UMA
MORTALHA, POR BERÇO
Em 10 de Janeiro de 1975, partiu, de
Luanda para Lisboa, a missão que participou, com o Governo português, no Acordo de Alvor.
Presidida por Rosa Coutinho, todos os conselheiros eram da etnia branca: Salvação Barreto, representando os transportes rodoviários; Américo Silva, da Intersindical dos trabalhadores; Cardoso
da Cunha, pelas indústria e pecuária; eng. António Castilho, da Associação Industrial de Angola; Morais Sarmento, para os assuntos económicos; e o eng. Falcão. Foram eles os elementos mais
preponderantes, na Penina, no hotel D. João II.
Creio oportuno transcrever, desde já, as palavras proferidas, em 1 de
Janeiro de 1975, em Adis-Abeba, por Azevedo Júnior,,
membro do comité central e do "bureau" dos
Assuntos Externos da Revolta Activa: "Há o perigo real de uma guerra civil em Angola, caso os
movimentos de libertação não esqueçam as suas
divergências. O recente acordo de
cessar-fogo entre o ministro português dos Negócios Estrangeiros, dr. Mário Soares, e o presidente do MPLA, dr. Agostinho
Neto, não têm uma base sólida. O dr.
Neto não tem o apoio da população de Angola, porque não somos comunistas. E se a guerra se desencadear, ela se
deverá, tão-somente, à
irresponsabilidade das Forças Armadas portuguesas e à cegueira política do
Governo de Lisboa, bem como dos seus lacaios, e à cobardia dos brancos"
A Acordo de Alvor foi uma traição e uma afronta.
Uma traição porque não correspondeu aos interesses nacionais, amputando o
espaço territorial, nem sequer ao futuro dos países que se pretendeu(? ) construir.
Uma afronta, porque o local escolhido para a
sua assinatura, em vez de ser a Penina, era Sagres, o que conspurcaria a
pureza da gesta de um País que,
charruando os mares, ofereceu melhores condições de vida a milhões e milhões de pessoas, por todas as partes do Mundo.
O Acordo de
Alvor foi, também, erro crassíssimo (ou cobardia) do Governo português, ao aceitar, como únicos e legítimos representantes do povo angolano, os três movimentos de libertação. Nenhum em separado, nem os três em conjunto, podiam arrogar-se o direito de
representação do
verdadeiro povo-povo de Angola. Teria de pensar-se nos movimentos e partidos
do pós-"25
de Abril" que, pêra circunstância de não tentarem
impor-se pelas armas, por serem pacifistas, por se negarem à razão da força, nem assim deixavam de defender sectores apreciáveis da população. Teria de
pensar-se na etnia branca e necessariamente ouvi-la a acautelar-lhe a sobrevivência. Ou o "25 de Abril" não quis instaurar a democracia em Portugal?
De antemão, o Acordo de Alvor estava condenado ao fracasso. O
fracasso irreversível de um
contrato cujas cláusulas
ninguém
podia cumprir: nem os movimentos de libertação, nem o
Governo português. Não eram precisas artes de bruxaria para o advinhar.
Antes de Alvor, havia indícios evidentíssimos de que as diferenciações étnicas, ideológicas, até linguísticas, seriam factores próximos de lutas tribais, que de libertação pouco tinham.
O MPLA, a
FNLA, a UNITA não podiam
governar em unidade, quer num regime de transição, quer após declarada a independência. Era impossível — e os acontecimentos subsequentes o comprovaram.
A incapacidade (ou seria leviandade misturada com traição?
) dos entreguistas portugueses fê-los esquecer as ingerências estrangeiras. A persistência de Mobutu, desde 1973: em Mogadíscio, quando conveceu Chipenda a não reingressar nas falanges de Agostinho Neto, porque
lhe convinha destruir o
MPLA; em Kampala,
em Maio de 1974 de mãos dadas com Amin, Presidente do Uganda e da OUA,
pretendendo a intervenção em Angola,
condenando, aliás justamente,
a protecção de Lisboa ao MPLA, mas de olhos
postos em Cabinda, nas suas riquezas em madeira e petróleo.
O Acordo de
Alvor, nem extinguiu, nem atenuou as disputas dos três movimentos de libertação, as suas mútuas acusações, os insultos que trocavam, as agressões que se faziam, destroçando, Angola. Muito mais tarde em Maio de
1975. Chipenda foi à Namíbia, pedir auxílio que terminasse com este estado de coisas. Não pôde, entretanto,
avistar-se com as autoridades da África do Sul.
E Agostinho Neto afirmava que "chegara
a altura de ajustar contas com o imperialismo".
O programa do
MFA, que não chegou a
valer o papel em que o escreveram foi clamorosamente desprezado no Algarve.
Esperávamo-lo, pela atroz observação do que ocorria em Portugal e no Ultramar. Ninguém se entendia e todos pelejavam. Cada um largado à sua sorte, à sua iniciativa,
à sua determinação ou à sua fraqueza.
Quem tivesse mais força ou mais
artimanha, agarraria o melhor "tacho". Bem-comum? Que é isso de bem-comum?
Angola, um país que ainda não nascera,
tinha a mortalha por berço. O Governo
português, solene e sério, cedeu a colónia ao povo.
Mas que povo? Mas a que autoridade? Portugal demitia-se das suas obrigações, como se tomasse um banho lustral. E os que
ficavam por lá? E os que de
lá eram naturais? E os que, como
eu, lá se tinham radicado há quase meio século? A sua
frustração, o fracasso do seu trabalho, a
cova que se lhes cavava aos pés?
A Cimeira de Alvor constituiu o
supremo embuste para Angola. A fraternidade entre as etnias e os grupos étnicos, que a presença portuguesa
cimentava, transmutou-se em ambição, em vingança, em humilhação e ódio. Como se fosse possível com um rabisco feito à mesa de luxuoso hotel, congregar tribos, obrigar,
por exemplo, Quicongos e Umbundos a comungarem no ideal de uma Pátria de que desconhecem o significado. Ã lupa de um pragmatismo desapaixonado, o Acordo de Alvor fez recuar os
angolanos em décadas de civilização. Vaal Neto, instruído e consciente,
desabafou, eufórico, na vitória de um grande comissário, mal chegou a Luanda, vindo do Algarve: "Porreiro! Com a independência, irmãos, já não precisamos de trabalhar!" A Pátria dos angolanos eram os portugueses que lha davam.
Os mentores do "25 de Abril" quiseram ignorá-lo. Negaram muitas das realidades positivas da acção dos portugueses em África.
Arredaram as
causas para se aferrarem à superficialidade
dos efeitos. Construíram sobre
areia, viciaram o baralho, desfalcando-o do realismo e abusando da sincera honestidade
dos parceiros.
Durante séculos, os portugueses ousaram lutar pelo seu
destino. Em Alvor não enfrentaram
os próprios sentimentos. Gatos a
retirar sardinhas das brasas, taparam os ouvidos ao passado e assinaram a rendição do Ultramar. E os que lá estavam? E os que estavam cá?
Foi desprezada
a História e a Razão. Em Alvor, calcaram honra e dignidade.
Entretanto, séculos fora,
oferecera-se uma Pátria aos que a
não tinham. Uma língua aos que se desentendiam nos dialectos. A paz,
aos que se combatiam. A valorização da economia,
sem desarticular ancestralidades.
O Velho
Restelo apodou de loucura a era dos Descobrimentos. Alvor confirmou que foi ele
o único português com os dons de um mágico profeta.
Mas apetece dizer, como Dante, na Divina Comédia: "Por mim, por aqui, se vai parar à cidade das lágrimas e da
dor"
O Governo de
transição tomou posse em 31 de Janeiro
de. 1975.
De início se viu, pela heterogeneidade dos seus membros,
pela sua vaidade, pelo seu orgulho "de destruição", que não dobrariam o
Cabo das Tormentas.
Ministros e
secretários, na arrogância de altos
cargos para que não estavam
preparados; no desconhecimento da actualidade angolana, motivado por anos e
anos de exílio; na petulância do mando irreflectido,
não aceitaram os préstimos da etnia branca, que, lealmente, queria colaborar na obra de um país novo. Astros guindados à pressa para o firmamento político, cada qual "puxava" para o grupo étnico a que pertencia. Nenhuma bússola os pôde guiar para o
caminho da unidade.
Tanto se
desentendiam, que os comunicados oficiais eram lidos em português e repetidos em sete línguas que eles chamavam nacionais, mas que eram,
apenas, dialectos. Uma como que unidade-desunião, que
porfiaram por emendar pêlos mais
ineficazes meios.
Leis, ninguém as cumpria. Era a inversão dos valores, a anarquia em todos os sentidos.
Em princípios de Outubro, o MPLA, embora tivesse expulsado de
Luanda os outros dois movimentos, escassas ilusões alimentava,
porque a sua administração se confinava
a parte dos distritos de Luanda, do Quanza Norte, do Quanza Sul e a bolsas de
Malange e de Henrique Carvalho.
Em 11 de Novembro festejou-se a independência.
Na noite de 10
para 11, com mortos e feridos em funestos tiroteios, terminava euforicamente a
presença portuguesa em Angola.
No céu escurecido, viam-se o rebentar das granadas de
morteiros e as balas tracejantes, em fogo de artifício que nos
enlutava.
Dias antes, tinham sido retiradas as
estátuas existentes em Luanda, excepto
a de homenagem aos Combatentes da Grande Guerra, talvez pêlos seus peso e volume, talvez porque pensem em a
aproveitar, mudando-lhe as legendas. Fosse pelo que fosse, a "Maria da Fonte", como chamavam à estátua, lá ficou. As restantes foram
despedaçadas entre arruaças e gritos da
malta de selvagens, que nos fazia chegar
lágrimas aos olhos. Tive a desfortuna de assistir à depredação dos monumentos a Luís de Camões e a Salvador Correia.
No dia 10, à tarde, o alto-comissário, Leonel Cardoso, mandou arriar a
bandeira nacional, meteu-a debaixo do braço e embarcou numa fragata. Do
navio, dirigiu a sua mensagem de despedida, fria
e protocolarmente. Aparentemente, não o comoveu
sentir que enterrava — maestro de uma peça fúnebre, que os vindouros condenarão — cinco séculos de História.
Agostinho Neto foi
empossado, a 12, no cargo de Presidente da República Popular
de Angola, numa cerimónia realizada no palácio.
Notou-se, de
imediato, uma inesperada modificação dos negros.
Mostravam-se menos arrogantes e ostentosos.
Parecia ser possível
restabelecer a convivência com eles,
que se tinham quebrado barreiras de retraimento e desconfiança, acentuadas nos últimos meses.
Sol de pouca dura, todavia. A hipersensibilidade da população veio ao de cima, devido à escassez de alimentação.
Protestavam e gritavam críticas
ao Governo, já então angolano. "Que nos valeu mudar de
bandeira e sermos independentes,
se agora temos fome? "
— ouvi num supermercado de prateleiras vazias.
E a fome é má conselheira.
Os géneros em pequena quantidade e a
preços fabulosos,
produziram novos focos de desordem e de indisciplina social.
A
"adjudicação" de
Angola ao MPLA era, para nós, ponto assente pelo Governo de Lisboa, que, clara, sistemática e perseverantemente, apostara em retalhar o Ultramar português em
Estados comunistas.
Descolonização, a partir
do "original processo", é vocábulo de vergonha. Debruço-me sobre uma profecia, que alguém fez, em 1946: "Tempos
houve em que os portugueses se dividiam acerca da forma de melhor
servir a Pátria;
talvez se aproximem tempos em que a grande divisão, o inultrapassável abismo, há-de ser entre os que servem a Pátria e os que a negam". Ela aí está, cumprida, na "descolonização
exemplar". Exemplar
de genocídios — nisso o foi. Mais de trezentos mil mortos em Angola, segundo números divulgados pêlos movimentos
de libertação. Mais de trezentos mil mortos, em assassínios ou
pela fuga desordenada
ao martírio.
Catorze anos de guerra em 3
frentes coloniais não custaram
tantas vidas.
Pairando acima
dos culpados, a figura em corpo inteiro dessa caricatura paradoxal de militar
e político, balanceando-se, como boneco
sempre-em-pé, entre o sim
e o não, untuoso e ambíguo, aplaudindo prepotências e sancionando
desmandos contra quem esteve a seu lado e o serviu: Costa Gomes, que foi comandante-chefe das Forças Armadas em Angola. Um general que mudou de pelo
como a osga, requintado no mimetismo do camaleão. Leiam-se os
"Extracto de Entrevistas que Definem a Doutrina Sócio--Político-Militar do
Comandante-Chefe em Angola — general
Francisco da Costa Gomes", edição da CCFAA,
Luanda, 1972. E tirem-se conclusões, comparando
o seu comportamento depois do 25 de Abril.
Deixei para o fim Mário Soares, ilusionista do socialismo, o "bolacha", como o
alcunhavam os alunos do Colégio Moderno. Dói-me criticar
o filho do querido e saudoso João Lopes Soares, o romântico
democrata, o eloquente tribuno, o mestre sabedor e humilde, com um coração onde cabia o Mundo, uma inteligência que iluminou gerações, um calor
humano que repartia por toda a gente. No entanto, Mário Soares terá de ser
julgado, por muito que me doa.
Jactando-se
de ter acabado com os ricos em Portugal (melhor fora que tivesse
acabado com os pobres), Soares sujeitou o seu
partido a cão de caca do PC, sujeitando-se a ser cão das
sujas lucubrações de
Cunhal.
E ei - lo, misto de menino de coro
e de menino-demónio, a
precipitar a tragédia. A
descolonização não pode ser descrita em algumas pinceladas, muito
embora de cores sombrias. Há que lhe
dissecar as causas, enumerar os malefícios, retratar
os auto* rés,
carregar-lhe os contornos sem tibiezas, sem ódio sufocante,
nem a piedade hipócrita dos
falsos cristãos. Para crime tão
monstruoso é indispensável reflectir, colher os testemunhos
das vítimas, averiguar onde começa a desonra dos responsáveis,
onde acabou a desvergonha dos vendilhões.
A descolonização bem merece que se lhe dedique um livro branco, em
que seja exposto e narrado em pormenor o calvário de quantos deixaram,
em África, a vida, os bens, o coração. Um livro branco sobre os vivos e os mortos, em
que os vivos são os mortos e
os mortos são os vivos.
Um livro branco que estabeleça os parâmetros dos territórios onde
poisou a traição.
Sorriam-se de
troça ou a pelo se lhes arrepiava de horror,
quando os opositores do antigo regime repetiam a frase de Sal azar: "Estamos orgulhosamente sós".
Passado o histerismo de uma liberdade que o não é, abertas as
janelas do País para o
Mundo, bradando, em grita de
"vencedores", que descolonizámos, ficámos "vergonhosamente sós".
"A Europa está connosco — vangloria-se Mário Soares: Qual Europa?
Quais os estímulos moral e
material que recebemos dela?
Desfaçatez? Desequilíbrio mental? Megalomania? Ginástica política?
A quem serve a demagogia?
Mário Soares, pregoeiro de um País em leilão, não se deteve no preço. Muito? Pouco? Nada? Como se desfolhasse malmequeres... Se a Europa está connosco!...
As lágrimas não podem ser
gargalhadas. O silêncio, na barra do tribunal popular é pactuar
com os criminosos.
Eu, refugiado, não me calarei.