoras de outros detergentes. O fair play da senhora, inteligentemente, soube ultrapassar a provocação, conseguindo assim que, até ao fim do período, a deixássemos expor a sua sabedoria sem lhe levantar mais problemas. Excepção feita, claro está, a cenas como a que nesta manhã de quinta-feira tinha surgido e que só se tornam hilariantes para quem se sente a asfixiar, trancado numa sala: duas alunas tinham-se pegado, depois de uma delas atirar com o sportinguista Artur para o chão por «não gostar de loiros». Naturalmente, estas parvoíces tinham sempre como único e exclusivo fito interromper a infindável sucessão de fórmulas químicas que, era suposto, seríamos obrigadas a decorar para o teste seguinte. Nunca foi, felizmente, o meu caso.
Perto das dez horas (já eu passara da Revolução Francesa para as lusas lutas entre liberais e absolutistas), ao ser interpelada por uma aluna do ano seguinte, que conhecia de outras guerras, larguei um desabafo de que mais tarde todas nos viríamos a recordar:
- Estamos a estudar as revoluções do século passado, só agora é que não acontece nada!
Teste feito, talvez desse para o dez, regressei a casa e almocei na cozinha, tendo por companhia a alegria da Elisa e os latidos da Pushina. Às dez para as duas, o telefone tocou: era o Miguel a dizer que o tio do Luís tinha ouvido, na rádio da África do Sul, que havia um golpe de Estado em Lisboa e que o fascismo tinha acabado. Respondi-lhe:
- Oh, Miguel, tu desculpa lá, eu gostava muito de acreditar, mas não posso!
- É verdade, estou a dizer-te, (...)! - repetiu inúmeras vezes até desligarmos.
Ainda eu não saíra da sala onde o telefone estava pousado quando, inconformado, ele ligou de novo:
- Ouve lá, é verdade, achas que o tio do Luís ia inventar uma coisa destas?
Não tive tempo para responder, pois, pela porta da cozinha e para grande espanto da Elisa e da cadela, a minha irmã e a Ana irromperam pela casa a cantar:
- O Marcelo foi encostado, o fascismo acabou! Olha, mana, até parti os óculos!
- Eu não te disse, eu não te disse? - ria-se o Miguel do outro lado.
- É o que o Miguel está farto de tentar dizer-me! - balbuciei, passando o telefone.
- É verdade, mana, vimos de casa da Joana e foi o pai dela que nos deu a notícia!
Se tinha sido o pai da Joana, então era verdade. Era o chefe de redacção do semanário que comprávamos lá em casa e cuja orientação política não deixava dúvidas. Ainda me lembro das páginas em branco com que, «por erro de impressão», a revista por vezes se apresentava, dando a entender ao leitor que o lápis azul da censura funcionara.
Em silêncio, ultrapassei a Ana e entrei sozinha na sala de jantar, só voltando a dar conta de mim quando percebi que estava, já há alguns minutos, a dar voltas à mesa redonda de mármore, como se tivesse necessidade de habituar as sapatilhas a que os pés que as calçavam eram, a partir de agora, livres. Foi então que ouvi as vozes da Ana e da minha irmã a tentar explicar à Elisa o que é que se tinha passado, mas ela só se ria da excitação das suas meninas. Até que a Ana disse:
- Não percebes, Elisa, a PIDE2 acabou!
Então, sim, a Elisa entendeu e foi a nossa vez de a seguirmos casa fora até à varanda da cozinha da casa ao lado.
- Helena, a PIDE acabou, agora até vai poder cantar na rádio o João Afonso! - gritou ela para a criada da vizinha.
Deixámo-la com a Helena e entrámos em casa a tempo de atender o telefonema da minha mãe, que regressara ao serviço após um almoço em que tinham estado presentes, entre outros, o irmão de um histórico dirigente comunista português e o representante local de uma agência noticiosa estrangeira, velho amigo da família.
Por causa destes contactos, pedimos-lhe que nos ligasse sempre que houvesse novidades sobre os acontecimentos em Lisboa.
Estabeleço então uma rede telefónica com os meus amigos do Cine-Clube, a que se há-de juntar a Filipa BE, amiga desde os tempos da escola primária, de cujos irmãos mais velhos, universitários e actores do TELJM3 de Mário Barradas, ouviu a notícia. Às cinco da tarde, a Filipa farta-se dos telefonemas e aparece lá em casa para fazermos a festa. Pouco antes da hora do jantar, acompanho-a ao elevador e atiro:
- Vais ver que a música da Revolução é o «E depois do adeus», do Paulo de Carvalho.
- Oh, lá estás tu a inventar!
- Vê a letra, «Quis saber quem sou, o que faço aqui...»!
- Oh, Sandra!
A verdade, viria a sabê-lo ao fim da noite, é que tive a terminação.
Pouco antes das dezanove horas, abri a rádio para ouvir as notícias. Nunca mais me hei-de esquecer, apareceu-me a voz de Eduardo Nascimento e «O vento mudou», mas não ainda em Lourenço Marques, cujo noticiário, logo a seguir, se limitou a dizer que tinha havido um levantamento militar na capital do país, rapidamente controlado, e que a ordem tinha voltado à normalidade. Ali a bola ainda estava, afinal, do lado do inspector da PIDE e dos seus correligionários.
Só perto da meia-noite, já com a minha mãe em casa e as miúdas de pijama, pudemos ouvir o resumo do programa do MFA e, de seguida, «A Portuguesa», que, aos berros em cima da cama, cantámos a plenos pulmões pela primeira e última vez.
Vinte cinco de Abril de 1974 foi o único dia em que eu e Portugal passeámos de mãos dadas - viria a escrever, vinte cinco anos depois, ao olhar para trás.
Tenho dezasseis anos e a Sara catorze. Na parede, entre Steve McQueen e Françoise Hardy, está um cartaz por mim desenhado que mostra um grande rabo em plena laboração, lendo-se, dentro das respectivas caganitas, cada uma das letras que compõem o nome do ditador, agora a caminho da Madeira. Ainda me lembro da aflição que por causa deste artista tínhamos passado quando, uns meses antes, a Elisa nos veio dizer que estava à porta o «homem das cortinas» e que precisava de entrar no quarto para tirar as medidas da janela.
Adormecemos a sonhar com o futuro que, ali para os lados do Trópico de Capricórnio, na costa africana do Índico, tem a forma de um cavalo em pé que a relinchar, nesta noite, reclamava a sua independência. Só ela nos servia agora.
Naturalmente, isto não obstou a que percorrêssemos os jornais dos dias seguintes à procura das salas de cinema onde, antes do filme, passassem documentários sobre os acontecimentos deste dia e da festa do iq de Maio. Lembro-me que, mais do que uma vez, os aplaudimos.
1. Teatro Experimental
de Cascais.
2. Polícia Internacional de Defesa do Estado (finou-se com a sigla DGS).
3. Teatro dos Estudantes Universitários de Moçambique.