LOURENÇO MARQUES EM 1891

 

Por portaria n.º 326, de 30 de Junho de 1891, do Governador-Geral Joaquim Machado, foram aprovados os estatutos da Associação Comercial de Lourenço Marques. Foram, assim, coroados dos melhores resultados os esforços dos comerciantes que em 29 de Janeiro desse ano se haviam reunido na casa Winder & Com­panhia para discutirem a grave situação do momento e as precárias relações comer­ciais com as terras da coroa, dos comandos e postos militares a que dificilmente se estendia a nossa influência política c que se consideravam como fazendo parte nominal do distrito de Lourenço Marques, então sob a administração do capitão de cavalaria Joaquim Mouzinho de Albuquerque.

Dessa reunião, de que se lavrou acta, saiu a resolução de se fundar uma associação para a defesa dos seus interesses e da economia dos territórios e a nomeação de uma comissão para o estudo e elaboração dos estatutos e dar cum­primento às formalidades legais para o fim em vista. A comissão tomou bem a peito a missão que lhe havia sido confiada e assim, é que no dia 27 de Março, pelas 7 horas da noite, havia uma reunião dos principais comerciantes do burgo que, quatro anos antes, havia sido elevado à categoria de cidade, na sala do Hotel Central, cujo edifício ainda hoje existe, com ligeiras alterações, no extremo da Rua dos Mercadores já então chamada Araújo. Foram aprovados os estatutos com algumas modificações e deliberou-se que fossem enviados às autoridades com­petentes para aprovação oficial. No dia 5 de Agosto, em reunião celebrada às oito horas da noite na casa do Fonseca, referido na respectiva acta como ex-secretário das Obras Públicas, foi eleita a primeira direcção desta colectividade.

Estava-se numa época difícil; vivia-se num permanente estado de alerta e de exaltação pêlos acontecimentos que tanto haviam afectado a Província nos últimos anos, alguns dos quais tiveram, por certo, origem na conferência de Berlim realizada em Novembro de 1884 que serviu para fundamentar as extorsões territo­riais a que fomos sujeitos no continente africano, ao estabelecer que só a ocupa­ção efectiva, por tropas e colonos, poderia ser considerada como prova de posse e soberania. A documentação histórica, os baluartes em ruínas, que no interior assinalavam ingloriamente os nossos esforços e sacrifícios para trazer à civilização povos primitivos e terras ignoradas, o trabalho dos missionários, dos mercadores e exploradores ousados, de nada valiam se não pudéssemos sustentar os nossos direitos pelo aproveitamento económico do solo e, sobretudo, pela força das armas.

A campanha de violência e de expoliação a que sistematicamente vínhamos sendo sujeitos, há longos anos, encontra uma explicação tão cruel quanto deso­nesta — porque, no fundo, os seus objectivos, proclamadamente humanitários e altruístas, não estavam isentos da mais abjecta cobiça — nestas palavras de David Livingstone sobre as nossas possessões ultramarinas, designadamente a respeito de Moçambique, e sobre a nossa acção colonizadora: «... I propose to go inland, north of the territory which the Portuguese in Europe claim, and endeavour to commence that system on the East which has been so eminently successful on the West Coast: a system combining the repressive  efforts of H. M. cruisers with lawful trade and Christian Missions (1).”. Tinha dito antes: “...arose (in me) more strongly than ever, the feeling of desinclination to abandon  the East Coast of Africa to the Portuguese…”. O bravo e patriota missionário que preconizava a colaboração dos canhões da esquadra de Sua Majestade para apoiar as suas actividades que compreendiam, entre outras, o estabelecimento de missões cristãs e feitorias mercantis, viu coroados de êxito os seus esforços. Os acontecimentos de 1891, que tanto preocupavam os habitantes de Lourenço Marques, poderiam muito bem ser considerados como frutos do seu trabalho. Tínhamos, em Janeiro desse ano, enviado de Lourenço Marques para a Beira uma expedição de voluntá­rios para se opor aos invasores dos territórios de Manica e, em Fevereiro, em memorandum apresentado ao Governo português pelo ministro inglês, em Lisboa, eram postos em dúvida os direitos de Portugal aos territórios de Gaza.

A  acção das  canhoneiras  Tâmega  e Liberal  que,   com  um  pequeno  navio da divisão naval do  Índico,  impediram  o desembarque na  Beira de  uma forte expedição de mercenários vinda do Cabo pelo navio Norseman, com des­tino à Machona, alterou o rumo aos acontecimentos que tendiam a agravar-se. De facto a acção diplomática suspendeu a violência da agressão e deu-nos o Tratado celebrado com a Grã-Bretanha, de 14 de Maio, que estabeleceu novos limites para a fronteira do norte do rio Zambeze, a assinatura, no dia 28 desse mês, das bases para um pacto sobre os limites, esfera de acção e influência dos dois países e finalmente a assinatura do Tratado de 11 de Junho em que se define a influência de Portugal até ao paralelo que passa, ao sul, pela confluência dos dois rios Maputo e Pongolo.

        Esses primeiros seis meses do ano de 1891  tinham sido férteis em aconte­cimentos graves. Entretanto, as preocupações políticas, os problemas da administração pública, as dificuldades financeiras e económicas dos territórios e a insegu­rança, que não deixava de perturbar o espírito dos colonos, não obstava a que se trabalhasse em todos os campos, num esforço admirável como se quiséssemos recuperar o tempo perdido.

       Elevada à categoria de cidade em 10 de Novembro de 1887, Lourenço Mar­ques era ainda nesse ano de 1891 um pequeno burgo constituído por uma estreita e irregular língua de areia, alagada em vários pontos, que se estendia por dois quilómetros na margem esquerda do estuário do Espírito Santo, limitada pêlos pântanos que a separavam das terras altas do Maé e do Machaquene e que pelo lado ocidental chegavam até à praia.

         Formado de construções térreas que se estendiam por algumas ruas, orienta­das do nascente para o poente, cortadas, por estreitas travessas, algumas das quais ainda existem, a sua vida concentrava-se no vasto largo da pequena forta­leza de N. S.ª da Conceição; as habitações eram de madeira e zinco, algumas de alvenaria e outras maticadas com argamassa de cal e pedras soltas arrancadas dos flancos da ponta vermelha ; as suas coberturas eram de zinco ondulado ou de telha vã. Ainda existem algumas casas deste último tipo na área que os antigos colonos conheciam como o bairro dos baneanes e que os hindus, ainda hoje, entre si, denominam da mesma maneira. Havia já alguns edifícios de dois pavi­mentos entre os quais se destacava pela sua importância aquele em que está instalada a Imprensa Nacional. A cidade era então ainda protegida por um muro com seis baluartes que a delimitava em arco seguindo o contorno irregular do pântano e servindo de dique às violentas enxurradas, causadas pelas chuvas, que alagavam toda essa área imensa misturando as suas águas barrentas e cheias de detritos com as das marés vivas que avançavam dos dois extremos: as baixas do Maé e da Machaquene. O caminho que do lado interior seguia ao longo da muralha figura nas plantas primitivas com a designação de Rua da Linha ; deu lugar no projecto traçado pelo major Araújo à Avenida de D. Carlos. Das portas da cidade seguia pela encosta da Machaquene um largo caminho de terra batida, firmado por estacas de mangai e densa vegetação ; no cimo erguiam-se os edifícios de alvenaria do hospital e da sua administração e as casas de madeira das enfer­marias. Mais para a direita a pequena igreja matriz de N. S. da Conceição e algumas construções que ainda hoje existem mantendo o mesmo aspecto exterior. Sobre as altas dunas, atravessadas de trilhos e cobertas de arbustos, piteiras e alguns coqueiros erguia-se com ameias e torres aos quatro cantos o paiol da pólvora, dando ares dum fortim, com um pequeno pavilhão de alvenaria, um pouco afastado, para casa da guarda dos soldados, emprestando à paisagem uma nota aprazível que os artistas dessa época e os que lhe sucederam até 1925 reproduziram enlevados nos seus desenhos ou nas suas pinturas. Uma estrada levava ao farol da Ponta Vermelha onde havia um pequeno aglomerado de viven­das a que se dava já o nome de vila. Para ocidente algumas casas assinalavam já o traçado das largas ruas e avenidas de acordo com a nova planta topográfica e, mais ao longe, a massa compacta do quartel do Corpo de Policia, pintado de ocre, a proteger o acesso à cidade, dominando da sua posição a planície até ao porto.

Abriam-se valas para captação das águas da encosta e drenagem dos pân­tanos fazendo-se penosamente a recuperação desta vasta área com terras trans­portadas das barreiras juntas à linha férrea e com as areias das dunas mais próximas. Os eucaliptos que se iam plantando marcavam os quarteirões e arrua­mentos em toda a sua extensão, desde o extremo ocidental, e a grande praça onde viria a erguer-se o edifício do mercado do Município. Como consequência destes aterros verificou-se um imediato melhoramento das condições sanitárias do burgo e seus arredores; reduziram-se os mosquitos e diminuíram os casos, quase sempre fatais, das biliosas e perniciosas; combatia-se já eficazmente o paludismo com poções de quina e quinino em pó e os colonos iam perdendo a cor terrosa e macilenta e o ar fatigado, recuperando um aspecto saudável e o vigor necessário para o trabalho. Os coqueiros cresciam em vários pontos, até nos quintais de algumas casas, em pequenos grupos, e trepavam as colinas, mistu­rando-se com frondosas mafurreiras, cajueiros e espinhosas. Os seus troncos desaprumados, esguios e finos rematados pela sua ramagem pendente e mal tratada pêlos ásperos ventos do sul e pelo sol ardente, erguiam-se acima dos telhados dos armazéns e habitações dando á paisagem tropical a nota própria, agradável e familiar.

       Lourenço Marques surgia para o futuro. Não se lhe poderia já aplicar a frase cruel de António Enes que, aliás, traduzia com justeza a sua crença de que a Província não era propícia à colonização europeia, contrariando, por isso, o estabelecimento de colonos ; na sua expressão amarga dizia com ironia que no litoral, em largos tractos, viviam melhor as rãs do que os homens.

        O grande obreiro de Moçambique, impressionado com o descalabro dos prazos da Zambézia, com a sua ruína e degenerescência dos colonos, dos quais só restavam alguns apelidos em famílias mistas, impotentes e reduzidas a miséria extrema, vendo as suas férteis terras absorvidas pelas grandes companhias, em que aliás punha as suas melhores esperanças, não podia supor o sucesso da nossa colonização, o progresso da Província justamente pela fixação c actividade dos colonos europeus: militares, comerciantes, funcionários e agricultores. E como que a anunciar as companhias majestáticas a que se entregariam os cobiçados territórios de Manica e Sofala, de Cabo Delgado e Niassa acrescentava: «... em que doa ao luso patriotismo é de capitais estrangeiros que principalmente se pode esperar a exploração em larga escala em Moçambique ..”. Eram as ideias correntes da época. Quelimane em 1927 era ainda uma grande povoação de casas térreas e armazéns cobertos de zinco ondulado que disputavam o terreno aos pântanos e às palmeiras ; só a partir de então é que começaram a surgir os belos edifícios de alvenaria a revelar a determinação firme dos seus colonos que se enraizaram à terra e fizeram dela a bela cidade que é hoje ; a Beira era também nessa época um aglomerado de casas de rés-do-chão e alguns sobrados, geral­mente de madeira e zinco, a denotarem uma instalação provisória e apressada e de armazéns e barracões, construídos com os mesmos materiais, das instalações portuárias, da administração pública, do caminho de ferro e das grandes com­panhias mercantis, comprimindo-se num labirinto de ruas tortuosas de areia solta onde circulavam os requixós de tracção indígena sobre linhas decauville ; era similar a situação em Porto Amélia, e pior ainda no seu imenso território: na capital dos territórios os edifícios da companhia eram pouquíssimos e de construção precária, apenas os indispensáveis à sua administração — não nos deixou nem ao menos um hospital. Falharam as companhias majestáticas na missão especial, que se lhes havia confiado, de promoverem a colonização dos seus territórios e o seu desenvolvimento económico;  os seus grandes esforços concentraram-se na cobrança do mussoco, das contribuições e direitos aduaneiros a par da concessão e venda de terrenos. É que a colonização promovida e finan­ciada pelas companhias entrava nos domínios da utopia e não se coadunava com o realismo dos seus accionistas que, exigiam lucros e o pagamento regular de dividendos. A arrancada admirável dos colonos, a partir do momento em que os territórios voltaram à administração directa do Estado, deu-nos as modernas cidades da Beira, Vila Pery, Porto Amélia e Vila Cabral e o desenvolvimento económico e progresso desses territórios.

        O comércio foi a grande alavanca dos nossos empreendimentos. Os merca­dores ousadamente penetravam nas terras da coroa e dos comandos militares onde a nossa influência era, então, puramente nominal e acidental e precário o nosso domínio ; embrenhavam-se nas terras mais afastadas de régulos que se mantinham fora da nossa influência, fazendo a permuta do marfim, peles, cera e produtos do solo com o velório, panos, aguardente e utensílios vários de que dispunham para tal fim, colhendo ainda elementos c informações sobre os povos com que se relacionavam e sobre a situação geográfica, rios, caminhos e ri­queza das suas terras. Exploradores e aventureiros, alguns tiveram acção notável estabelecendo relações da nossa administração com gentes estranhas e levando a sua actividade para oeste, para além das fronteiras. Não raro eles eram as primeiras vitimas quando das lutas tribais ou quando os nativos se opunham ou sublevavam contra o nosso domínio ou autoridade — mártires anónimos do destino que inexoravelmente nos compelia para um futuro que submetia às provas mais duras a nossa resistência física, a nossa perseverança e carácter e a nossa capacidade de adaptação. Eram, esses comerciantes, por vezes, os precursores e também companheiros dos missionários, homens de paz que não levavam armas consigo nem mercadorias para traficâncias e que se apresentavam às po­pulações nativas e perante os seus régulos poderosos com a confiança e sere­nidade dos justos, o zelo e o espírito de S. Francisco Xavier ou de Gonçalo da Silveira. Suas mãos benfazejas estendiam-se para as crianças num gesto acolhedor, amparavam os velhos e tratavam os enfermos ; suas palavras graves e mansas traziam   conforto — o  cristianismo   penetrava   assim   a  selva   africana   e   abran­dava o coração dos homens.

Observava-se um verdadeiro ressurgimento económico através da actividade febril do porto, do tráfico de mercadorias e transporte de passageiros pelo ca­minho de ferro para o Transvaal, e intensificação do comércio local com as terras limítrofes e outras mais afastadas. A administração da Província era deficitária e apesar da grande crise político-financeira de 1890 o Reino ainda nos enviava fundos para atenuar os nossos deficits crónicos. As expedições militares, as obras do porto e da cidade impunham-nos encargos demasiado pesados agra­vados pela quebra das receitas do mussoco, tanto aqui no sul como nos distritos do norte. Esta situação, similar à de Angola, levava o desânimo aos espíritos mais fortes a ponto de se chegar a advogar na imprensa, nas conversações dos cafés e no parlamento soluções extremas e radicais que a nação repudiou. Como já havia acontecido mais do que uma vez no nosso passado e viria ainda a repe­tir-se no futuro, a nação, nas crises mais graves, encontrava sempre forças para reagir — e Portugal reagiu e preparou-se para as grandes provas a que teria de sujeitar-se no decorrer dos próximos anos.

Na baía que noutros tempos, com muita propriedade, se chamava Formosa, os veleiros de grande porte, altos mastros e de velas enfunadas entravam afoita­mente e confiantes carregados de madeiras da Austrália, da América do Norte e Suécia. Quando desembaraçados, a sua carga formava verdadeiras colinas brancas e maciças ao longo do cais de desembarque, barrando a vista de terra para o mar. Os navios a vapor superavam já os primeiros ; faziam-se anunciar com a voz rouca ou estridente dos seus apitos e traziam para a faina do porto os materiais de construção e uma multidão sequiosa e faminta de prazeres para as tabernas da Rua dos Mercadores dando-lhe um movimento mais intenso  tur­bulento e festivo.

Contava já a cidade com quatro hotéis ; três na Rua do Major Araújo (a an­tiga dos Mercadores): o Central Hotel, o Royal Hotel e o de Henry J. Levy ; e outro na Rua D. Luís, de Gabriel Fernandes. O primeiro ainda existe conser­vando o seu edifício as mesmas linhas arquitectónicas e características dos pré­dios de sobrado dessa época, de largas varandas exteriores assentes sobre colunas de ferro. Entre os estabelecimentos industriais figuravam uma fábrica de moagem a vapor, na Rua D. Luís e uma fábrica de limonadas, na Travessa da Fonte. Além duma sucursal do Banco Nacional Ultramarino existiam cinquenta e quatro firmas comerciais bastante importantes, além de outros estabelecimentos de menor importância. Ao quilómetro 76 da linha de Ressano Garcia, perto do Incomáti, existia uma fábrica de tijolos.

Chegou-se ao fim desse fatídico ano de 91 com as emoções dos derradeiros acontecimentos que tanto feriram a sensibilidade dos colonos, dando-lhes horas de amargura, de desespero e rancor e da mais nobre exaltação patriótica. Em Setembro, dia 4, haviam chegado a Lourenço Marques, doentes, desiludidos, feridos para sempre no seu orgulho de portugueses e na sua própria dignidade — águias aviltadas, de asas cortadas, garras partidas, sujeitas a uma importância abjecta — os voluntários do batalhão que meses antes tinha partido em socorro de Macequece. Chegava à Província a notícia da assinatura do contrato que, nesse mesmo mês, fora assinado em Lisboa, sobre a concessão do Chinde para servir a Niassalândia pelas vias fluviais do Chire e do Zambeze, sem formali­dades aduaneiras ou dos regulamentos dos nossos portos, enfim, liberdade plena de trânsito sem a intervenção das nossas autoridades que formalmente era re­jeitada. Moçambique passara a chamar-se o «Estado da África Oriental» por Decreto do dia 30 desse mesmo mês, que o dividia em duas províncias — a do norte com sede em Moçambique, composta pelos distritos de Moçambique e Quelimane,  e a do sul com sede em  Lourenço  Marques.  O Comissário Régio, que o administrava residia alternadamente em Moçambique e em Lourenço Marques.

Esta divisão administrativa provou ser impraticável pelo que teve uma du­ração efémera.

(1)              Narrative  of  an   Expedition   to  the  Zambesi  and  its  Tributaries ;  and  of the  discovery of the Lakes Sa and  Niassa — 1858-1864 — by David and Charles Livingstone.

 

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