Por Adelto Gonçalves

 

 

            Virgílio de Lemos, 72 anos, é um poeta branco de alma negra. Nasceu na ilha de Ibo, parte do arquipélago das Quirimbas, na costa oriental da África, por onde Vasco da Gama e, depois, Luís de Camões passaram, mas criou-se em Lourenço Marques, atual Maputo. Ficou conhecido no Brasil com a antologia Eroticus moçambicanus, que reúne poemas escritos entre 1944 e 1963, publicada em 1999 pela Editora Nova Fronteira, com edição já esgotada. Agora, em Lisboa, pelo Instituto Camões, sai Para fazer um mar, que reúne poemas inspirados pelas ilhas do norte de Moçambique, o que levou o prefaciador Luís Carlos Patraquim, outro fino poeta moçambicano, a definir o seu autor como o Senhor das Ilhas.

Poeta insular, ligado ao Oceano Índico, Virgílio é filho de uma família de antigos funcionários da Coroa portuguesa, que faziam o triângulo Lisboa-Rio-Goa. Cresceu assistido por mulheres macuas-suailis. Carrega, por isso, além da herança ocidental, traços culturais do Oriente: habitadas por árabes e, depois, por portugueses e indianos, aquelas ilhas sempre foram territórios em que se mesclaram tradições mouras, africanas e lusitanas.

            Na juventude, Virgílio não pôde concluir os estudos de Antropologia e Literatura Inglesa na Universidade de Witts, em Johanesburgo, mas acabou por se “graduar” em jazz negro no bas-fond sul-africano. Leitor inveterado, aos 14 anos de idade, já havia traduzido T. S. Elliot para o português. E andava intrigado com a constelação de heterônimos de um poeta português falecido alguns anos antes, então pouco conhecido, Fernando Pessoa.

            Talvez tenha sido por isso que estreou em livro atrás de um pseudônimo, Duarte Galvão, um tipo múltiplo, capaz de captar a negritude, de ser branco, chinês, crioulo, índio maia e amazônico ou indiano, à maneira de Jack London ou Malcolm Lowry. Hoje, Virgílio de Lemos diz que Galvão Duarte, que conheceu a poesia de Leopold Senghor e Aimée Cesaire, intuía que a negritude podia ser utilizada como arma de libertação do homem, mas desculpa-se por não ter podido adivinhar que os movimentos de libertação redundariam em guerras civis devastadoras, como em Moçambique e Angola.

            Duarte Galvão levou Virgílio de Lemos a confrontos com as autoridades coloniais no começo dos anos 60. Seu livro de estréia, Poemas do tempo presente, foi apreendido pela Pide, a polícia política do ditador Salazar. Acusado de ter insultado a bandeira portuguesa, ao chamá-la de “kapulana vermelha e verde”, acabou absolvido por um tribunal civil, enquanto a Pide era obrigada a indenizar os exemplares apreendidos. Não havia mesmo nenhum insulto: kapulana é o pano que as mulheres negras usam em volta da cintura e mesmo a partir do peito para proteger a criança, às costas.

             Em outubro de 1961, porém, Virgílio voltava à prisão, desta vez acusado de conspirar contra o poder português, ao lado de outros 13 co-réus, todos negros ligados ao movimento de resistência ao colonialismo. Ficou 14 meses na cadeia e, quando saiu, não quis pagar para ver: ao final de 1963, mudou-se para Paris, quase um ano antes de ser declarada a guerra colonial.

            Ficou quase três décadas sem publicar livros. Mas nunca abandonou a poesia. Seus trabalhos estão perdidos em jornais e revistas do Moçambique colonial e de outras partes do mundo. Ainda em Maputo, entre 1952 e 1953, publicou poemas num jornal sob o pseudônimo Bruno dos Reis, uma espécie de homenagem ao Ricardo Reis pessoano. Em 1952, foi um dos fundadores da revista Msaho, que tinha influências dos modernistas Oswald e Mário de Andrade e de vanguardistas europeus e outros. Mais tarde, ainda na África, inventou o heterônimo Lee-Li Yang, uma macaísta luso-inglesa, para responder a poemas de amor que haviam sido escritos por Duarte Galvão.

            Vivendo em Paris ou em errância pelo mundo (Buenos Aires, Tóquio, Atenas, Estocolmo, Cuba, Cabo Verde, Bombaim, Lisboa e Rio de Janeiro foram lugares de pouso temporário), Virgílio de Lemos inventou outros heterônimos, como V. Klimt, que escreveu poemas entre 1967 e 1973, e V. Ernest, autor de um livro de análise política sobre a Guerra dos Sete Dias e a Palestina. Para sobreviver, trabalhou como jornalista no Le Monde Diplomatique, na revista Présence Africaine e na Rádio França Internacional e no Departamento da África Negra no Museu do Homem, em Paris.

            Entre 1988 e 1990, publicou três livros de poemas em francês – o mais famoso deles, L´Obscene Pensée d´Alice. Até que foi, enfim, redescoberto pelos leitores de língua portuguesa: em 1999, em Maputo, saíram à luz Negra Azul, em edição do Instituto Camões e do Centro Cultural Português, e Ilha de Moçambique (a língua é o exílio do que sonhas), pela Associação Moçambicana de Língua Portuguesa (Amolp). No ano passado, foi publicado Lisboa, oculto amor, pela Minerva Editora, de Coimbra.

            Poeta da diáspora portuguesa, Virgílio de Lemos define a sua poesia como errância e rebeldia: “Não há poeta a favor, mas sempre do contra”, disse, depois de um seminário sobre a Ilha de Moçambique, ao final de setembro, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em que travou uma discussão com Nelson Saúte, representante da nova geração de poetas moçambicanos. Para Virgílio, a poesia não admite contemporizações nem acordos com o poder político, seja branco ou negro:

                        Eu no convés sou mais

                        Mar que terra.

                        Sem lemes sem mastros

                        Retrancas ritmos

                        Sem velas.

                        E é tanto e sem limites

                        O desgaste da beleza que a vontade vacila e

                        A força nos deserta.

                       

                        E na minha ficção

                        Branca é a náusea e

                        Negra a fúria

                        Que me perde.

 

                        Da emoção que parte,

                        Humilde

                        Resta a razão e

                        A bruma.

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PARA FAZER UM MAR, de Virgílio de Lemos. Lisboa, Instituto Camões, 2001, 119 págs. O livro pode ser encomendado à Livraria Portugal (tel. (0xx11) 3104-1748).

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Adelto Gonçalves, jornalista, professor titular da Universidade Santa Cecília (Unisanta), é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo.