DA
INTRODUÇÃO DA TIPOGRAFIA
À PASSAGEM DE LOURENÇO MARQUES
A CIDADE
CONTEXTO HISTÓRICO (1854-1887)
1854 — Introdução da tipografia em
Moçambique. A Imprensa Nacional então criada fica instalada na capital da
Colónia, na Ilha de Moçambique.
— Foi aprovado o primeiro Regulamento do
Serviço Postal de Moçambique.
1855-1856 — Viagem do Pe. Joaquim de Santa Rita Montanha
a Zoutpansberg (na República da África Austral, fundada por Bóeres emigrados da
Colónia do Cabo para o Transval), em missão solicitada pelo chefe bóer Andries
Potgieter, em 1854, na tentativa de estabelecer uma ligação comercial entre
aquela praça transvaliana e o porto de Inhambane. A tentativa foi frustrada
por, entretanto, ter morrido Potgieter e os Bóeres, com o apoio de negociantes
portugueses estabelecidos no Transval, nomeadamente João Albasini, terem
descoberto uma nova via para o porto de Lourenço Marques, segura e livre da mosca do sono.
1855 e 1869 — Acordos realizados entre Portugal e a República da África
Austral apontam para a crescente importância geo--económica de Lourenço
Marques.
1856 — Iniciam-se as lutas com o Sultão de Angoche, tendo lugar
vários recontros até que, em 1865, é criado naquela localidade um governo
português subalterno.
— 8 de Janeiro, uma portaria do Ministério da Marinha e Ultramar,
ordena às Câmaras Municipais das Províncias Ultramarinas que tenham um livro
com a designação especial de Anais do Município, onde devem lançar os
acontecimentos importantes, e nos das capitais das Províncias lançarem também
os nomes dos governadores e por quanto tempo governaram. Esta portaria só foi
publicada no Boletim Oficial de Moçambique nº 17, de 1857.
— 3 de Setembro, uma portaria do governador-geral de Moçambique, major
Vasco Guedes de Carvalho e Meneses aprova um regulamento para a Imprensa
Nacional.
— 1 de Outubro, um decreto publicado em Lisboa estabelecia que as
leis da liberdade de imprensa se observassem também no Ultramar. Determina
também que o julgamento das causas de abuso de liberdade de imprensa seja
cometido ao Juiz de Direito. Este decreto só foi publicado no Boletim
Oficial de Moçambique nº 8, de 1858.
1857
— Segunda acção governativa no sentido de vir a ser explorada a cultura do
algodão — a primeira ocorrera quando era governador-geral Baltasar Manuel
Pereira do Lago (1765-1779), alcunhado de o Marquês de Pombal de Moçambique,
que obrigou as populações a cultivarem aquela planta têxtil. Desta feita, o Governo
compromete-se a comprar, através das Alfândegas, toda a produção da Colónia.
1858 --
Com a morte, em 11 de Outubro, de Manicusse (ou Shoshangane), fundador
do império de Gaza, cerca de 1822, Maueva, seu filho, torna-se o novo
potentado; início da guerra civil Entre Maueva e seu irmão Muzila, que este
acabaria vencendo em 1861, graças às manobras diplomáticas de Diocleciano
Fernandes das Neves e ao consequente apoio a Muzila, pai de Gungunhana, das
autoridades e dos negociantes e caçadores de Lourenço Marques e do rei Mswazi,
sogro de Maueva.
1858 e até 1868 — Numerosos ataques a Lourenço Marques e a forças portuguesas
fora daquele presídio, conduzidos pêlos chefes tradicionais vizinhos.
1859 — É editado o Almanaque Civil Eclesiástico
Histórico--Administrativo da Província de Moçambique, da autoria de José
Vicente da Gama, brâmane natural de Bardez e Cavaleiro de Cristo. Teve
continuidade, através de Folhinhas para os anos de 1861 a 1864. Impresso
na Imprensa Nacional, foi a primeira publicação não oficial editada na Colónia.
— João Albasini instala na República do Transval um consulado de
Portugal, que mantém a expensas suas até 1868 e de que eram secretários os
portugueses ali imigrantes, Jacob Cristóvão do Couto e Henrique Borges Pinto.
— É feito em Moçambique um importante recrutamento de trabalhadores
negros para as obras do Canal de Suez; o facto deve-se às boas relações de
Ferdinand de Lesseps em Lisboa, onde fora cônsul francês no início da sua
carreira diplomática.
1860 -- Por iniciativa de João Albasini é criado um serviço de correio
entre a praça deste negociante português, em Zoutpansberg, na República do
Transval, e o presídio de Lourenço Marques. O correio era transportado por um
soldado do Presídio.
1861 — Inicia-se o litígio entre Portugal e a Inglaterra pela posse
das ilhas da Inhaca e dos Elefantes e, mais tarde, do território do Maputo, ao
sul da Baía de Lourenço Marques, litígio que termina em 1875 com a sentença
favorável a Portugal.
1862 — Começam os problemas com
o Sultão de Zanzibar, apoiado pela Inglaterra, pela posse da Baía de Tungue; em
1886, falha a via diplomática e, em 1887, um conflito armado leva o Sultão a
pedir o fim das hostilidades que, entretanto, acabarão por pender a seu favor
graças à interferência inglesa.
— Criação em Tete, por iniciativa do governador do
distrito, o tenente-coronel António Tavares de Almeida, da primeira associação
cultural de Moçambique, a Sociedade Literária de Tete; entre os sócios
fundadores, para além do Vigário da vila, figurava uma senhora, a esposa do
Governador; na primeira assembleia foi fixada para cada sócio a jóia de 4.500
réis (um escravo poderia custar entre 5.000 e 7.500 réis) e a quota mensal de
500 réis (uma peça de 24 jardas de tecido de algodão listrado da índia custava
900 réis).
1863 —
Um decreto atribui a primeira concessão de terreno em Moçambique: 50 mil
hectares para Francisco Tavares de Almeida, familiar do então governador-geral,
tenente-coronel João Tavares de Almeida (1857-1864).
1864
— O Banco Nacional Ultramarino inicia a sua actividade em Lisboa e, até 1868,
estabelece sucursais e representações nas colónias de São Tomé, índia, Angola e
Moçambique; em 1877 a representação na cidade de Moçambique é transformada em
sucursal; no mesmo ano nomeia correspondentes em Quelimane e Lourenço Marques.
1866 e até 1877 — O ex-sargento-mor de Massangano, António Vicente da Cruz, o
Bonga, que se revoltara contra as autoridades portuguesas, derrota sucessivas
expedições enviadas para o combater; morre em 1877, mas um seu descendente toma
de novo Massangano que só volta à posse dos Portugueses em 1878; em 1887, ainda
o capitão-mor de Manica havia de enfrentar um dos aliados do Bonga, o Sultão de
Mutôco.
1868 — O presidente Pretorius da República do
Transval, ou República da África Austral como lhe chamavam as autoridades
portuguesas, definiu por lei de 28 de Abril novos limites para a República, os
quais passaram a incluir muitos territórios do Transval até então tidos como
portugueses bem como uma parte do distrito de Lourenço Marques, o que
contrariava um acordo de fronteiras feito em 14 de Agosto de 1855.
1869 — É publicado em Lisboa um decreto abolindo a escravatura
em Portugal e suas colónias.
1870 —
Início da pesquisa dos diamantes no Orange.
1873 —
Descoberta do ouro no Transval.
1874 —
O Ministério português dos Negócios da Marinha e Ultramar concede a Inácio José
de Paiva Raposo 20 mil hectares de terreno, na Zambézia, para a cultura do
ópio, dando-lhe simultaneamente o exclusivo por doze anos da exportação
daquele produto pelas alfândegas de Moçambique com total isenção de direitos.
— É fundada em Lourenço Marques a loja maçónica "31 de
Outubro", do Rito Francês.
1874 e até 1887 — Lourenço Marques cresce de importância:
em 1874, é feito o primeiro contrato para a construção do caminho de ferro para
o Transval; em 1875, por contrato com a British índia, os barcos desta
companhia passam a escalar-lhe obrigatoriamente o porto; em 1876, o presídio
passa a vila e chega ali uma missão de obras públicas que dá o arranque para a
construção do que virá a ser a futura capital; em 1883, uma portaria régia
proíbe o envio de mais degredados para a Vila e o Governo decide construir o
caminho de ferro, cujos trabalhos se iniciam em 1886, inaugurando-se no ano
seguinte os primeiros oitenta quilómetros.
1875
— Com início em 30 de Dezembro, foi criado um correio com partida bi-semanal,
por via terrestre, entre Inhambane e Lourenço Marques. A média de duração da
viagem de cada estafeta andava entre os quinze e os vinte dias.
—
31 de
Dezembro, é criada a Sociedade de Geografia de Lisboa.
1876 — Primeiro
anúncio de livros publicado num periódico de Moçambique. Foi no Boletim
Oficial de Moçambique, de 19 de Junho, e rezava tal qual assim:
“Quem quizer comprar uma obra do assaz conhecido Romance os
dramas de Paris, ou comunumente denominado o Rocambole, por
visconde Ponson du Terrail em 87 volumes, em meia encadernação e bom uso, pode
falar com o abaixo assinado, devendo acrescentar-se que a obra tem a última
parte até agora publicada a Corda denforcado. J. V. da Gama “
O anunciante era o brâmane de Bardez e
alto funcionário em Moçambique, de quem já falámos, José Vicente da Gama.
1878 —
Revoltas nas terras fronteiras ao Ibo.
1879 —
Um batalhão de tropas angolanas vai prestar serviço em Moçambique.
1880 — São
oficialmente extintos os prazos da Coroa.
— A Sociedade de Geografia de Lisboa começa a pressionar o
Governo, com propostas concretas, para que proceda à ocupação "de
facto" dos territórios portugueses em África, a fim de garantir a sua
posse que começava a ser contestada, sobretudo pêlos Ingleses.
1881 — Inicia a publicação na capital de Moçambique a primeira
revista literária da Colónia, a Revista Africana; o seu proprietário e
principal redactor é o primeiro escritor de língua portuguesa nascido em
Moçambique, José Pedro da Silva Campos Oliveira.
—
Começa a
imprimir-se o Boletim da Sociedade de Geografia de Moçambique, primeira
publicação científica da Colónia.
1883 — Morre
Diocleciano Fernandes das Neves; Gungunhana manda a Bembe, próximo da foz do
rio Limpopo, um importante contingente dos seus guerreiros prestar honras fúnebres
àquele negociante e escritor português, grande amigo de seu pai.
— O Banco Nacional Ultramarino instala uma agência em
Lourenço Marques; o seu fundador e governador, Francisco de Oliveira Chamiço,
cunhado do major Joaquim José Machado que projectou e, em grande parte, dirigiu
a construção do caminho de ferro entre Lourenço Marques e o Transval, nomeou um
agente do seu banco em Pretória, a que se seguiria outro em Lydenburg (1884) e
o envio de um seu representante a Barberton no mesmo ano da fundação desta
cidade devida à exploração do ouro (1886).
1884 — Revoltas em Massingir.
— Por pressão da Sociedade de Geografia, o governo
português encarregou o major Serpa Pinto de estudar e realizar uma expedição
científica que ligasse a costa do Índico ao extremo sul do Lago Niassa, na
busca de uma rota comercial entre os dois pontos; para essa expedição, que
partiu em Outubro desse mesmo ano da costa fronteira à Ilha de Moçambique,
Serpa Pinto escolheu para seu companheiro o segundo-tenente da Marinha Augusto
Cardoso; devido a doença, Serpa Pinto não chegaria a deixar a costa do Índico,
pelo que quem de facto realizou a expedição, que durou 20 meses ida e volta,
foi Augusto Cardoso; e foi graças aos estudos realizados por este oficial
durante aquela sua viagem que o domínio português do vasto território que se
estendia entre Cabo Delgado e o Niassa não foi contestado pelas potências
interessadas em alargar o seu domínio em África; Augusto Cardoso, que exerceu
vários cargos oficiais em Moçambique, onde ficou a viver e haveria de morrer em
1930, também ali teve um jornal seu, o Correio de Moçambique (Lourenço
Marques, 1921 - 1923).
1884-1885 — Conferência de Berlim; no seu prosseguimento, é criada em 1884
a colónia alemã do Sudoeste Africano e, em 1885, a Alemanha anexa Tanganica e
Zanzibar.
1885
— Gungunhana, novo imperador de Gaza, opõe-se à exploração das minas de Manica
e dos prazos da Gorongoza; no mesmo ano, manda dois emissários avisar o
Governador de Manica de que vai atacar Inhambane.
— 31 de Maio, teve em Lourenço Marques a sua primeira reunião a
Sociedade de Arboricultura e Floricultura, nesse mesmo ano fundada por
inciativa do maçon J. M. de Mesquita Pimentel que, com o apoio de Oliveira
Chamiço, governador do Banco Nacional Ultramarino, e do cunhado deste, general
Joaquim José Machado, ambos irmãos da Ordem do Pimentel, e, depois, de maçons
espalhados por todo o mundo, criou, entre este ano e o de 1887, o primeiro
jardim botânico de toda a África, o Jardim Vasco da Gama da capital de
Moçambique. A este seguiu-se-lhe, mas já quase no final do século, o Jardim de
Assuão, no Egipto. Mesquita Pimentel, beneficiando dos mesmos apoios, foi ainda
o introdutor da vinha, das romãzeiras e das figueiras em Moçambique, além de
outros sucessos de experimentação frutícula que não caberiam aqui. A Sociedade
de Arboricultura e Floricultura foi a primeira sociedade profana, de
iniciativa maçónica, criada em Lourenço Marques.
1886 — Imprime-se na capital de Moçambique, ainda na Ilha, a
primeira publicação estatística da Colónia: Estatística das Alfândegas da
Província de Moçambique.
1887 —
Revoltas nos Namarrais; a tripulação da corveta "Afonso de
Albuquerque" incendeia várias povoações.
— Encarregado pelo seu ministro dos Negócios Estrangeiros, o
cônsul-geral da Bélgica em Zanzibar, Lucien de Cazenave, percorre toda a
colónia de Moçambique, fazendo um minucioso levantamento das potencialidades
económicas do território, e apresenta dessa viagem um elaboradíssimo relatório
ao seu governo. Os interesses principais belgas centravam-se nas capacidades
mineiras e na viabilidade da sua exploração.
— O governo inglês faz saber ao de Portugal que não aceita o
projecto do "mapa cor-de-rosa”, segundo o qual Angola e Moçambique
ficariam ligados num território único.
— Segundo o Boletim Oficial de Moçambique (nos. 14 e
22, De 1887), o Banco Nacional Ultramarino regista em seu nome minas
de carvão e de ouro localizadas na Colónia.
— A vila de Lourenço Marques passa a cidade; e, como diz Lobato,
vivia então «o que foi a sua belle époque, que principiou na cidade em
80. (...) Vieram sírios, libaneses, italianos, ingleses, gregos e judeus, e
outros de nacionalidade obscura com nomes britânicos, e vieram mulheres de
Porto Natal ...”.
Enfim, o progresso impulsionado pelo ouro do Transval e
pelos diamantes do Orange.
1. A introdução da tipografia
Em 7 de Dezembro de 1836, um decreto da
Rainha D. Maria II (1834-1853), que constituía uma espécie de lei orgânica das
colónias portuguesas, previa a impressão de gazetas oficiais junto de cada um
dos governadores. A existência em Lisboa de uma Imprensa Nacional que publicava
o Diário do Governo deve ter inspirado aquela determinação (1). O
decreto, subscrito pela Rainha e por António Manuel Lopes Vieira de Castro,
dizia no seu artigo 13º:
Debaixo da inspecção de cada Governo geral se imprimirá um
Boletim, no qual se publiquem as Ordens, Peças Oficiais, Extractos dos
Decretos regulamentares enviados pelo respectivo Ministério aos Governos do
Ultramar; bem como Notícias marítimas, Preços correntes, Informações
estatísticas, e tudo o que for interessante para conhecimento do público.
A
índia, na sua qualidade de colónia mais antiga e à qual Governo e Igreja davam
gulosos cuidados, teve tipografia muito antes daquele decreto e também não
esperou por ele para publicar a sua gazeta oficial. Segundo António Maria da
Cunha, confirmado por António dos Mártires Lopes quanto à data, a tipografia
foi introduzida na índia pelo Patriarca da Etiópia, D. João Nunes Barreto, em
1556, durante o reinado de D. João III (1522-1558). António dos Mártires Lopes
dá o crédito da introdução à Companhia de Jesus, o que não porá totalmente de
lado o Patriarca (2). Segundo as mesmas fontes, a primeira folha oficial da
índia então portuguesa chamava-se Gazeta de Goa e o seu número um publicou-se
em 22 de Dezembro de 1821. Foi seu redactor o físico-mor Dr. António José de
Lima Leitão.
Provavelmente através de Goa, os missionários católicos introduziram
a tipografia em Macau, em 1588. O primeiro jornal daquele território
intitulava-se Abelha da China e o seu número um tinha a data de 12 de
Setembro de 1822. Mas a publicação da gazeta oficial do Governo de Macau
decorre já do decreto de D. Maria II, pois começou a sua publicação em 5 de
Setembro de 1838, iniciando o título com a palavra Boletim tal como na
lei se indica como próprio. Chamava-se Boletim do Governo de Macau, Timor e
Solor.
No Brasil, a tipografia oficial foi introduzida pelo príncipe regente
D. João (1792-1816), em 1808, aquando da transferência da Corte de Lisboa para
o Rio de Janeiro devido às invasões francesas (3). Naquele ano foi criada na
capital do Brasil a Impressão Régia — decreto de 13 de Maio — e publicado em 10
de Setembro o primeiro número da folha oficial, a Gazeta do Rio.
Nas outras colónias foi o já referido decreto de D. Maria II que
levou à introdução da tipografia a fim de poderem ser criados os Boletins no
mesmo preconizados. E, assim, os primeiros prelos chegaram a Cabo Verde em 1842
e a Angola em 1845.
Moçambique foi das últimas colónias a receber a inovação, pois a
tipografia só ali foi introduzida em 1854, quase trezentos anos depois de ter
chegado a Goa.
Segundo
Filipe Gastão de Almeida de Eça, com um novo governador-geral para Moçambique,
o major Vasco Guedes de Carvalho e Meneses (1854-1857), embarcaram em Lisboa
«alguns caixotes com um prelo, caixas de tipo e outros utensílios tipográficos,
no valor de 523$095 réis» (4). Viajaram, prelo, Governador e, muito
provavelmente, o primeiro impressor, António Joaquim de Carvalho, na fragata
"D. Fernando" que partiu de Lisboa em 31 de Dezembro de 1853 e chegou
à Ilha de Moçambique em 19 de Abril de 1854. O major Vasco Guedes de Carvalho e
Meneses tomou posse do seu cargo no dia 24 e o prelo foi instalado, segundo o
padre Santana da Cunha, num edifício «muito perto do Hospital, entre a
travessa do Hospital e a Fábrica de Gelo», onde esteve até Novembro de 1856
(5).
A primeira obra impressa em Moçambique surgiu apenas vinte e
quatro dias após a chegada do prelo. No dia 13 de Maio de 1854, um sábado,
publicava-se o nº 1 do que foi também o primeiro jornal da colónia, o Boletim
do Governo de Moçambique. Para além do Boletim e de eventuais
impressos, pois «a tipografia está habilitada para dar ao prelo quaisquer
outras obras que se convencionem» como dizia o editorial do número um daquela
gazeta, a Imprensa Nacional produziu, ainda no ano da sua instalação, o que
foi o primeiro livro impresso em Moçambique, o Regulamento Geral das
Alfândegas da Província de Moçambique: 1854. Um folheto de esmerada
apresentação, ao gosto da época, apesar das limitações da pequena tipografia,
mas marcado em pleno rosto com o ferrete da gralha. De facto, logo na quinta
linha da capa se pode ler AD PROVÍNCIA por DA PROVÍNCIA.
A primeira tipografia particular de Moçambique parece ter sido a de
Francisco Paula de Carvalho e João Sinfrónio de Carvalho, instalada na então
capital, em 1876, para imprimir o semanário África Oriental, de que o
primeiro era director e o segundo um dos editores.
De acordo com os dados reunidos por Neves Dias, João Sinfrónio de
Carvalho era tipógrafo e fora até encarregado da Imprensa Nacional, casa para
onde entrara como oficial em 2 de Janeiro de 1855. Foi encarregado interino da
Imprensa desde 28 de Março de 1865 até ir de licença a Portugal, em 1870, e
efectivo desde 10 de Abril de 1871, data em que foi nomeado compositor e
director, até ser aposentado, em 17 de Junho de 1874 (6).
Francisco
Paula de Carvalho, professor da Escola Principal (Escola que parece não ter
chegado a existir) e, mais tarde, advogado de provisão, foi também director da
Imprensa Nacional, onde substituiu João Sinfrónio de Carvalho aquando da sua
aposentação. Primeiro interinamente e, a partir de 10 de Agosto de 1879, efectivo
«por — dizia a nomeação — a dita escola principal, ou de instrução
secundária, não funcionar, e ele dever ser empregado em posição de categoria
igual e que tenha cabimento com as suas habilitações». Francisco Paula de
Carvalho viria a ser demitido de director da Imprensa Nacional exactamente por
causa da primeira tipografia particular de que era um dos proprietários,
qualidade que não esquecia, mesmo dentro da imprensa oficial. De facto, a
portaria de 9 de Fevereiro de 1884 que o demite, depois de aludir a uns
impressos encomendados pela Alfândega à Imprensa Nacional e não fornecidos
embora já estivessem à venda «feitos em qualquer imprensa particular»,
justifica a demissão pois “que à Fazenda Pública não convém que o lugar de
director seja ocupado por um indivíduo, que, sendo proprietário de uma
imprensa particular, tem interesses próprios que podem estar em oposição com os
da fazenda”.
Só que serão estes "interesses
próprios" a dominar pêlos tempos adiante, ora os jornais de que vamos
tratar, ora, e mais amiudadamente, os indivíduos e as instituições que esses
mesmos jornais apoiavam, criticavam ou tentavam mesmo eliminar.
2. O Boletim Oficial
Como já se viu, o primeiro número da
folha oficial de Moçambique e, simultaneamente, de um jornal ali impresso, foi
publicado em 13 de Maio de 1854, um sábado, com o título de Boletim do
Governo da Província de Moçambique. Quatro páginas de formato pequeno, a
tentarem seguir o ternário sugerido pelo decreto régio de 1836, abrindo com um
fundo de apresentação como se impunha. Vale a pena transcrever essa primeira
peça do jornalismo produzido em Moçambique e que, posto que não assinada, é
devida ao Governador-Geral acabado de chegar, o major Vasco Guedes de Carvalho
e Meneses. Composto a duas colunas e sem título, dizia (7):
A
Imprensa é um dos melhores inventos do espírito humano. Ella tem prestado os
mais importantes serviços ao commercio, a indústria, aos interesses, e á
civilização d'uma grande
parte dos povos do universo.
Convencido da sua utilidade, O Governo de
Sua Magestade Ordenou que se instituisse nesta Capital uma Typographia. — O
governo actual se lisongeia de ser o seu instituidor.
Vai pois publicar-se regularmente uma vez
por semana — O Boletim official do Governo da Província de Moçambique.
O Governo reserva uma parte da folha para a publicação dos
seus actos que deseja cheguem ao alcance de todos; e apreciará lealmente, as
reflexões judiciosas, que sobre elles lhe forem feitas.
A outra parte será destinada aos
interesses do Commercio, e á publicação d'artigos de conveniência publica.
Além d'isso a typographia está habilitada para dar ao prelo quaes quer outras
obras que se convencionem.
Para além de primeiro periódico de
Moçambique, o Boletim Oficial, que com pequenas alterações no título
haveria de chegar até 1975 foi também
ao longo de todo esse tempo o mais importante órgão moçambicano de informação.
E é nessa qualidade, principalmente, que cabe neste trabalho. É que ele não só
foi, até 1870, o único jornal de Moçambique (8), como constituiu sempre a fonte
de informação fundamental para uma sociedade — a dos colonos e da burguesia que
a partir deles se fixou ou nasceu no território — cujos membros, se não comiam
à mesa do orçamento como militares, funcionários ou mesmo missionários (9),
viviam do que estes, quer como legisladores, quer como executores das leis,
quer como consumidores lhes distribuíam. E as notícias da mesa do orçamento,
como os indícios do que dela ia cair, passavam obrigatoriamente e em primeira
mão pelo Boletim Oficial (10).
E sucede ainda que durante um longo
período, para além mesmo do aparecimento dos primeiros jornais em 1868 e 1870
em Moçambique, em 1877 em Quelimane, e em 1888 em Lourenço Marques, o Boletim
Oficial inseria, posto que algo limitadamente como se verá, os tais «artigos
de conveniência pública» de que falava o editorial do primeiro número. E isso,
até, por orientação expressa do governo central.
Antes de existir o Boletim Oficial, todas essas notícias
que interessavam funcionários e militares, clérigos e negociantes, eram
«corridas ao som de caixa pela cidade como qualquer bando» (11).
Já aquando da redacção do decreto de D. Maria II, de 7 de Dezembro
de 1836, se previa que a folha oficial deveria conter, não só as ordens, peças
oficiais e extractos dos decretos regulamentares, mas também «Notícias
marítimas, Preços correntes, Informações estatísticas, e tudo o que for
interessante para conhecimento do Público». Esta abertura das páginas da
gazeta do governo a matéria não oficial veio a ser, em 26 de Janeiro de
1855,
alargada e explicitada por consulta do Conselho Ultramarino ao Regente D.
Fernando II (1853-1855), merecendo a sua aprovação conforme ofício de 15 de
Fevereiro do mesmo ano dirigido aos governadores das colónias.
Fora o caso que tendo adoecido António Joaquim de Carvalho,
nomeado impressor para Moçambique por portaria do Ministério da Marinha e do
Ultramar nº 1224, de 22 de Outubro de 1853, e que, sozinho, tinha a seu cargo a
Imprensa e o Boletim, foi a publicação deste interrompida após terem
saído regularmente os primeiros vinte e três números. Desta interrupção teve o
Conselho Ultramarino "notícias extra-oficiais”, pelo que dirigiu ao
Regente a já referida Consulta. Nela salienta a importância da regularidade na
saída dos Boletins, cita o caso do atraso que se verifica em Moçambique
e um outro de irregularidade mais antiga que ocorre em Macau, e termina por dar
parecer sobre o conteúdo das gazetas oficiais das colónias. Diz a referida
Consulta a esse propósito:
(...) 2º Que os ditos Boletins publiquem, promiscuamente
com as outras peças para que são especialmente destinados, notícias comerciais,
não só da própria localidade como das praças com que a respectiva Província
entretiver mais frequentes relações, preços correntes, entradas e saídas de
navios (...).
3º
Notícias resumidas dos principais géneros de produção e
indústria agrícola; (...) è os documentos interessantes que existirem nos
Arquivos (...).
4a Notícias
importantes relativas às Províncias em que os Boletins são publicados, tais como
descoberta de minas, de novos produtos vegetais ou animais ou de qualquer
novo género de indústria ou novo ramo de comércio.
Tratando
particularmente de cada Província:
(...) d) o
Boletim de Moçambique deverá dar além de notícias gerais, as que obtiver tanto
comerciais como políticas, da colónia inglesa do Natal, da Maurícia, da Ilha
de Bourbon, e da de Mayota, da República da África Austral, formada pêlos
Colonos holandeses emigrados do Cabo da Boa Esperança, de Zanzibar e Imano de
Mascate, e especialmente do comércio e procedimento dos Árabes, súbditos
deste soberano, nos portos próximos de Cabo Delgado.
Além disto todas as notícias dos
sertões vastíssimos do continente adjacente à Província serão de muito interesse.
(...) 5a Notícias extraídas
dos jornais nacionais e estrangeiros, relativas a descobertas cientificas ou
empresas comerciais, industriais ou agrícolas.
6a
Quando a abundância de notícias exija mais folhas de impressão do que as ordinárias
de uma vez por semana, poderá o Boletim ser publicado mais vezes, e o seu
formato poderá aumentar (...).
Assinavam este ambicioso programa
o presidente do Conselho Ultramarino, Sá da Bandeira, e os vogais José
Ferreira Pestana, José Joaquim Silva Delgado, Domingos Correia Arouca e
António Jorge de Oliveira Lima (12).
Em
15 de Fevereiro de 1855, o Visconde de Atouguia enviou aos governos de todas as
colónias cópia da consulta do Conselho Ultramarino de que acima transcrevemos o
essencial para Moçambique, «com o parecer do qual Sua Magestade Houve por bem
Conformar-se, e determina que o sobredito Governo Geral proceda segundo as
indicações da dita consulta, dando as providências que lhe parecerem necessárias».
Deste incidente fica bem clara a preocupação do governo
central de que o Boletim Oficial não desse apenas notícia dos actos
oficiais, mas constituísse um verdadeiro jornal (13).
Da consulta do Conselho Ultramarino avulta ainda não só um
longo conhecimento das colónias e de seus interesses como tais, mas ainda a
preocupação do destaque a dar ao que de mais importante comandava esses
interesses. Daí a minúcia e a insistência com que se referem o comércio, a
navegação, as minas e as produções e indústrias agrícolas. Daí também, no caso
de Moçambique, a atenção que recomendam às colónias inglesas e francesas e ao
mui concorrente comércio árabe.
O Boletim Oficial de Moçambique nunca atingiu, mesmo
no período em que a sua feição noticiosa era mais importante, a craveira de
órgão de informação que o Conselho Ultramarino lhe preconizava. Nem o
noticiário foi tanto e tão variado como lhe sugeriram, nem os temas mais
aconselhados mereceram a atenção provavelmente esperada. Foi generoso, sim, no
espaço para o elogio fúnebre, lamentando «a prematura solidão da sua
inconsolável viuva — bem cedo lhe cessaram as doçuras do himeneu», ou
revoltando-se contra a morte «Ah! cruel Parca que nada respeitais!!”.
Foi largo de adjectivos, mas para os “Regosijos públicos nos dias natalícios
dos Reis». Deu notícias de chegadas e partidas e abriu as suas colunas à
crítica teatral, «o drama foi compreendido e bem desempenhado», a propósito da
representação na Ilha, por amadores, «do interessante drama do Poeta Português
V. d'Almeida Garrett, D. Filipa de Vilhena» e as maiúsculas são todas dos
proto-jornalistas lá do sítio.
Ë certo que deu uma ou outra notícia sobre a Europa recebida pela
via do Cabo, que informou sobre as entradas e saídas de navios, que deu rol dos
preços correntes e registou a tabela de câmbio para o ouro e para algumas
moedas exóticas. Mas ficou muito aquém dos desejos dos colonialistas do
Terreiro do Paço.
Mesmo
assim, foi, primeiro e durante muitos anos, o único ou o mais importante jornal
noticioso, e, depois, até ao fim dos seus cento e vinte e um anos de vida, o
registo pontual e organizado, bem impresso e limpo de gralhas, das nomeações e
transferências, reformas e demissões, castigos e louvores, multas e benesses,
prémios e medalhas, concursos e hastas públicas, sentenças e acórdãos, balanços
e contas, côdeas e manás. Declarou guerras e estados de sítio e levantou-os
quando foi oportuno. Muitas dessas guerras nunca existiram, mas bastava-lhes a
notícia na folha oficial para que a Junta de Fazenda presidida pelo
Governador--Geral decidisse que o próprio, mais o Secretário-Geral, mais o
Comandante da Praça, mais o Juiz, mais uns quantos outros seus próximos,
passassem a receber subsídio de campanha mais as restantes mordomias a que uma
tal situação dava direito. E, vasios os cofres da dita Fazenda, logo a guerra
era dada por terminada e, naturalmente, como ganha (14).
Foi no Boletim Oficial que nasceram
os primeiros jornalistas de Moçambique. E logo em 1854 e 1855. Sabe-se quem
foram. Assinavam. Tomás António Gonzaga de Magalhães, que em Moçambique nasceu
e morreu, e José Vicente da Gama, brâmane, nascido em Bardez, índia, mas que em
Moçambique fixou residência e também morreu (15). O primeiro faleceu na Cidade
de Moçambique em Junho de 1855, ainda solteiro e com apenas 26 anos de idade.
Mereceu dois "necrológios" da folha oficial: um, abrindo com um verso
de Ovídio, ocupava quase uma página e era assinado por seu cunhado Francisco
Borges Santos Bicho; o outro, datado de Quelimane, é assinado com as iniciais
C. C. G. [Cristóvão Colombo Generoso] e diz de Tomás Gonzaga de Magalhães que
«se não tinha o comércio das musas, não lhe faltava o génio».
José Vicente da
Gama assinou notícias no Boletim Oficial ao longo de muito mais tempo e excedeu
as páginas do semanário oficial, sendo autor do primeiro almanaque publicado em
Moçambique, o Almanaque Civil Eclesiástico Histórico-Administrativo da
Província de Moçambique: 1859 e ainda de uma Folhinha Civil e
Eclesiástica... que publicou para os anos de 1861 e seguintes, até 1864,
tudo impresso na Imprensa Nacional de Moçambique.
O Boletim Oficial que, como se disse, iniciou a sua
publicação na Ilha de Moçambique, em 13 de Maio de 1854, imprimiu-se naquela
cidade até ao nº 50, de 1898, editando-se o nº 51 já em Lourenço Marques, com a data de 17 de
Dezembro de 1898. Com algumas variantes no título que poderão ser seguidas no
Catálogo que constitui a segunda parte deste trabalho, publicou-se até ao nº
74, de 21 de Junho de 1875. Deste último número foram ainda distribuídos
posteriormente, mas com a mesma data, seis suplementos (16). Deve salientar-se
ainda que, tirante a interrupção verificada nos finais de 1854 por doença do
impressor e a que já nos referimos, o Boletim Oficial de Moçambique primou
sempre pela sua regularidade.
É justo ainda que se acrescente a notícia de que trabalharam na
Imprensa Nacional de Moçambique alguns dos mais competentes gráficos e dos
mais consciencializados e progressistas operários que de Portugal sairam. E é
importante que se diga que o seu trabalho em defesa da língua portuguesa, hoje
também língua oficial daquela ex-colónia, constituiu, sempre, ponto de honra
na prática diária de tipógrafos e revisores, e foi ali mais eficiente do que o
de todos os professores de português juntos. E quem não acreditar, ou julgar
que estamos a exagerar, leia os livros (e não foram poucos) e os jornais (e
foram muitos) que esses tipógrafos e revisores redigiram nos últimos cento e
cinco anos da Colónia — desde João Sinfrónio de Carvalho a Neves Dias e José
Craveirinha(17).
3. Como nasceu a censura prévia
Que a censura prévia não é para ajudar a imprensa — e já nem
falamos de tudo o resto — provam-no estas três originalidades da história do
jornalismo em Moçambique: a censura prévia foi ordenada oficialmente dois dias
depois do aparecimento do primeiro jornal não oficial da Colónia; o primeiro
jornal da Colónia não chegou a ter número dois; o primeiro jornal de Moçambique
que ultrapassou o primeiro número, nasceu apenas dois anos depois de ter sido
ali instituída a censura.
O
primeiro jornal não oficial de Moçambique publicou o seu nº 1 e único em 9 de
Abril de 1868, uma quinta-feira. Chamava-se O Progresso e
subintitulava-se Hebdomadário religioso, instrutivo, comercial e agrícola. Era
composto e impresso na Imprensa Nacional, única tipografia então existente na
Colónia. Custava 60 réis e aceitava anúncios a 30 réis a linha, 30 réis que
passavam para 20 se o interessado fosse assinante. Oferecia-se para anunciar
gratuitamente “publicações literárias (...) quando sejam remetidos 2
exemplares à redacção”. Tinha formato pequeno, o do Boletim Oficial, imprimindo
as suas quatro páginas a duas colunas. Era seu director Miguel Augusto dos
Santos Severino, professor da Escola Principal e advogado de provisão. Como
redactores, indicava o mesmo Severino e Manuel Dias da Silva. Nesse primeiro e
único número uma só colaboração era assinada: o poema «A Jesus Cristo»
estava-se na Páscoa) de Campos Oliveira (18).
O artigo de fundo, com um primeiro parágrafo destacado a servir de
título, resava como segue:
Manifesto dirigido ao Exmo. Snr.
Governador Geral sobre as opiniões que sentimos a respeito da instituição da
imprensa, à qual nos prendem os mais altos deveres de cidadãos dedicados ao
progresso das liberdades públicas e dos melhoramentos sociais.
Reconhecemos a faculdade de emitir o pensamento como a mais
nobre e valiosa franquia do sistema constitucional.
É a liberdade da imprensa, seu instrumento e órgão, a mais preciosa
e importante das liberdades. Conselheira dos povos, obreira da civilização,
moralizando e discutindo com cordura e dignidade, audaz e inflexível diante das
obstinações do vício, grave e circunspecta na apreciação dos negócios da
república, nobilitando os homens devotados ao engrandecimento moral e material
da pátria, eis os robustos esteios que devem amparar o prestígio da sua independência.
(...)
E segue por ali adiante, meia página de encómios ao papel da imprensa e
de argumentos na defesa da sua liberdade. Não lhe valeu de nada, que a história
era outra e entre graúdos.
Ocupava o cargo de juiz da comarca de Moçambique o Dr.
Vicente Máximo da Silveira, tendo como escrivão o sargento-quartel-mestre do
Batalhão de Infantaria nº 1 João Lopes Gil Barata e sendo governador-geral o
tenente-coronel do Corpo do Estado-Maior António Augusto de Almeida Portugal
Correia de Lacerda (1867-1868). Há um processo com 65 libras em ouro apensas; o
Juiz pede o processo ao Escrivão e este não o entrega pois, ao que consta, as
libras de ouro já haviam sido feitas rolar pelo dito nas alfurjas de tavolagem
da Ilha; o Juiz insiste; o Escrivão persiste; o Juiz prende o escrivão. O
Governador-Geral, avisado pelo Juiz da prisão do Sargento, exige o cujo para
prisão militar; o Juiz quer o Escrivão em cadeia civil. Uma guerra.
É então que Miguel Augusto dos Santos Severino, advogado de
provisão e quiçá dorido por alguma sentença do Juiz Máximo, resolve tomar o
partido do Governador. E redige um documento histórico, o primeiro panfleto
impresso em Moçambique: Duas palavras ao público acerca do snr. Juiz de
Direito desta Comarca Vicente Máximo da Silveira. O panfleto, com data de
24 de Março de 1868, foi impresso na Imprensa Nacional, única existente, e,
para total "isenção", distribuído com o Boletim Oficial. O
Juiz zanga-se, requere ao Juiz substituto «a justificação judicial dos verídicos
casos apontados», e resolve queixar-se ao Ministro da Marinha e Ultramar.
Ora é neste contexto que surge O
Progresso, dirigido pelo autor do panfleto, com aquele fundo tão empenhado
na liberdade de imprensa na primeira página e mais umas ferroadas ao Juiz na
terceira. E é ainda no mesmo contexto que aparecem os dois documentos
preciosos de que abaixo se dá conta, ambos da responsabilidade do
tenente-coronel Correia de Lacerda, governador-geral como já se sabe, apóstolo
da livre manifestação do pensamento como se afirma, e coerente como se verá.
Entre as duas prosas medeiam oito dias.
Diz o Governador-Geral no ofício confidencial nº 32, de 3 de Abril de
1868, dirigido ao Ministro da Marinha e Ultramar, justificando a permissão
dada à Imprensa Nacional para imprimir o panfleto contra o Juiz:
V. Exa. sabe
perfeitamente quais têm sido as minhas ideias como deputado, e como jornalista,
a favor da livre emissão do pensamento. Numa província onde não há senão a
imprensa que imprime o boletim do governo poderia eu recusar a publicação de um
artigo que, a ter alguma criminalidade, lá estava a lei para castigar o autor?
Contra mim mesmo que fosse o aludido artigo, eu o mandaria publicar, por que
enquanto me for confiado o governo desta província, não hei-de tolher a livre
manifestação do pensamento, por meio da imprensa, porque dela fui, por largos
anos, um dos mais dedicados apóstolos.
Ora oito dias depois, a 11 de Abril de
1868, o Boletim Oficial da Província de Moçambique nº 15 publica na sua
página 70 o seguinte primeiro documento importante para a larga história da
repressão à liberdade de imprensa em Moçambique:
Ordem nº 243 — Sua Exa. o
Governador-Geral da Província manda prevenir o encarregado da Imprensa Nacional
(19), de que no jornal O Progresso, que se imprime na referida oficina,
se não devem inserir artigos, ou correspondências de natureza política ou de
agressão pessoal, e como tais estranhos à índole de um jornal puramente literário;
devendo outrossim, o referido encarregado, remeter à Secretaria-Geral: antes da
tiragem do referido jornal, uma prova de prelo, a fim de se lhe lançar o
competente visto, sem o qual se não poderá imprimir o mencionado.
Secretaria do
Governo-Geral da Província de Moçambique, 11 de Abril de 1868 -- O
Secretário-Geral, João António de Sousa Júnior.
E, quiçá porque o jornal visado se anunciava Hebdomadário
religioso, instrutivo, comercial e agrícola e não puramente literário como
o governador apóstolo da “livre manifestação do pensamento” houve por bem
decidir, acabou-se O Progresso logo ao primeiro número. Quer dizer,
dois dias apenas depois de ter sido publicado o primeiro número do primeiro
jornal não oficial de Moçambique,
nascia ali a censura prévia à imprensa. E, rápida como se viu e eficiente como
só ela, não só já nem houve segundo número para esse pioneiro como só voltou a
existir imprensa não oficial naquela Colónia dois anos mais tarde.
Mas para darmos a este acontecido a sequência necessária e
dele podermos tirar toda a moral, convém dizer, para que conste, o que sucedeu
aos seus vários intervenientes.
O juiz Dr. Vicente Máximo da Silveira foi transferido, por decreto
de 1 de Julho de 1868, para a comarca de Salcete, na índia.
O governador-geral, tenente-coronel António Augusto de Almeida
Portugal Correia de Lacerda, foi mandado regressar a Lisboa e, em 31 de Agosto
de 1868, entregou a Colónia ao seu 14º Governo Provisório.
Miguel Augusto dos Santos Severino não voltou a ter um jornal
seu, mas manteve-se, ainda durante uns tempos, assíduo colaborador do Boletim
Oficial, assinando noticiário da Colónia. Mais tarde, foi inspector das
Alfândegas e na década de 90 era director da Alfândega de Moçambique. Foi a
primeira pessoa que na então Província teve direito a retrato num jornal, não
por ter escrito nas gazetas, nem sequer por ter sido ali a primeira vítima da
censura, minudências que já iam longe, mas muito naturalmente por ser agora
alto funcionário (20).
4. Os jornais da primeira capital da Colónia
Até 1887, publicaram-se na cidade de Moçambique, além do Boletim
do Governo e de O Progresso, de que já falámos, nada menos do que
onze jornais noticiosos, uma revista literária e um boletim científico, tudo
iniciativa não oficial, embora em boa parte dos casos se servissem do apoio da
Imprensa Nacional (21).
Com excepção dos três
jornais da iniciativa de João Paula de Carvalho, Joaquim José Lapa e João
Sinfrónio de Carvalho, que, no seu conjunto, viveram dezasseis anos — aliás
continuando a numeração uns dos outros — os restantes tiveram existência
efémera e de alguns pouco mais se sabe do que a notícia de terem existido, tão
curta lhes foi a vida e tão pobres deveriam ter sido as suas tiragens.
Dos primeiros dois jornais vindos a lume na Ilha, depois do
malogrado Progresso, pouco se conhece. Do primeiro, A Imprensa, um
semanário político, literário e noticioso, temos a informação de Augusto
Xavier da Silva Pereira, segundo a qual se publicou de 1870 a 1873 (22). Do
segundo, intitulado A Verdade, há apenas a notícia de que foi publicado
em 1871.
Foi em 5 de Setembro de 1872 que, com o aparecimento do
bissemanário Noticiário de Moçambique, a imprensa noticiosa não oficial
na Colónia começa a ter alguma consistência. O novo jornal publicava-se às
quintas e domingos, era de formato pequeno e imprimia-se, como não podia deixar
de ser, na Imprensa Nacional. Eram seus proprietários: Francisco Paula de
Carvalho, professor da Escola Principal e advogado de provisão e que, mais
tarde, viria a ser director da Imprensa Nacional; Joaquim José Lapa, oficial de
Engenharia, sócio da Sociedade de Geografia de Lisboa (23); e João Sinfrónio de
Carvalho, tipógrafo e, ao tempo, encarregado da Imprensa Nacional.
É esta a primeira notícia que possuímos da interferência de um
tipógrafo na direcção e redacção de um jornal em Moçambique. Verificaremos ao
longo de toda a história da imprensa da Colónia que eram tipógrafos os
responsáveis ao nível da direcção e da redacção por um grande número de
jornais. Quer de jornais meramente noticiosos, quer, e muito aguerrida e
conscienciosamente, de jornais operários. Mas teremos melhor oportunidade de
voltar a este assunto.
O Noticiário de Moçambique deixou de se publicar em 1873 —
o último número conhecido tem a data de 27 de Março — numa altura em que já se
publicava apenas uma vez por semana, às quintas-feiras. Começara com quatro
páginas de formato pequeno, passara a oito e depois de novo a quatro mas de
formato grande. Joaquim José Lapa deixara o jornal em Dezembro de 1872.
No entanto,
logo duas semanas depois, em 10 de Abril de 1873, inicia a publicação um
semanário com o título de Jornal de Moçambique. É dos mesmos Francisco
Paula de Carvalho e João Sinfrónio de Carvalho, e continua o anterior,
voltando, porém, ao formato pequeno. João Sinfrónio de Carvalho virá a deixar
este jornal quando ele completou um ano de publicação, pouco antes de se
aposentar de encarregado da Imprensa Nacional, cargo em que foi substituído
pelo Paula de Carvalho. O Jornal de Moçambique viveu ainda até 1875.
Em 30 de Novembro de 1876, os mesmos
fundadores do Noticiário de Moçambique — Joaquim José Lapa, João
Sinfrónio de Carvalho e Francisco Paula de Carvalho — lançam um novo semanário,
agora com o título de África Oriental, mas continuando os dois anteriores.
Paula de Carvalho é o proprietário e esta sua terceira iniciativa tem a
destacá-la o facto de ser o primeiro jornal não oficial de Moçambique com
tipografia própria (24). Um jornal que ficou também marcado pela sua
longevidade, pois que se publicou até 1887. Com os seus dois antecessores, são
dezasseis anos de vida e praticamente sempre com a mesma equipa responsável.
Mudou algumas vezes o dia de publicação e teve vários administradores. O
primeiro foi António da Costa Madeira Pimentel e o último, que era também o
encarregado da tipografia, João Vicente do Espírito Santo.
Com poucos números publicados, o primeiro dos quais em 10 de Abril
de 1880 e o último em 22 de Maio do mesmo ano, existiu na cidade de Moçambique
um segundo semanário de nome A Verdade. Nada mais dele se sabe. Em fins
de Agosto de 1880 iniciou a publicação um outro semanário, O Gato, que
se editou até 1882. O seu conterrâneo África Oriental, na edição de 20
de Setembro de 1880, classificava-o de «ridículo órgão jornalístico, ínfimo
excremento de literatura semanal». Pelo que vimos deste Gato e dado sabermos
por Neves Dias que o seu detractor era um jornal «com características
governamentais, pois dizia bem de todos os governadores da Província a
propósito de tudo e de nada», dá para pensar onde afinal estaria o gato (25).
Em 1881, publicou alguns números um quinzenário que as autoridades
diziam político, O Correio de Moçambique, do qual não se sabe mais nada
(26).
Em
1885, nasce na Ilha capital o que podemos classificar como o primeiro exemplo
de jornal sensacionalista da Colónia. Chamava-se Imparcial e talvez daí
a razão de só ter publicado três números. Era seu proprietário, director e redactor
principal, o ex-alferes Alfredo de Aguiar. Mestiço de Angola, partiu para
Moçambique em 1879, com o batalhão angolano que para ali foi prestar serviço.
Neves Dias classifica este jornal de «folha de combate e de escândalo». Não
vimos nenhum dos três números, mas conhecemos os outros jornais do ex-Alferes
— publicou três semanários em Quelimane, utilizando quatro títulos, entre 1886
e 1894 — e concordamos com a classificação à qual acrescentaríamos apenas a
palavra "incómoda" e, na altura própria, veremos porquê.
Há ainda notícia
de um jornal editado na capital da Colónia em 1886, intitulado Civilização
Africana, do qual nada mais se sabe, o mesmo sucedendo com um outro,
chamado Moçambique e que, segundo Rocha Martins, publicou o primeiro
número em 15 de Dezembro de 1888 e o último em 1 de Janeiro de 1889 (27).
Aceito desde já a perplexidade do leitor perante as frequentes
afirmações de que deste «nada se sabe», daquele «apenas se sabe» e do outro
«nada mais se sabe». Já havíamos tratado deste tema no Prefácio, mas
voltamos a ele agora que estamos a falar de uma parte da história da imprensa
noticiosa em Moçambique para a qual se verifica grande falta de informação.
Lembrámos, no Prefácio, os dois principais obstáculos com que nos
deparámos: a não existência em Portugal de coleccionadores de jornais, por
falta de tradição, mas muitas vezes também por prudente receio; e as muitas e
variadas repressões que a imprensa ali sofreu ao longo da sua vida, repressões
de várias origens e que, se por vezes reduziram drasticamente os arquivos dos
órgãos atingidos, outras houve em que acabaram com eles por completo. E,
assim, hoje, quer nas bibliotecas quer nos arquivos, onde, diga-se de passagem,
não faltaram períodos de negligência e de falta de interesse por este tipo de
documentação, não existem colecções completas de muitíssimos títulos como de
alguns nem um único número se pode já encontrar.
No caso dos jornais de que temos vindo a tratar, acrescentemos
ainda que as tiragens deveriam ter sido muito pequenas, quando não até
fantasmas. Não detectámos ainda qualquer caso deste último tipo em Moçambique,
onde, no entanto, registamos numerosíssimos jornais publicados clandestina ou,
pelo menos, ilegalmente. Mas sabemos que, por exemplo, em Angola, foram feitas tiragens de às vezes apenas um
único exemplar, só para poder ser enviado a qualquer sujeito influente do
Terreiro do Paço com a informação apensa: “Veja só V. Exa. o que dizem os
jornais de cá”. Ora estas preciosidades
desapareceram pura e simplesmente, até porque o próprio que as recebia não
estaria interessado numa tal memória.
E quem compraria estes jornais que, pelo menos desde 1872,
foram tão regulares?
Até
ao final deste período, 1887, e desde 1854, o Boletim Oficial não mudou
de preço: 80 réis por linha avulsa, ou seja, por cada oito páginas ou fracção.
Os jornais eram, até 1875, a 30 ou 40 réis, quatro ou oito páginas de formato
pequeno. Um deles, por pouco tempo, custou 50 réis, com quatro páginas de
formato maior, mas logo voltou ao preço anterior e ao formato pequeno com oito
páginas. A partir de 1876, passaram para 80 réis e, logo a seguir, para 120.
Por comparação, temos que o preço de um quilo de sabão era de 220 réis em 1873,
de 240 réis em 1876, e de 210réis em 1885.
E os salários? Um tipógrafo, compositor-chefe da Imprensa
Nacional, ganhava 800 réis por cada dia de trabalho; na construção civil, um
carpinteiro podia ir até aos 1600 réis por jorna. Na tropa de pré, de soldado a
sargento, não só aquele era curto, 40 réis o soldado e 80 a 100 réis o
sargento, como andava atrasado quase sempre. Os funcionários públicos ganhavam
de 10 a 15 mil réis ao mês, os não bacharéis, que estes podiam ir a um pouco
mais. E os oficiais do exército, a casta mais bem paga, iam dos 15$000 mês, o
alferes, a 45$000 mês, o major.
O público leitor teria assim de ser recrutado entre os oficiais do
exército, os bacharéis, um ou outro funcionário sem universidade e meia dúzia
de comerciantes. Pequenas tiragens, portanto. Fraco negócio, salvo o do tráfico
de influências ou da defesa do poder instalado, não poucas vezes compensador.
Neste período, a oposição a esse poder dominado por militares não aparecerá na
imprensa da capital, mas na de Quelimane, como veremos.
5. Quelimane: a primeira imprensa discordante
Enquanto na capital da Colónia a imprensa se mostrava, na sua quase
totalidade, louvaminheira do Governo, em Quelimane os primeiros jornais ali
impressos são francamente hostis à Administração. Num momento em que as
potencialidades da Zambézia começavam a ser vistas em termos de exploração
organizada, os aguerridos jornais de Quelimane defendiam essa via colonial e
acusavam os militares de monopolizarem o poder e o Governo de “atropelação da
lei e do direito”, brandindo títulos como «Moçambique em Pilhagem» (28).
Em 1877, Quelimane tinha o seu primeiro
jornal. Chamava--se O Africano e exibia sob o título: Instrução —
Religião — Moralidade (nalguns números alterava a ordem e a apresentação
para Religião, Instrução e Moralidade). Era seu proprietário e redactor
o introdutor da tipografia na então vila, o já nosso conhecido da nota 28,
João António Correia Pereira (29). Publicou-se regularmente, aos domingos,
desde 1 de Julho de 1877 até, pelo menos, ao nº 25 do 4a ano, com
data de 13 de Março de 1881. Começou por ter quatro páginas, passou mais tarde
a seis e, finalmente, a oito. Custava 100 réis avulso, mas aceitava
assinaturas, indicando os estabelecimentos onde as mesmas podiam ser feitas,
em Lisboa (30), no Porto, em Moçambique, em Cabo Delgado, em Inhambane, em
Lourenço Marques, em Sena, em Tete e até em Goa. Mal impresso e cheio de
gralhas, denota escassez de tipo, pois aparecem com muita frequência nomes
próprios com minúscula inicial e ditongos com o til deslocado ou com a letra
acentuada noutro tipo ou noutro corpo.
Tinha correspondentes na capital, no Ibo, em Inhambane, em
Lourenço Marques, em Tete e noutras localidades, que enviavam notícias hoje com
muito interesse para o estudo daquele período da vida de Moçambique.
Uma característica o destacava dos seus antecessores da capital: não
estava com o poder estabelecido nem com os militares que o controlavam. Dos
militares dizia praticamente que eram a causa de todos os males. Os seus
editoriais são documentos preciosos para a história colonial da época. Por
exemplo:
Correndo os Boletins oficiais,
deparar-se-á sempre, mais ou menos, com uma forma de atropelação da lei e do
direito público, a que jamais se têm poupado os chefes da província. Sabemos
que vai larga a corrupção na metrópole, e que de lá tem sido importada para as
colónias pêlos homens que nos enviam.
(Do editorial de
18 de Novembro de 1877, de crítica ao Governador-Geral.)
Tem sido governada a província de
Moçambique, mas não tem sido administrada; a classe militar, que tem tido o
exclusivo da governação nada tem feito de positivo e de grande, não tem
concorrido para fomentar a indústria, a agricultura, o comércio; tem apenas
desfrutado este património como pertença sua, como conquista da sua classe,
(...)
(Do editorial de
19 de Setembro de 1880, a propósito da posse de um novo Governador-Geral.)
É nessa edição de 19 de Setembro de 1880
que o jornal se afirma apoiante do Partido Progressista e ataca o
“ex-ministro regenerador Andrade Corvo»
por querer dar Lourenço Marques «aos nossos fieis aliados». Critica por
mais de uma vez o comandante militar da Vila de Sena e oferece-lhe as suas
colunas para se defender, não só por «não temer o mínimo período da sua impossível
defesa como porque a carta de lei de 18 de Maio de 1866 lhe dá o direito de se
defender grátis no jornal que o agrediu». O "agredido" não aceita a
oferta, mas já o mesmo não sucede com o Governador do Ibo, a quem o jornal
acusa de prepotência, de abuso de autoridade, e que se defende obrigando O
Africano a inserir públicas formas provando a não razão do ataque.
Entretanto,
ao noticiar a chegada à vila, vindo do interior, de Paiva Raposo,
concessionário do ópio, e depois de dar conta do estado da cultura da papoila,
da qualidade do ópio produzido e de afirmar os «terrenos da Zambézia óptimos
para a plantação daquele rico produto», vaticina: «A Europa conhecerá devido
aos esforços do Sr. Paiva que este país é digno de toda a atenção e cuidado pela fecundidade e riqueza do seu
solo”.
O último número conhecido, com data de 13 de Março de 1881 dedica
quase quatro das suas oito páginas a criticar oficiais do exército e a
descrever uma revolta dos soldados em Lourenço Marques por «não lhes ter sido
pago devidamente o pré». Prometia continuar com o mesmo tema, mas parece ter
acabado a sua publicação nessa semana...
De 1881 a 1883, publicou-se em Quelimane um semanário com o título
de O Quelimanense e o subtítulo de Órgão dedicado aos interesses da
Zambézia. Redigia-o Mariano Henriques de Nazaré e tinha tipografia própria.
Conhecem-se poucos números, mas por eles se pode apreciar que dedicava o melhor
das suas prosas a criticar o Ministro da Marinha e Ultramar e os seus colaboradores
mais próximos.
Um outro semanário, propriedade de Frederico José da Silva e
Pedro de Sá, viu a luz do dia em Quelimane, em 1882 e 1883, com o sugestivo
título de O Vigilante, mas nada mais dele se sabe.
Em
1886, instala-se em Quelimane, com o seu prelo, o ex--alferes angolano Alfredo
de Aguiar, de cuja fugaz actuação na capital da Colónia já demos notícia. Entre
1886 e 1894, publica naquela vila três semanários: o Correio da Zambézia,
Publicação semanal dedicado (sic) aos interesses do ultramar(1886-1887),
a Gazeta do Sul (1889-1891) e o Clamor Africano (1892-1894). Ainda
usou o título de A Luta (1893), mas apenas porque o Clamor esteve
suspenso. No Clamor Africano são indicados nomes, o que não sucedia nos
títulos anteriores. Assim, informa: proprietários A. Lopes e A. Aguiar; editor,
José Guedes; director político, Alfredo de Aguiar; redactor principal, Eduardo
de Balsemão. Jornais sensacionalistas, viviam de campanhas de escândalo, como
já referimos. Títulos como «A Província de Moçambique em pilhagem» (Correio
da Zambézia, nº 1, 1 de Dezembro de 1886) encabeçam relações dos ordenados,
das gratificações de cargo, das ajudas de custo, etc., dos altos funcionários
civis e militares da Colónia, começando a lista pelo Secretário-Geral. E repete
a relação, pelo menos nos nos. 2, 3 e 9, por vezes com actualizações como sucede
logo no segundo número, em que já ocupa mais de uma página. «Orgia
governativa» é o título de um editorial de ataque ao Governo da Colónia em
termos desabridos, no mesmo Correio da Zambézia (8 de Dezembro de 1886).
Durante duas edições (8 e 15 de Dezembro de 1886) e com anúncio prévio,
descreve uma caso de estupro e seu seguimento judicial. O acusado é o delegado
da Comarca e curador geral dos órfãos (!), bacharel Alexandre Barbosa de
Mendonça, e a vítima, uma órfã de doze anos, é irmã do empregado da Fazenda Vicente
Caetano de Sá. Alfredo de Aguiar leva o próprio irmão da vítima a prestar
declarações ao jornal e a assiná-las.
Do jornal A Luta, já sabemos que publicou um número em
1893, em substituição do Clamor Africano, porque este estava suspenso.
Neves Dias dá notícia de que aquele jornal se teria publicado também em 1892, o
que não nos custa a crer ter sucedido enquanto Alfredo de Aguiar não conseguiu
habilitar o Clamor Africano. Publicar jornais com títulos diferentes,
ligeiramente iguais ou mesmo iguais, como números únicos ou como números programa,
em substituição dos que estavam suspensos ou que aguardavam habilitação foi um
expediente muito usado até à Lei João Belo, de 1926, sendo exemplar o caso do Emancipador,
de Lourenço Marques, que se publicou durante dezoito anos, utilizando
trinta e três títulos diferentes, e de que trataremos em detalhe no capítulo V.
E de 1893 a 1895, também naquela vila de Quelimane, o major
Peixoto do Amaral publicou um jornal intitulado Eco da Zambézia, que ele
próprio redigia, compunha e imprimia. Nunca conseguimos ver esta curiosidade
editorial.
Notas:
(1) A Impressão Régia, depois
chamada Imprensa Nacional, foi criada pelo Marquês de Pombal por alvará de 24
de Dezembro de 1768, materializando-se através da compra por dois contos de
réis da tipografia do impressor do Santo Ofício, Miguel Manescal da Costa. O
primeiro número do Diário do Governo produzido naquela Imprensa foi
publicado em 16 de Outubro de 1820.
(2)
LOPES, António dos Mártires. -- Imprensa de Goa. -- Lisboa, 1971.
(3) Há
notícias de a tipografia ter sido introduzida no Recife em 1706 e, em 1747, em
Pernambuco e no Rio de Janeiro, mas sucessivas ordens régias mandavam «aboli-la
e queimá-la para não propagar ideias que podiam ser contrárias ao interesse do
Estado».
(4) EÇA, Filipe Gastão de Almeida
de.-- Qual Foi o Primeiro Livro Impresso em Moçambique?-- Lisboa, 1953.
(5) CUNHA, Pe. Santana
Sebastião da.-- Antiguidades Históricas da Ilha de Moçambique e do Litoral
Fronteiro, desde os Tempos da Ocupação.-- Lisboa, 1939.
(6) [DIAS, Raul Neves).-- Quatro
Centenários em Moçambique: 1854-1954.-- Lourenço Marques, 1954; e
DIAS, Raul Neves.-- A Imprensa
Periódica em Moçambique, 1854-1954: Subsídios para a sua História.-- Lourenço
Marques, 1956.
(7) Para melhor apreciação,
mantemos a ortografia e a pontuação do texto tal como foi impresso.
(8) De O Progresso, publicado em
1868 e de que falaremos adiante, só saiu o primeiro número.
(9) Após a Concordata de 1940 com a Santa
Sé e do Acordo Missionário seu anexo, os bispos, sacerdotes, religiosos e
religiosas que exerciam a sua actividade nas Colónias recebiam vencimento do
Estado segundo uma tabela que acompanhava em equivalência a dos funcionários
públicos, pelo que as suas nomeações, transferências, promoções, licenças na
Metrópole, etc., constavam do Boletim Oficial como as de qualquer
funcionário público. Nem sempre, e isso sucedia, por exemplo, na Arquidiocese
de Lourenço Marques, os missionários, nomeadamente as religiosas, recebiam o
vencimento que lhes era destinado pela Fazenda Pública. Transferido em
conjunto para os cofres diocesanos, por lá ficava em boa parte, chegando às
mãos das irmãs, quando chegavam, uns míseros tostões. Irmãs que ali eram
enfermeiras, professoras, improvisadas assistentes sociais ou hábeis artesãs
que pacientemente e de graça bordavam e pintavam os paramentos do Prelado e as
alfaias dos altares da Catedral. Quanto ao Arcebispo, esse tinha um Rolls-Royce,
oferecido pelos interesses algodoeiros de Riba de Ave, é certo, mas no
qual se permitia passear aos fins de semana, indo até à Namaacha, terra de bom
clima, com colégios dirigidos por Irmãs onde poderia beneficiar de boa mesa e
algum repouso, e, mais a mais, apenas a 80 quilómetros da capital.
(10) A propósito das preocupações
oficiais para que o Boletim cumprisse as suas funções como o órgão de
informação que era, mais a mais único, veja--se a portaria do Governador-Geral
de Moçambique, de 22 de Maio de 1860, que regula a sua distribuição.
(11) Diz-nos Alexandre Lobato que «O
Bando (Edital ou Aviso) era lido ao povo nas ruas e praças da Ilha de
Moçambique pelo pregoeiro ou meirinho do Senado da Câmara, acompanhado de um
pífaro e dois tambores que o Senado requisitava ao Regimento da Praça».
(LOBATO, Alexandre.-- História da Fundação de Lourenço Marques.-- Lisboa,
1948, p. 82)
(12) Pelo menos Sá da Bandeira, Domingos Correia Arouca e
António Jorge de Oliveira Lima já antes se haviam mostrado profundos
conhecedores da situação geo-económica de Moçambique, bem como dos domínios e
do comércio inglês em África e na índia. Em 11 de Outubro de 1853, o Conselho
Ultramarino, de que o primeiro era presidente e os dois outros vogais,
assinava uma Consulta dando parecer desfavorável sobre a proposta apresentada
ao Governo para a formação de uma companhia privilegiada que se propunha
«administrar e explorar os territórios portugueses da África Oriental por
noventa e nove anos», com o direito a tudo, até a «dispor das forças de
mar e terra e de nomear os seus comandantes». O parecer desfavorável baseia-se
em argumentos de quem conhecia não só a lei como a realidade que então viviam
as colónias, os mercados de matérias primas e até os de capitais, e de quem
defendia um colonialismo que, devendo embora ser praticado através de empresas,
não o fosse em tanta exclusividade para que não fugisse do controlo do Estado.
(13) Desconheço se os boletins dos
governos das colónias portuguesas foram ou não precursores nessa mistura do oficial
com o particular numa só gazeta. Mas sei, por exemplo, que ainda na década de
50 deste século, na Suazilândia, vizinha de Moçambique, The Times of
Swaziland, um pequeno jornal que se publicava aos sábados em Mbabane,
capital do então ainda protectorado britânico, cumpria aquela dupla função
como único jornal noticioso do território e, simultaneamente, como folha
governamental para a difusão de leis, decretos, despachos, avisos e demais
anúncios oficiais.
(14) Falaremos disto mais adiante, quando
tratarmos da imprensa de Quelimane, mas não deixaremos de registar aqui o
ridículo de alguns "historiadores" — estrangeiros, é bom se diga,
posto que por vezes apaparicados pêlos poderes públicos pátrios — que
relacionam e contam pelas tais declarações do Boletim Oficial, as
«guerras de repressão colonial na Zambézia». E não estou a dizer que as não
tenha havido. Só que não foram tantas nem aquelas. É que teria bastado aos
pobres de espírito ou ricos de má fé — e aqui hesito — terem lido os jornais
não oficias de Moçambique da mesma época para não caírem no disparate. E já nem
falo na consulta de arquivos que, como se sabe, é coisa que cansa os olhos e
contraria, pelo tempo que leva, a oportunidade de obtenção do almejado subsídio
ou da cobiçada bolsa.
(15) Tomás António Gonzaga de
Magalhães era filho de Adolfo Pinto de Magalhães e de Ana de Mascarenhas
Gonzaga, e neto de Tomás António Gonzaga, o célebre autor de Marília de
Dirceu, que em 1795 foi condenado a degredo para Moçambique, depois de três
anos de prisão no Brasil, acusado de fazer parte do movimento que passou à
história sob o nome de Inconfidência Mineira e visava a independência da
Colónia. Um ano depois de ter chegado a Moçambique, Tomás António Gonzaga casou
com D. Júlia de Sousa Mascarenhas, filha do abastado proprietário e negociante
da Ilha, Alexandre Roberto de Mascarenhas. Desde logo sócio do sogro, negreiro
influente, viveu o resto da sua vida naquela cidade, «rico e muito
considerado», mandando regularmente para a terra da sua Marília carregamentos
de escravos que, menos românticos do que os versos que o celebrizaram, tinham o
condão de o manter em contacto com a pátria da amada e de lhe arredondar a
fortuna. Faleceu na Ilha de Moçambique em 1810, quando juntava já aos negócios
familiares e ao exercício da advocacia o cargo de Juiz das Alfândegas.
José Vicente da Gama teve vários cargos
no Município da Cidade de Moçambique de que chegou a ser presidente, foi juiz
ordinário da Comarca e procurador à Junta Geral do Distrito. Fez parte do 14º
Governo Provisório de Moçambique (1868-1869).
(16) No dia 25 de Junho de 1975, nascia uma nova nação
soberana, a então chamada República Popular de Moçambique. E, nesse mesmo dia,
publicava-se o nº 1 de uma nova folha oficial, a sua. Chamava-se Boletim da
República e o sumário desse nº 1 continha apenas dois títulos:
"Constituição da República" e "Lei da Nacionalidade".
(17) O poeta moçambicano José
Craveirinha, quando em 1964 foi preso pela PIDE, acumulava a sua actividade de
jornalista com a de revisor da Imprensa Nacional de Moçambique.
(18) José Pedro da Silva Campos Oliveira,
poeta e prosador, foi o primeiro escritor de língua portuguesa nascido em
Moçambique. Nasceu na capital da Colónia em 17 de Abril de 1847, fez os seus
estudos de Jurisprudência em Goa, onde foi funcionário público e publicou o Almanaque
Popular para 1865, depois de ter publicado prosa e verso no jornal daquela
cidade Ultramar e na Ilustração Goana. Regressou a Moçambique em
1867, onde, após ter colaborado, como vimos, no primeiro jornal não oficial da
Colónia e ainda nos semanários Noticiário de Moçambique e Jornal de
Moçambique, criou a primeira revista literária daquele território, a Revista
Africana, de que foram publicados seis números, três em 1881, dois em 1885
e um em 1887. Colaborou ainda no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro (1870-1888)
e na revista Brasil-Portugal (1905). Exerceu vários cargos públicos em
Moçambique, tendo-se aposentado como director dos Correios da Colónia, em cuja primeira
capital faleceu em 1911.
(19)
O encarregado era então João Sinfrónio de Carvalho.
(20)
No Clamor Africano, Quelimane, nº 95, 7 de Junho de 1894.
(21) A revista literária chamava-se Revista
Africana e já a ela nos referimos na nota 18 a este capítulo. O boletim
científico, a primeira publicação deste tipo editada na Colónia, era o Boletim
da Sociedade de Geografia de Moçambique, cujo nº 1 foi publicado
em Junho de 1881, editando-se até 1883.
(22) PEREIRA, Augusto Xavier da Silva. --
O Jornalismo Português: Resenha Cronológica de todos os Periódicos
Portugueses Publicados no Reino e no Estrangeiro, desde o Meado do Século XVII
até à Morte de D. Luís /.— Lisboa, 1896
(23) Joaquim José Lapa, que supomos ter
sido o principal impulsionador da Sociedade de Geografia de Moçambique
(1881-1883), exerceu na Colónia numerosos cargos, nomeadamente os de presidente
da Câmara Municipal de Lourenço Marques e de Governador do Distrito de
Quelimane. Foi também, como veremos, director do primeiro jornal de Lourenço
Marques.
(24) Esta tipografia, que deve ter sido a
primeira instalada na Colónia pertencente a particulares, situava-se no nº 2
da rua de São Paulo, na Ilha de Moçambique.
(25) DIAS, Raul Neves.-- A Imprensa Periódica
em Moçambique: 1854-1954: Subsídios para a sua história.-- Lourenço
Marques, 1956
(26) Ofício do Governo-Geral nº 113, de 1
de Abril de 1881, dirigido ao Ministério da Marinha e Ultramar.
(27) MARTINS, Rocha.-- Pequena
História da Imprensa Portuguesa.-- Lisboa, 1941
(28)
Com base na concessão feita a Inácio José de Paiva Raposo de 20 mil hectares de
terrenos na Zambézia para a cultura da papoila e do exclusivo por doze anos da
exportação do ópio pelas alfândegas de Moçambique sem pagamento de direitos,
foi criada em fins de 1876 a Companhia de Cultura e Comércio do Ópio em
Moçambique, e em 1877 já a papoila era plantada e «as cápsuIas são óptimas, não
só pelo tamanho como pela qualidade», segundo afirmava um jornal de Quelimane.
Com base naquela empresa e nos seus terrenos foi fundada pelo mesmo Paiva
Raposo, em 1890, a ainda hoje existente Companhia do Açúcar de Moçambique, que
já em 1893 produzia 665.352 quilogramas de açúcar e 46.000 litros de
aguardente. Nascia assim na Colónia, com o ópio, a exploração pela via da
empresa concessionária de grandes áreas e apoiada por exclusivos e privilégios.
E em tudo isso houve grande influência a imprensa de Quelimane, ou não tivesse
sido o seu primeiro jornal fundado por João António Correia Pereira, o criador,
no por si arrendado prazo Mahindo, de uma exploração agrícola e industrial
modelo que haveria de ser a base de expansão e a sede em Moçambique da
importante companhia monegasca Société du Madal, empresa que ainda hoje ali
opera e já foi a maior produtora de copra do Mundo. (Ver: ROCHA, Ilídio.— Um
Portuense na Zambézia do Século XIX— "História", Lisboa (136)
Jan. 1991. p. 66-79)
(29) A Tipografia de O Africano, instalada,
sucessivamente, na rua de Goa, na rua de D.Luís e na rua de S. Domingos.
(30) Na Confeitaria Ultramarina, de José
António de Oliveira, na rua da Prata.
..........................................................................................................................................................................................( CONTINUA)