UM "ESQUADRÃO DA MORTE"

Em princípios de Janeiro de 1975, tinham sido am­nistiados e soltos todos os membros da FRA.

Aos militares, removeram-nos para Lisboa ou "senearam-nos". Os civis foram libertados antes do Natal, em 23 e 24 de Dezembro.

Escrevi uma carta contundente a Nuno Cardoso da Silva. Esquecidos, no deserto de Moçâmedes, amigos e cor­religionários abandonavam-nos. Com o Orlando Brito e o José Peiroteo, regressei a Luanda, embora mantendo a clandestinidade.

De passagem por Nova Lisboa, efectuámos uma reu­nião da FRA, na sede do PDCA, já extinto. Pela primeira vez, da boca de um advogado, ouvi uma proposta para se criar um Estado independente em Angola, governado por brancos. O dr. Valente, a quinze dias do Governo de tran­sição, na véspera do acordo de Alvor, portanto a 14 de Ja­neiro, admitia como possível a fantástica implantação de um Estado angolano à imagem da Rodésia.

          Minha mulher pediu uma audiência ao major Ferrei­ra de Macedo que, nesse dia, assumira as funções de alto--comissário interino (Rosa Coutinho fazia as malas, a fim de embarcar para Lisboa), e expôs-lhe a minha situação. Ferreira de Macedo, assoberbado pelas suas obrigações, chamou o coronel Carretas, chefe do Estado-Maior do Exército, a quem encarregou de tratar do assunto. Dele re­cebeu minha mulher a garantia de que a prisão duraria o tempo indispensável para prestar declarações.

No dia 27, às 8.30 da manhã, apresentei-me às auto­ridades militares, na Fortaleza. Fui ouvido até às quatro da tarde e o meu depoimento reduzido a auto. O inquiridor, um coronel, teve a gentileza de me levar a casa no seu car­ro. Em liberdade plena.

Nuno Cardoso da Silva só então julgou oportuno pensar em mim e na minha sorte. Um emissário, o José Peiroteo, aprazou o nosso encontro. Nas -duas cartas que trocáramos, se eu fora desabrido, ele alterava, preconcebi­da mente ou não, os propósitos da F R A, ao justificar o seu afastamento com a razão de que "não queria defender o estatuto da minoria branca, mas conservar a sua identidade de angolano." Precisamente, a F RA empenhava-se por que, consumada a independência, os cidadãos fossem iguais em direitos e deveres, sem distinção de etnias.

Cardoso da Silva e eu, acompanhados pelo Penha Rodrigues e pelo José Peiroteo, discutimos os nossos me­lindres e desentendimentos, Aflorámos, então o problema do coronel Santos e Castro. Ao que parece, Nuno Cardoso da Silva também não compreendia a atitude daquele ofi­cial, lamentando o seu silêncio, que não quebrara nem para acusar a recepção dos quatrocentos contos em cheque, que lhe enviara por - intermédio de Lobo do Amaral. Tencio­nava por isso acrescentou ir à África do Sul esclarecer a questão. Separámo-nos com afirmações mútuas de que a conversa desfizera todos os equí- vocos. Mas, dentro de mim, restou sempre a sensação de que nem todos os dados tinham sido postos na mesa: que se me escondera uma par­te do "jogo"; que se urdira uma intriga entre mim e Gil­berto Santos e Castro; e que Nuno Cardoso da Silva invo­cava a "razão" de se terem modificado as condições políti­cas (e, disse-mo, obedecendo às ordens do seus ex-patrões) para paralisar a FRA.

         Fui triste para casa. Sacrificáramo-nos e arriscáramo--nos por um ideal e, súbito, esvaía-se em fumo uma organização que se opunha à descolonização nos termos em que se verificou com os defeitos previsíveis de milhões de pessoas a serem arrastadas na voragem de egoísmos pes­soais e de ambições internacionais.

De qualquer modo, tive de conformar-me com a des-moralizante derrota e ocupei-me dos meus interesses parti­culares que descurara para melhor servir os da comunidade. Sucessivas exposições e diligências, correndo seca e meça, invocando direitos evidentíssimos e injustiças flagrantíssimas, de nada me valeram. Percorri repartições, solicitei au­diências, repeti, a ouvidos de variáveis condescendência e receptividade, o relato singelo e objectivo do meu afasta­mento da Câmara.

          Mais uma vez, o coronel Carretas veio em meu so­corro, intercedendo junto do governador do Distrito e do presidente da Comissão Administrativa do Município, capi­tão Belchior Metelo. Fui readmitido em 21 de Fevereiro, pagando-se-me os vencimentos em atraso. Em Março, por pressão do sr. Domingos Van Dunen que, ilegalmente -substituirá o capitão Metelo na presidência da Câmara, fui dispensado do serviço, com o peregrino despacho de que, estando o Matadouro já em funcionamento, deixavam de existir motivos para que se me conservasse o lugar. Para além de não ser verdade (o Matadouro entrou a funcionar antes de concluído e apetrechado e os que ali trabalhavam faziam-no sujeitos a um regime insalubre e de clara escravi­dão), as minhas responsabilidades alargavam-se à Estação de Tratamento de Lixo e, acima de tudo, eu pertencia ao quadro há mais de trinta ano. Duzentos componentes da comissão de trabalhadores da Câmara, noventa por cento dos quais negros, se puseram do meu lado e exigiram por escrito a minha reintegração, conhecidas as razões do afas­tamento e comprovadas in loco, as carências do Matadou­ro - Van Dunen, lacaio e arrivista como o declarei publicamente foi demitido e o cargo ocupado, por Men­des de Carvalho, membro cem por cento do MPLA, homem correctíssimo e que me atendeu com a máxima genti­leza, reconhecendo os meus direitos. Consegui ser readmiti­do e passar à situação de reforma.

Toni Rodrigues aparecia-me com regularidade a tra­zer novidades, algumas de pouco ou nenhum crédito. Aper­cebi-me, quando me exibiu o exemplar de um boletim inti­tulado "Massangano", que ele continuava ligado a Nuno Cardoso da Silva e a Gilberto Santos e Castro. Nesse bole­tim, Toni versava temas de economia, de política, de quan­to se tratasse dos movimentos de libertação, como disponi­bilidades e quadros militares. Pelo que sei, fez dois núme­ros do "Massangano", concebido, em especial para infor­mação de potências estrangeiras que talvez não lhe pagas­sem o suficiente para as despesas e, muito menos, para os lucros que tinha em mente. Como anteriormente mencio­nei, "Massangano" era um nome que nos fora proposto, pelo coronel Santos e Castro, para a "operação FRA".

Em tantos momentos fiel servidor dos princípios que norteavam a FRA, Toni Rodrigues acabou por se transfor­mar, mercê de gestos, de palavras, de contradições e de mentiras, num homem de mau carácter, ingrato e desleal. Ligou-se a indivíduos indesejáveis, num grupo que se dis­tinguiu em façanhas que lhe valeram, por parte do MPLA, a classificação de associação de malfeitores.

Desta vez, sim, a classificação de associação de mal­feitores era correcta.

Ao pretenderem envolver o meu nome numa série de actos de banditismo, fizeram luz no meu espírito, sem con­seguirem os seus intentos. A Segurança do MPLA não acre­ditou nas acusações que me faziam, porque, sabendo em­bora que eu era inimigo do Movimento de Agostinho Neto, também conhecia o meu passado sem mácula.

Toni Rodrigues (António Alberto Beltrão Rodrigues, de seu nome completo), Nuno Cardoso da Silva, Carlos Lãs Heras, Joaquim Tomaz, o filho do capitão Seara, Lamas de Oliveira, o Monteiro e mais alguns, formaram um "Esquadrão da Morte", que levou a cabo assaltos para obtenção de dinheiro e de armas.

Assaltaram uma carrinha do Banco Nacional Ultra­marino; o agente cambista da Portugália, no prédio da Fi­delidade Atlântica; a estação da Rádio Oficial; a Fábrica Ultramarina de Tabacos, donde levaram cerca de mil con­tos. Atacaram uma esquadra da PSP, apossando-se de arma­mento de diversos tipos, que constituíam um perfeito arse­nal. Uma extensa lista de "proezas", impossível de comple­tar.

Foi a quadrilha de Toni Rodrigues (a "ovelha ranho­sa" da família, como se lamentava o pai, Araújo Rodri­gues) que, envergando fardas das FAPLA, apresaram uma viatura militar portuguesa, obrigando os seus ocupantes a despirem-se e ferindo um deles a tiro. Em desforço, tropas portuguesas, enganadas pelo ardil, atacaram a delegação do MPLA na Vila Alice, [unto do Hotel Império. Morreram de­zanove homens das FAPLA, entre os quais o seu coman­dante, Soares da Silva. E se o incidente não tomou maiores proporções, isso se deve à intervenção dos pára-quedistas, sob comando do coronel Almendra, que impediu a investi­da ao coração do MPLA, na Rua João de Almeida. A não terem ocorrido os pára-quedistas, talvez que o combate se generalizasse por largos, ruas e avenidas de Luanda. Talvez, até, as tropas do MPLA na cidade fossem aniquiladas.

Os acólitos do Toni foram quase todos presos. Car­doso da Silva evadiu-se para o Brasil, via África do Sul To­ni, com a ajuda dos pára-quedistas, embarcou num avião militar para Lisboa, em trânsito para a Grã-Bretanha; Joa­quim Tomaz e o dr. Eduardo Bacelar tinham já regressado a Portugal.

          O chefe da Segurança do MPLA, Helder Neto, co-nhecendo-me de longa data, estava certo da minha inocên­cia. Pediu-me, cortezmente, uma entrevista e, como o agen­te Xavier, fez-me o relato da "carreira" do grupo do Toni, do qual fazia parte a Milu, mulher do Lamas de Oliveira que se amantizara com o Carlos Lãs Heras. Este, digo-o de passagem, era um bom geólogo, filho de um óptimo cola­borador que eu tivera nas minas da Panasqueira.

Caí das nuvens, como se afirma vulgarmente: parte dos "aventureiros" tinha prestado valiosos serviços à FRA.

Helder Neto estimava-me. Filho de um amigo meu, electricista da LALA (a companhia de luz e água de Luan­da), e irmão de um engenheiro da minha intimidade, convi­vera comigo desde estudante. Simplesmente, há anos que não o via, porque, ao ingressar no MPLA, teve de se refu­giar no estrangeiro, em países socialistas e até no Vietna­me. Por seu turno, o Xavier trabalhara comigo nos Serviços Municipalizados. Ambos, por isso, detectaram a cabala que se urdira contra mim: eu não roubava, não assaltava esquadras de Polícia, nem abria fogo sobre homens indefesos, se. No dia seguinte à conversa que tivéramos (no edifí­cio da Câmara), mostraram-me a colecção das armas apreendidas. Carlos Ávila, comandante da FNLA no Am-briz, estava presente. Fora capturado em Luanda (houve quem asseverasse que traíra a FNLA e se ligara ao MPLA) e prestara declarações que incriminaram o filho do capitão Seara. A partir da prisão do rapaz, não foi difícil à Segu­rança do MPLA desfiar a meada. Carlos Ávila revelou, igualmente, que assistira, no Ambriz, a conversas de Santos e Castro com o Toni e o Carlos Lãs Heras. Descreveu por­menores do comportamento de Santos e Castro para dis­ciplinar e organizar as forças da FNLA. A sua primeira or­dem, logo que assumiu o comando, foi para a construção de uma cancela, no acampamento militar da Frente que não tinha qualquer vedação em redor. Apesar de ser uma passagem simbólica, a verdade é que nenhum soldado se atrevia a sair ou a entrar no recinto sem autorização e sem ser pela cancela.

O que se propalou em Lisboa, acusando-me de ter si­do eu, no depoimento que fiz, o culpado das prisões, não excede o âmbito de uma infame calúnia.

 

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