JOAQUIM DE LEMOS
Ao ler a lista das Direcções do passado somos forçados a parar e a repetir mentalmente o nome de um ou outro associado, recordando a sua figura, os seus gestos, a sua actividade procurando mesmo, em vão, despertar para os nossos ouvidos o som da sua própria voz. E isso acontece com frequência: trata-se de pessoas que já não existem. Algumas conhecemo-las pessoalmente ; tratámos com elas ou, simplesmente, vimo-las passar nas ruas e notámos os seus feitos. Acontece, por vezes, tratar-se de alguém que foi nosso amigo. Outras, foram pessoas notáveis que desempenharam papéis de relevo no nosso meio, em benefício da comunidade, da economia c do progresso da cidade ; que se impuseram à consideração pública e à gratidão dos vindouros porque fizeram alguma coisa mais além daquilo que era de seu interesse pessoal. Há ainda aqueles que passaram sem ruído, humildemente, assoberbados com os seus problemas pessoais, com as suas lutas quotidianas. Há também os que surgem como nota prasenteira e entre estes aparece-nos o nome e a figura simpática de Joaquim de Lemos. Conhecemo-lo em 1920 ; comerciante de ferragens com estabelecimento no cruzamento da Avenida da República com a Travessa da Laranjeira, no rés-do-chão de um edifício de dois pavimentos com larga varanda que tomava o ângulo da avenida com a travessa. Este edifício (demolido há poucos anos para dar lugar à construção daquele em que está instalado o Banco Nacional Ultramarino) era no seu tempo, isto é: no último quartel do século dezanove, um dos mais belos da cidade e bem digno da avenida que recebera, quando da sua abertura, o nome de D. Carlos. Nos largos passeios de terra batida, desta artéria, tinham crescido majestosamente os eucaliptos plantados por toda a parte como medida sanitária, para absorver a humidade do solo, recentemente conquistado aos pântanos, para afugentar os mosquitos e darem sombra.
Joaquim de Lemos era baixo, bojudo como uma nau quinhentista, de rosto largo, bochechudo e rubicundo em que se destacava uma pêra à moda dos grandes obreiros da República que tanto admirava, c bigode de pontas retorcidas. Era impecável no trajar; usava panamá ou chapéu de feltro à Eduardo VII, deitado um pouco para a banda, e uma bengalinha de cana da índia com castão de prata. Sob as suas pesadas sobrancelhas uns olhinhos castanhos, vivos, a condizerem com o seu semblante prazenteiro. Natural de Coimbra, Republicano convicto, entusiasta e activo, fez parte da primeira Vereação Municipal eleita após a Implantação da República. A sua passagem pela Câmara ficou assinalada por algumas obras de incontestável utilidade pública, de que falava com orgulho aos amigos quando enaltecia as instituições políticas e o seu próprio papel de animador das festas cívicas e santos populares como único fornecedor de foguetes: — além das ferragens vendia foguetes e sementes hortícolas. Essas obras que o recomendaram à posteridade (a Câmara deu o seu nome a uma das suas ruas) eram representadas por uns bancos de cimento sob as acácias das Avenidas 24 de Julho e Pinheiro Chagas e um fontanário no Alto-Maé; dizia ele gravemente: — para os cidadãos poderem descansar das suas caminhadas, gozando a frescura das árvores e para os pretinhos matarem a sede. Não confiando muito na memória dos vindouros, costumava perguntar-nos gravemente, quando sucedia passarmos por aquelas avenidas, com o manifesto propósito de tomarmos nota e de não nos esquecermos: — Quem mandou fazer estes bancos?... Quem mandou fazer aquele fontanário?... — Foi o Sr. Joaquim de Lemos, ilustre membro da primeira e histórica vereação municipal republicana do concelho de Lourenço Marques! A jovem República, austera e puritana não era, então, pródiga em honrarias; não fazia conselheiros nem comendadores — coisas pomposas e pesadas, próprias então para brasileiros ricos e burgueses recentes que, desta maneira, se afidalgavam. Foi pena! Teríamos muito orgulho e satisfação, ao recordar agora o nosso bondoso e ilustre amigo, em podermos dizer: — “o venerável comendador Sr. Joaquim de Lemos, etc.”. A República nos seus primeiros tempos foi demasiado severa; bem podia, com benefício para o tesouro público, ter satisfeito a vaidade dos seus mais preclaros cidadãos, entre os quais figurava galhardamente o nosso honrado e querido amigo republicano e católico. Como isso não ligava bem nesse tempo ele afirmava pausadamente, para tirar qualquer dúvida: — Sim: republicano e católico.
No fundo era sinceramente um liberal e tradicionalista. Se tivesse vivido em 1820 seria um partidário entusiasta do Sr. Passos Manuel — a quem os ultra-montanos entre outros nomes feios chamavam pedreiro e republicano.
Por volta de 1923, viúvo e sem filhos, liquidou os negócios e regressou a Portugal. Visitámo-lo em Coimbra em 1925 e fomos testemunhas dum acidente que o nosso amigo reputou de autêntico milagre: — o guarda-freios dum carro eléctrico ao ver uma criança atravessar a rua, a correr, travou com violência e conseguiu parar o carro?... mas a criança caíra entre os carris e ficara debaixo do carro muito quietinha, sem uma beliscadura, de olhar espantado!... O nosso amigo, comovido e excitado, agitando os braços e a sua bengalinha de castão de prata, olhava à sua roda, para a multidão que se juntara, e gritava:
- E digam que não há Deus!... Onde estão esses ateus?...
Almoçámos juntos. Nesse mesmo dia teríamos de partir de regresso à África. Era, pois, um almoço de despedida. Pressentindo que não nos tornaríamos a ver (e infelizmente assim foi) brindou-nos comovidamente, levantando o seu copo de vinho verde: — Dê saudades minhas a Lourenço Marques; quando souber que morri reze por mim um Padre-Nosso ; mas, meu jovem amigo, se lá no céu houver deste generoso Gatão, então enxugue as lágrimas e alegre-se!
Íntimamente desejámos que não sofresse desilusões.
O
seu testamento dá testemunho da sua grande bondade: deixou os seus bens a
instituições de beneficência e contemplou generosamente o seu testamenteiro e
um ou outro amigo.