Saímos
do Chimoio entre milharais e casas agrícolas, ao longo do caminho de ferro que
animou gentes e actividades — e entramos na faixa de território fronteiriça
que nos resta da famosa e lendária Manica.
Conhecemos então novas formas da paisagem. O terreno
alegra-se, ondula, cresce. A atmosfera da montanha, mais leve, mais fresca,
favorece o encanto do cenário. Por vezes julgo que vou aproximar-me de Sintra.
O sistema montanhoso que borda a fronteira, e vem desde Espungabera, em altas
ondas, ganha por aqui recortes de grande suavidade e acidentes de magestosa
imponência. Só alguns negros que se cruzam connosco e bandos de macacos, dão ao
cenário a nota africana. Não a lobrigo, mas iria jurar que a água canta nos
vales.
Macequece,
sede da circunscrição, surge alegremente num quadro húmido de grande beleza. Os
montes dos planos distantes pertencem já à Rodésia.
Estamos
em territórios auríferos — onde há oiro de verdade — pouco, difícil, o que
resta das lendas e das realidades do Monomotapa e de Manica. Não chega para
criar e alimentar uma grande cidade, mas entretém o entusiasmo e a cobiça de
umas dezenas de colonos mineiros—também os que restam das comitivas históricas.
Apesar
da sua graça e frescura, Macequece desola-me. Tem um ar usado, de coisa
parada, a envelhecer. Nem os jardins, nem as flores, nem a beleza capitosa dos
seus arredores, conseguem disfarçar uma espécie de desânimo ou incapacidade. É
uma linda povoação, vista de longe, do meio da serra — mas é medíocre, apagada,
quando a observamos na intimidade das suas ruas, olhando para as linhas
melancólicas e descuidadas dos seus edifícios.
Não
compreendo. Que o oiro que ali se colhe e daí parte não lhe dê vida e movimento,
ainda eu entendo. Nem o oiro é tanto, nem os mineiros são daqueles que
constróem vilas e cidades. Mas que não se tenha imposto ou aliciado os europeus
abastados que vivem e viajam em Moçambique, como estância de repouso e
recuperação, que não se tenha tornado agradável para receber hóspedes, que
desista de ser pousada de turismo e de férias — não compreendo. Não conheço em
toda a colónia, região mais indicada para refúgio — e em condições de
concorrer, pelo menos para uso interno, com certas estâncias da Rodésia que os
portugueses de Moçambique procuram e que só valem Macequece porque, com menos
condições naturais, se apetrecharam, em compensação, com todos os elementos que
faltam em Macequece : o hotel de turismo, económico e confortável; o cinema,
a piscina e as vias de comunicação agradáveis, etc.
Para
quem como eu — mas são raros e não chegam para animar um simples botequim -
dispensa, no mato, o conforto e a piscina, o clube e o cinema, a sala de dança
e o telefone, Macequece e toda a vasta região que envolve o povoado, é um quase
— paraízo. Mas para a maioria é ainda simples tormento passar uma noite, comer
estadiar em Macequece.
Os nossos vizinhos ingleses, que nos comunicaram a maneira
de vestir e calçar e nos habituaram a jogar o bridge e a beber whisky — não têm
sido tão imitados na sua arte de amanhar estes povoados. A poucas milhas de
Macequece construíram eles uma vilazita modelar — como eu queria que se
compuzesse e mostrasse a nossa, muito mais bem situada e favorecida por
melhores condições naturais.
O
nosso magnífico Mr. Salva vai lá frequentemente e diz que o Umtali — uma
pequena Sintra rodesiana — é um paraízo e que Macequece é um horror.
E
como Mr. Salva pensam todos que têm dinheiro para gozar férias — isto é: que
não há paraízo sem quartos com casa de banho, rectângulos de ténis e uns maples
onde se beba whisky confortàvelmente.
Macequece
merecia melhor sorte. E a circunscrição de Manica, de que é cabeça
administrativa, também.
A
história contemporânea desta faixa de território, em que na verdade há retalhos
de paraízo, foi agitada e incerta. Talvez resulte disso o ar de cansada que tem
a povoação.
A
sua formação administrativa data de 1884. Em 1888, quando a Beira apenas rompia
do areal, ainda na sua forma de quase-sanzala, a primeira Companhia de Moçambique
imaginada por Paiva de Andrada, propôs-se reatar o sonho do oiro e principiar
a exploração das minas de Manica. No ano seguinte, de facto, com uma feitoria
instalada no antigo forte de Macequece, iniciaram-se os trabalhos. Mas a
segurança do território, embora as causas não fossem as mesmas, continuava a
ser precária. Era o tempo em que a British South África sonhava estender-se até
ao mar — a época trepidante dos argumentos de Cecil Rhodes.
Todas
as quimeras do oiro em Moçambique, pareciam antecipada e tradicionalmente
condenadas. A polícia da Companhia inglesa invadiu Manica e os trabalhos mineiros
foram suspensos. Principia então uma espécie de guerra: os ingleses ocupavam o
território e tinham-se fortificado nos arredores de Macequece: Caldas Xavier
ataca-os — e persiste em operações de expulsão. Mas antes que as coisas se complicassem
mais haviam conversado os governos e o tratado com a Inglaterra, nossa
amiga e secular aliada, resolvia a contenda, a descontento de Portugal.
Ficava-nos a parte que hoje constitui a circunscrição de Manica, cuja sede se
transferiu para Macequece.
Era
a expoliação — mas era também a paz.
E
nesta paz, que nunca mais se quebraria, pôde a administração aplicar-se finalmente.
Uma colonização mineira e rural fez de Manica uma circunscrição que, por volta
de 1900, era quase florescente. Havia mais de uma centena de explorações
agrícolas e mineiras. A terra dava na verdade algum oiro — e passou a dar
também alguns produtos agrícolas, que o caminho de ferro e a rede de estradas
valorizaram. E foi singrando — em todo o caso, com menos entusiasmo e proveito
do que seria de esperar e do que prometia.
Quem
acordará Manica do seu letargo?
Sou
daqueles que crêem firmemente que acordará um dia — e que depois será apregoada
nas trombetas da fama como um dos mais aliciantes e preciosos refúgios da
colónia de Moçambique. E Macequece usará, com mais propriedade que tantas
outras terras das nossas colónias de Angola e Moçambique, que assim se
designaram, o nome de Sintra africana.
Toda
a circunscrição é bela, com as ondas dos seus montes, os seus revestimentos
florestais, as suas águas correntes e o seu ar lavado e fino. Será um dia também
sedutora — e conhecerá gentes que nela procurarão menos o oiro, que durante
séculos se negou, de que a sua paz alegre e o seu doce encanto.
Voltamos
a Vila Pery e intrometemo-nos por terras do Barué, onde vivem gentes outrora
belicosas — os macombes e tongas—e se recordam factos típicos de uma maneira de
ser muito portuguesa na obra europeia de ocupação da África.
Esta
página do Barué na História de Moçambique,
do mesmo estilo de tantas outras que a nossa História da Ocupação
arquiva, pelo seu relevo, pela nitidez do espírito e da forma — é das que mais
claramente explicam o mistério da expansão que alcançámos no mundo, com tão
pouca gente e tão magros recursos. De facto só o valor individual, a capacidade
de acção de cada um, elevados a grande altura, permitiram que tão poucos
dominassem territórios tão vastos e dispersos. Mais que os exércitos, a força
dos grupos, o peso das quantidades — valores que seria impossível mobilizar em
país de escassos território e população—foi a têmpera de cada indivíduo que
realizou o milagre. A qualidade supriu a quantidade. Dir-se-ia que em cada
cérebro e em cada coração, daqueles que se despediam do reino para a empresa
das Áfricas, ia, adormecida, como o explosivo em granada, a ideia de uma
missão superior eminentemente nacional. Se as circunstâncias, como à espoleta
da granada, provocavam a combustão e expansão da ideia, cada cérebro e cada
coração multiplicavam-se e surgiam, em aplicação, com aptidões e capacidade
imprevistas. As circunstâncias — eram as situações difíceis. São os casos do
Fernandes do Monomotapa, do Fraga do Sul de Angola, de Silva Porto, de Serpa
Pinto — de milhares de outros, uns que a História mal refere, outros que
esqueceu de todo, mas que estiveram na epopeia portuguesa como o sangue está
nas artérias e dos quais tantos reza, mesmo quando não os cita, a História
Trágico-Marítima.
Na
História do Barué brilha, a grande altura, um desses homens — e se não fora
ele, talvez o Barué não fosse hoje território português.
É
Manuel de Sousa — o Gouveia. As coisas actuais do Barué não empolgam o
viajante. A paisagem é monótona. Os imbondeiros exibem os seus aleijões. As
ondas de terreno não têm a graça nem a imponência que enriquecem paisagens. A
terra parece pobre — abandonada. Só a fauna suscita entusiasmos turísticos. O
caminho de ferro que vai à procura de Tete deixou estas paragens e preferiu
lançar-se pelo Zambeze acima, em concorrência com o grande rio — coisa que
ainda não consegui entender nem depois de muito m'a terem explicado. Mas o
Homem do Barué, o velho e histórico sertanejo do século passado, verdadeiro
governador e ocupador de conta própria, guerreiro e administrador, vassalo fiel
e soberano respeitado, herói e mártir, aventureiro e patriota — esse sim, é
empolgante e, só por si, enriquece o quadro em que viveu e se celebrizou.
Quando
em Portugal houver uma indústria do Cinema, com homens de dinheiro e homens de
talento, destutelada do Secretariado de Informação e dos amadores geniais que
a têm sugado antes de nascer — a vida e obra do Gouveia e as suas façanhas,
serão assunto de um filme extraordinário.
Era
no tempo em que os vátuas e landins, invadiam e raziavam todas estas terras,
até ao Zambeze. A soberania portuguesa, que aí se impusera aos próprios
monomotapas, sofria então os piores desaires. As hordas de Muzila surgiam como
vendavais, massacravam populações, cobravam impostos, desmantelavam o comércio
e arruinavam todas as empresas que, de alguma forma, procuravam agarrar-se ao
terreno, convencidas de que aí era Portugal.
Decorriam
os últimos anos da noite negra da nossa ocupação em Moçambique, que atrás
referimos. O Estado soberano praticamente ausente, representava-se, desinteressada
e indirectamente, pelo apego à terra e aos negócios de alguns aventureiros, em
geral de baixo estofo, aos quais umas vezes confiava funções de autoridade e
outras vezes suportava os desmandos.
Desde
o princípio do século (XIX) que, gozando da liberdade que a impotência do
soberano lhes concedia, ganhara fama na Zambézia a família Cruz—uma família
mestiça de potentados, enraizada em funções de connfiança, e que rompera todos
os laços de fidelidade para disfrutar de soberania própria. Esta família, que
conseguiu manter-se praticamente independente, no coração da Zambézia, durante
quase um século, enodoou com as páginas mais vergonhosas a História de
Moçambique. Principiou com o Joaquim Vicente, também conhecido pelo Bereco, celebrizado
como o primeiro traidor da família e chefe do massacre que vitimou o Governador
Vilas Boas Truão e outros oficiais, empenhados em operações contra o
Monomotapa. Morreu na forca — mas deixou como vingador, seu filho, o não menos
famigerado Inhaúde (Joaquim José da Cruz), cuja força e desaforo eram
tais que conseguiu desbaratar e trucidar, a machado, uma expedição punitiva de
300 homens de armas, que contra ele se organizara em 1853, e massacrar toda
uma outra coluna comandada pelo governador de distrito Jerónimo Romero.
Firmou
assim novamente a sua independência.
Sucedeu-lhe
o terceiro Cruz — este, o famoso Bonga, António Vicente, que causaria
às armas portuguesas os mais vergonhosos e humilhantes desaires.
Nem
só de Bongas, porém, rezaria a História.
Por
essa altura, estabeleceu-se como comerciante na Gorongoza, vindo da Índia
Portuguesa, o Manuel de Sousa.
Reconhecendo
e experimentando todas as dificuldades da sua empresa, num território
flagelado por bandidos, constantemente invadido e raziado, à mercê de Vátùas
e de Bongas, o Manuel de Sousa, a quem chamavam o Gouveia,
que os indígenas também conheciam pelo nome expressivo de Unculo (grande), já afamado como
caçador destemido e dotado de qualidades militares espontâneas, resolveu pôr
termo à desordem e ocupar o Barué por sua conta e risco.
Mas
enquanto os Cruzes agiam como traidores contra a Pátria e o governo — o
Gouveia batalhava, governava descricionà-riamente e organizava, como português
de oiro que era. Os seus domínios, conquistados e mantidos por ele, sem auxílio
oficial, sem directivas oficiais, sem ligações, por força das suas inspirações
e desígnio—foram sempre, fidelïssimamente domínios portugueses. O Gouveia, sem
nomeação, e depois com nomeação oficial, sem termos de posse nem vencimentos,
sem regalias nem auxílios, nunca se julgou senão chefe voluntário ao serviço
do Rei de Portugal. E sem nada receber do Rei de Portugal deu-lhe tudo quanto
tinha e, por fim, a própria vida. Foi, enfim, um português de Seiscentos, ou um
sobrevivente de Seiscentos, no século XIX.
Principiou
por pôr o seu prestígio de caçador de elefantes ao serviço dos seus desígnios
militares. Constituiu um exército numeroso e aguerrido (os cipaios do Gouveia).
Com eles guarneceu e ocupou, na serra de Gorongoza, as posições que dominavam
as linhas de penetração dos invasores. E tendo assim afrontado e contido as
gentes desaustinadas de Muzila, resolveu ocupar o Barué e dominá-lo como Senhor
soberano. O seu temperamento de político e militar sobrepõe-se à sua qualidade
de comerciante. E é como político e militar que toma conta do Barué e o
organiza. O político, com o mesmo ânimo conquistador do militar, casa com a
filha do descendente dos Monomotapas—o régulo Xipapata
— e ganha assim o trono. O militar consolida a conquista do político,
organizando um sistema inexpugnável de aringas, contra as quais os
vátuas arremeteriam sem êxito, inexoravelmente batidos.
E
assim conquistou o Barué — não para ele, como os Cruzes em igualdade de
circunstâncias teriam feito, mas para o seu país. E o Barué não seria talvez
hoje uma circunscrição de Portugal, se S. Magestade «o Gouveia», rei do Barué,
genro de um descendente directo do Monomotapa — não fosse um português de
oiro.
Este
indu-português, rei de pretos, nem sequer se descuidou de cultivar no espírito
dos súbditos o respeito e a obediência ao Rei de Portugal.
Não
se limitou porém o Gouveia a conquistar um reino e defender contra os
vátuas uma enorme fatia da Zambézia.
Quando
se realizou a segunda campanha contra o Bonga — desgraçada e humilhante como as
mais —o Gouveia
juntou-se com 600 dos seus cipaios à expedição do comando do Governador
Oliveira Queiroz que acompanhou até Massangano. E foi ele que, cobrindo a
retirada das tropas, já batidas pelo rebelde, salvou a expedição da chacina
com que os Bongas normalmente concluiam as suas vitórias.
Na
terceira expedição, comandada pelo tenente-coronel Guilherme de Portugal e
Vasconcelos, é ainda o Manuel de Sousa que evita maior desastre batendo-se
heroicamente à frente dos seus homens. E colhe, finalmente, o melhor quinhão de
glória na acção que, por fim, ao cabo de noventa anos, liquidaria
os Bongas(1887).
Do
comerciante Manuel de Sousa, o homem que fôra à Zambézia em cata de fortuna
pelo comércio — só restavam o herói e o militar. E o governo já não pode dispensar
o seu auxílio. Ele, por sua vez já não pode dispensar-se de o prestar. Habituara-se
a escrever páginas de História — diferentes daquelas a que a colónia se habituara
- e já não mudaria de ofício, nem outro, na verdade, lhe interessava. A sua
fortuna era agora a sua glória — e queria aumentá-la como todos que cobiçam a
fortuna.
Vemo-lo
assim, depois de batidos os Bongas, colaborar nas campanhas punitivas contra
os rebeldes dos prazos Rupire, Massua e Massingire, na acção contra o régulo
Mutoco. E desta maneira vai até 1890, quando as forças da British South África
invadiram Manica.
Preso
com Paiva de Andrada e João de Resende na aringa do régulo Mutassa, que
auxiliara o invasor, é conduzido à Cidade do Cabo.
Corre
o boato de ter sido morto.
O
Barué, sem o «Gouveia» revolta-se.
Entretanto
o incidente é resolvido pelos governos centrais e Manuel de Sousa regressa.
Restabelece a ordem rápida e energicamente; reúne os seus fieis e bate os
rebeldes em Inhangona. Mas não basta. A revolta tinha alastrado muito. Reúne
mais forças e lança-se sobre Inhachirondo onde esperava liquidá-la de vez.
E
aí, batendo-se como sempre se batera, é ferido gravemente. Em 20 de Janeiro de
1892 morre trespassado por zagaias.
Nem
de outra maneira poderia morrer o «Gouveia», português de oiro e rei do Barué.
O Barué actual, tranquilo, pacífico, dá-me a impressão de território
paciente que
espera — e dorme enquanto espera. O quê? Ninguém o poderia dizer precisamente.
Eu julgo que a escolha do traçado do Caminho de Ferro de Tete, ao longo do
Zambeze, furtou ao Barué todas as possibilidades actuais de encontrar o seu
destino. Seriam os silvos das locomotivas que despertariam o Barué — mas não
passarão tão cedo locomotivas pelo Barué.
Entretanto
a região, cujo valor paisagístico é banal e cuja população perde, dia a dia, o
encanto da etnografia histórica — valoriza-se como paraíso de caça grossa. E
talvez porque os homens a deixam dormitar como valor económico. Os caçadores,
porém, não a procuram com o interesse que ela merece. Gozam-na meia centena de
europeus, a população indígena — e alguns caçadores que passam com outros
destinos e colhem, de passagem, as oportunidades que encontram. O posto de
Macossa, a leste da estrada de Tete, e o posto de Mungari são habitat de
numerosas e aliciantes espécies de caça grossa e perigosa. O leão e o leopardo
aparecem um pouco por toda a parte. Os elefantes frequentam mais ou menos toda
a circunscrição. Nos matos ásperos e rebarbativos de Mungari abundam rinocerontes.
Uma viagem nocturna ao Zambeze, apesar da extensão e das ciladas de um caminho
descuidadamente mantido, faz-se sem contar o tempo. Os faróis do carro vão
descobrindo constantemente, pregados no escuro da noite, olhos luminosos,
silhuetas animais, sombras esquivas, que se fundem na grande sombra ambiente.
Ora é a hiena, de olhar fosforescente, desconfiada mas
gulosa, ora são
os antílopes de olhos claros. Por vezes surpreendem-se duas brazas de
cambiantes vermelhos, em que há luz e sangue: é o leopardo, estasiado,
surpreendido por aquela aparição brusca do dia em plena noite. Os mais afortunados
encontram o leão. Os caçadores apaixonados esperam que nasça o dia e vão em
cata dos rinocerontes.
As
populações indígenas (bargués, manicas, senas, teués, tongas, e tauaras) em
troca de alguma carne que angariam, em andanças trabalhosas de caça, sofrem as
razias dos elefantes e os atentados do leão. Todos os anos o administrador da
circunscrição regista burocràticamente um número elevado de indígenas atacados
e comidos pelo grande Leo. Todos os anos se proclama a necessidade de
conceder aos indígenas meios de defesa — mas as armas nunca chegam e os
atentados não diminuem. Enfim, caçam os pretos—e caçam as feras. É caso para
dizer que homens e bichos se comem uns aos outros.
Os
cipaios da circunscrição dispõem, às vezes, de espingardas Kropatchek, às
vezes, porque, em geral o número de espingardas não excede o terço ou o quarto
do número de cipaios. As armas não são más—mas as munições, velhas e mal
acabadas, nem sempre respondem, nas câmaras, aos choques dos percutores. Por
cada cinco vezes que o atirador puxa o gatilho — há probabilidades de disparar
a espingarda uma vez. Creio que os leões e os elefantes estão ao facto disto.
No Barué, tudo é sonolento — as munições também. E só despertam às vezes.
Um
cipaio do Mungari a quem o chefe do posto mandou matar uma peça de caça, saiu
em busca de bichos com a sua Kropatchek e dois cartuchos. Dos dois cartuchos o
chefe esperava, pelo menos, duas peças — e que fossem grandes para
darem mais
carne. O cipaio voltou sem cartuchos e sem presa. Então, não encontrou?
—Encontrou
só chefe.
—Não
matou? - Matou só chefe.
—Onde
estão?
—Não
estão só chefe.
—
Então?
—Encontrou
Pala-pala. Deu um tiro e matou. Depois deu outro tiro e ela pôs-se a
fugir.
O
chefe nesse dia comeu a sétima galinha da semana.
Almoço
em Vila Gouveia num hotel bordado de buganvílias. A povoação dorme também à
torreira do sol — sem interesse.
No
Mungari topa-se um posto risonho. Só as casas da administração civil e a indispensável
e sórdida loja do monhé.
Entro
no estabelecimento, com o pretexto de comprar fósforos. Ao balcão uma preta,
com o muleque às costas, melancólica, passiva, lenta, depõe sobre a balança
quatro bolas de cera, que traz para vender ao monhé. Assisto à transacção,
simulando interessar-me pelas mercadorias que se exibem na prateleira. As bolas
pesam seis quilos e trezentas gramas. O preço da tabela é de dez escudos por
quilo. O monhé, que faz rapidamente contas de cabeça, guarda as bolas e entrega
à preta quarenta escudos. Esta aceita, como aceitaria trinta ou cincoenta. O
monhé é que sabe. Mas a preta não quer dinheiro; prefere mercadoria. E com as
quatro notas de dez escudos na mão pede pano branco. Mas dois metros de pano
custam oitenta escudos. A preta terá que devolver os quarenta que recebeu pela
cera — e dar mais quarenta. Acha ainda bem, procura em esconderijos dos seus panos
sórdidos, mais notas, outros papeis daqueles que os brancos dizem que são
dinheiro. Entretanto o monhé mede dois metros — com um pau graduado... de
oitenta centímetros...
Resolvi
então intervir. Obriguei o monhé a entregar à preta o justo preço da cera—e,
arbitrariamente, cometi, sem repugnância nem rebates de consciência, o pecado
de o obrigar também a oferecer o pano já medido à sua cliente. De graça — como matabicho.
A preta também achou bem. Não percebi que sentisse a menor satisfação,
levando o dinheiro que valia a cera e, como presente, os panos que desejava.
Talvez
houvesse feito boa justiça — mas saí do estabelecimento do monhé convencido de
que não resolvera problema algum e que a preta, ou outros pretos, pagariam mais
tarde aqueles panos e aquela cera. Ia jurar que, nas minhas costas, o monhé
sorria.