RESVALADOURO

 

7.1 O vilão com a vara na mão

Por essa altura já o Almirante Vermelho era a criatura mais execrada pêlos portugueses de Angola.

O seu riso era uma mistura de ódios recalcados, íntimos complexos e vaidades grotescas. E ria por tudo e por nada, só para ficar bem no retrato.

Gostava imenso de falar na rádio e apressou, quanto pôde, a instala­ção da televisão em Luanda, sonhando com a presença da sua cara nos televisores dos luandenses.

Medroso como um rafeiro Cabiri, transformou o Palácio do Governo Geral numa caserna Com homens armados a circular em todos os corre­dores, fuzileiros especiais nos terraços do edifício e, quando o seu medo era maior, com um aparatoso dispositivo militar, que cercava toda a zona, desde a Avenida Álvaro Ferreira até ao Largo do Baleizão. No entanto, sempre que os brancos ainda residentes nos bairros suburbanos reclama­vam protecção, respondia que Angola não era para timoratos.

Foi, em Angola, a sinistra figura do vilão com a vara na mão. Logo à chegada a Luanda, como presidente da Junta Governativa. a que os luandenses chamavam «o quinteto de cordas», quando os jornalistas lhe perguntaram quando voltaria o general Silvino Silvério Marques, respon­deu brutalmente:

Já não é governador geral de Angola.

Era um malcriado.

Interrogado, na mesma ocasião, se a independência de Angola estava para breve, declarou que esse era um assunto a decidir por todas as populações, e perguntou, com o seu risinho alvar:

As populações já decidiram?!...

Mentia com cínico descaramento.

E, ao regressar da Cimeira do Alvor, em que o não deixaram parti­cipar, teve a incrível atitude de pretender passar por alto comissário. À pergunta sobre quem seria nomeado para o novo cargo, insinuou ambiguamente:

Por enquanto sou eu o alto comissário.

Procedia como um insuportável fanfarrão.

No entanto, o Gouveia, coerente com as suas tendências políticas, ainda tentava defendê-lo.

Governar Angola, nesta fase da transição, é uma empreitada do inferno dizia ele. O almirante faz o que pode.

Faz asneiras aos montes arrematou o engenheiro Balanta, que andava de um terrível mau humor. Falei há dias com um oficial dos «comandos» que quase chorava de raiva. A tropa foi proibida de entrar nos muceques, porque esse malvado careca tem um plano diabólico. Vai deixar armar o «poder popular» e, entretanto, já mandou tirar as armas aos brancos.

Eu não entrego a minha pistola declarou um camionista da Petrangol.

Não terás outro remédio afirmou o engenheiro. Até sei que, na tua Companhia, já as começaram a recolher.

Mas a minha arma não é da Companhia esclareceu o camio­nista. Foi comprada com o meu dinheiro; e não a entrego. Sabem o que aconteceu ao meu Chefe?

Conta lá convidou o Baldaque, que também estava presente.

Meteu a pistola no carro, para a entregar na Petrangol. Ali perto do campo da Académica, uma patrulha da FNLA mandou-o parar, revis­tou-lhe o carro, encontrou a arma e levou-o para o seu quartel. De nada lhe valeram as explicações. Ficaram-lhe com a pistola, bateram-lhe até se fartarem, roubaram-lhe todo o dinheiro que tinha consigo e ainda o tiveram preso durante dois dias, sem comer nem beber. Eu não entrego a minha arma.

Se calhar, era o que todos devíamos fazer... insinuou o Balda­que, muito sério.

Para quê? interrogou o Sousa Quevedo.

Para nos defendermos quando for preciso declarou rudemente o interrogado. Isto começa a virar para o torto. Sabem vocês o que me disse o Neves e Sousa, quando ontem o encontrei ali no Largo da Mutamba?

Esse não costuma falar de política lembrei eu do meu canto.

Nem falou. Disse-me apenas que já estava a ver os brancos mais curtos...

É o falar adequado à imaginação visual dum pintor explicou o Gouveia.

Será o que vocês quiserem aceitou o Baldaque. Mas os artistas têm sempre algo de adivinhos. E o riso perene desse almirante de navios naufragados parece-me de  mau agouro. Seria bom  que nos preparássemos para o pior...

Desejas para Angola um banho de sangue? desafiou o Gouveia em tom sarcástico.

Desejo que a independência de Angola seja para todos os que a ajudaram a construir.

É exactamente o que o almirante promete lembrei eu com alguma timidez.

Não acredito numa única palavra desse malandro interveio rudemente o camionista.

E eu já não acredito em nada desabafou o Baldaque. Esta­mos a cair numa cilada em que deliberadamente se prepara a nossa desgraça. Disseram-nos que os guerrilheiros só poderiam entrar sem armas: e trouxeram quantas armas quiseram. Prometeram que nada se faria sem ouvir também a população branca: e ainda nos não consultaram para coisa nenhuma. Convidaram toda a gente a agrupar-se em partidos políticos; mas dizem agora que só os movimentos de libertação é que representam legitimamente as gentes de Angola. Vamos escorregando de engano em engano. Se não acordamos a tempo, estamos perdidos.

Tudo isto é uma grande chatice sintetizou desconsoladamente o engenheiro Balanta.

Vocês falam como autênticos reaccionários! disparou o Gou­veia, muito firme nas suas convicções democráticas e sempre agarrado à esperança de uma Angola independente e próspera.

Mas o engenheiro reagiu à bruta:

Reaccionária será a tua avó! clamou. Eu estou-me nas tintas para a política. Apenas pretendo continuar a viver e a trabalhar na terra onde nasci. E começo a ver que não vai ser fácil. Esse maldito careca, com o seu Quinteto de Cordas, veio para aqui na função de traidor.

O que aí vai! protestou o Gouveia.

O que aí vem! arrematou o engenheiro. o que eu gostava era de saber o que aí vem para todos nós, brancos, pretos e mestiços, porque ou eu me engano muito ou o «Quinteto de Cordas», que nos man­daram de Lisboa, nem representa Portugal nem liga pevide aos verdadeiros interesses das populações de Angola. Vieram para aqui brincar ao comu­nismo e é tudo.

Tens a certeza? ironizou o Gouveia.

Não há certezas neste mundo interveio gravemente o Balda­que Mas o engenheiro é bem capaz de ter razão. Pelo que estou a ver,

já não são os portugueses nem os angolanos quem manda no destino desta bela terra.

E é pena...

Nessa mesma tarde, contei a conversa à Mariluz e pedi-lhe que me desse também a sua opinião. Ela permaneceu de cabeça baixa, tardando em responder. E quando, finalmente, levantou os olhos para mim, reparei que os tinha rasos de lágrimas...

Que tens? perguntei carinhosamente.

Meu pai quer que eu e a mãe embarquemos imediatamente para a Metrópole respondeu, rompendo num choro convulso.

Vamos falar com ele sugeri.

Ela concordou. Mas o sr. Calabriz custou a convencer.

Você julga que me não custa ficar sozinho? arremeteu desa­bridamente. Sinto apenas que devo proteger minha mulher e minha filha contra os perigos a que se arriscam nesta terra. Nem quero pensar no que lhes pode acontecer... Não compreende?

Compreendo perfeitamente. Mas, por enquanto, ainda cá temos a tropa portuguesa.

A tropa portuguesa?! Soldados que têm assistido às maiores infâmias sem mexer um dedo?! Isso já nem é tropa nem é nada. É uma vergonha para todos nós! Devíamos pô-los fora daqui a pontapés no rabo!

Calma! aconselhei pacientemente. Eu estou atento ao que se passa. E, como sabe, estou num bom ponto de observação. Logo que pressinta um perigo real e próximo, não deixarei de o avisar e serei eu próprio a tratar do embarque da sua família com toda a rapidez.

Você é um bom moço, mas tem um defeito: é muito ingénuo. Ainda acredita na canalha que já nos vendeu e talvez já tenha recebido o preço.

É preciso acreditar em alguém...

E, forçando a minha própria esperança, já bastante abalada, incons­cientemente movido pelo desejo de conservar pelo maior tempo possível a adorável presença da Mariluz, expliquei que os soldados portugueses, na sua esmagadora maioria, continuavam a ser valentes e resolutos, que só não intervinham quando estavam absolutamente proibidos de o fazer e que até o Rosa Coutinho já por duas vezes tinha levantado essa proibição.

O preocupado homem ainda argumentou que as coisas iam de mal a pior, que o Almirante Vermelho era um lacrau dos grandes, que ninguém podia confiar na malandragem que era agora Governo em Lisboa, que era do seu dever pôr a família a salvo, que estas coisas nunca se deviam deixar para a confusão da última hora, etc., etc. Mas acabou por ceder.

*

Na segunda-feira da semana seguinte, o engenheiro Balanta foi preso. Simultaneamente, o almirante Rosa Coutinho emitia ordens de prisão contra diversos brancos, entre os quais se contava o director do meu jornal, que logrou escapar para a África do Sul.

Muito preocupado com tudo isto, pedi audiência a um engenheiro português, membro do Governo de Transição, que prometeu receber-me imediatamente.

Fui encontrar os corredores do Palácio cheios de soldados, prin­cipalmente fuzileiros especiais, que circulavam com as pistolas-metraIhadoras na posição de tiro instintivo. Não vi nenhum dos antigos contí­nuos, alguns com dezenas de anos de serviço naquela casa. Tudo estava mudado no velho Palácio dos governadores gerais, agora ampliado e modernizado segundo planos elaborados no tempo do governador Silva Carvalho.

Sob os olhos vigilantes dum sargento da Marinha, pedi a um dos novos funcionários que me anunciasse. E estava a acender um cigarro, para enganar o tempo, quando o governante surgiu à porta do gabinete, convidando-me a entrar.

Desculpe, senhor engenheiro balbuciei, apagando rapidamente o cigarro no cinzeiro mais próximo. Julguei que a sua secretária me viria avisar...

Ainda não tenho secretária declarou ele com toda a natura­lidade.

Mas, então... estranhei, sem esconder a surpresa, lembrado de que mesmo ao lado trabalhava a secretária do dr. António de Almeida.

Isto agora é assim... disse o engenheiro sem mais explicações. Que manda?

Nada. Peço, e com a maior humildade. O engenheiro Balanta (não sei se conhece...) foi preso esta noite. Sou muito amigo dele. Pode informar-me do que se passa?

Também não sei.

O senhor almirante chama-o veio dizer o sargento da Marinha, abrindo a porta sem bater.

Já vou respondeu o engenheiro. E, depois de o intrometido (o mesmo sargento que eu vira no corredor) ter fechado novamente a porta, reafirmou que, infelizmente, não estava em condições de me ser agradá­vel, como tanto desejava.

Eu só agora sei da prisão desse engenheiro, que conheço muito bem. Fui grande amigo do pai dele.

Tem andado ultimamente muito apreensivo, por causa da sua fazenda de café nos Dembos informei. Mas nunca se meteu na política. Não compreendo porque o prenderam.

Estamos numa fase de grande confusão... alegou vagamente o governante. E, se me dá licença, tenho de ir ao almirante. Ele não gosta de esperar; e hoje está insuportável.

Saí imediatamente. E, já no Largo, onde a estátua de Salvador Correia aguardava o camartelo dos demolidores, lembrei-lhe daquele sargento intrometido e veio-me a tentação de pensar que o Almirante Vermelho fora informado da minha presença e propositadamente interrom­pera a audiência dum redactor do jornal, cujo director tinha ordem de prisão. Apenas vaidade minha? Talvez não...

7.2 Mais incêndios... Mais tiros...

Foi por esses dias que incendiaram várias casas de brancos no Muceque Catambor. E houve quem afirmasse ter visto um alferes, dos recentemente chegados de Lisboa, a dirigir a estúpida e nefanda proeza. Já completamente descrente do novo Governo da sua Pátria, os brancos começavam também a perder aquela fugaz esperança que nascera das primeiras palavras e atitudes do Governo de Transição.

Repentinamente, na noite de 24 de Março de 1975, rebentou de novo o tiroteio na cidade, agora entre o MPLA e a FNLA, que se degladiavam nos subúrbios luandenses, com fogo de armas ligeiras, intercalado pelo ribombar das granadas de mão, morteiros e foguetões. Mais uma vez, a população de Luanda, sobretudo a sacrificada gente dos muceques (brancos já lá os não havia...), era roubada ao seu merecido repouso, após um dia de trabalho.

Nos dias 25 e 26, já os tiros alastravam para as zonas mais centrais da cidade e em pleno dia. Pelas 11 horas de 26, eu próprio estive bem perto do tiroteio, quando ia tratar de um assunto de impostos, na Repar­tição de Finanças da Avenida dos Combatentes. Encontrei a porta fechada, como todas as das lojas mais próximas.

Há greve geral? perguntei ao João Carmelino, que da porta (também fechada) da sua loja de pronto-a-vestir, olhava apreensivamente para o fundo da bela artéria.

Não se trata de greve respondeu ele. Trata-se de acautelar o físico. Aí para diante, no muceque Rangel e lá para os eucaliptos, as FAPLAS engalfinharam-se outra vez com as tropas do Holden Roberto. Parece que já há mortos em barda que, de uma parte e de outra, enterram em valas abertas por escavadoras, sem mesmo averiguar se irão alguns vivos na lingada... Um horror!...

Como a confirmar as palavras do comerciante, crepitaram tiros de armas automáticas, logo seguidos dos estouros secos e trágicos dos morteiros. E uma grande multidão, vinda dos lados do Rangel, invadia a Avenida, correndo desvairadamente, na ânsia de atingir a zona central da cidade, onde as patrulhas do exército português davam ainda uma apa­rência de segurança.

Vamos embora daqui! aconselhou o Carmelino, subindo para o seu automóvel.

Mas eu fiquei ainda alguns minutos, observando com profunda cons­ternação aquela pobre gente. Mulheres de rosto acizentado pelo medo, crianças que já não sabiam do paradeiro dos pais, doentes e estropiados, velhos de olhos tristes, a pedir o último esforço às pernas trôpegas tudo fugia como no pavor dum terramoto.

Reparei especialmente numa preta de meia idade, que chorava desa-baladamente, com um filho ao colo (também ele a chorar) e mais três agarrados às suas saias em farrapos. E não pude resistir a tamanha des­graça. Disse-lhe que entrasse para o meu carro, com as crianças, e per­guntei-lhe para onde queria ir.

Eu queria ir no comboio, patrão respondeu ela, quando já o menino de colo terminara o seu choro, repentinamente interessado nas minhas manobras ao volante.

Assim, sem nada?!

Não teve tempo explicou ela. Os tiros eram muitos e os ban­didos andavam a assaltar as cubatas.

Para onde vai agora?

Talvez vai no Dondo. Eu tem lá irmãos...

E dinheiro para o comboio?

Só tem cinquenta angolares, da palanca que o meu homem me deu no último sábado. Talvez chega para a 3." classe. Os filhos não paga. O mais velho ainda não fez 5 anos.

Vai sem o seu marido?

Há três dias que não sei dele. Talvez já morreu de morte matada. Agora, no muceque, só há confusão e a gente malvada que rouba tudo e mata logo, sem avisar. Diz já, patrão, porque é que os portugueses estão a ir embora?

Angola quer ser independente e o Governo de Lisboa já concordou.

Independência! fez a preta, no jeito de cuspir a palavra: Eram os turras quem queria a independência. E agora dão tiros uns nos outros...

Já a descer a Rua de Camões, travei atrás dum Unimog da tropa, estacionado junto do Hotel Trópico, e disse ao alferes português que havia tiros ao fundo da Avenida dos Combatentes.

Já sei respondeu ele , mas estamos proibidos de intervir.

Proibidos por quem?

Por quem pode.

O almirante?...

Ele nem negou nem confirmou: limitou-se a sorrir, talvez para ocul­tar a sua íntima frustração de soldado reduzido à reles condição de mero espectador de uma enorme desgraça.

Na estação do Caminho de Ferro, dei 500 escudos àquela mãe de quatro filhos pequeninos e arranquei logo, para fugir aos seus agradecimentos, abundantemente molhados de lágrimas. O meu bilhete de identidade ainda é de cidadão português. E uma nota de 500 escudos não é nada para a dívida que Portugal contraiu com aquela pobre mulher.

Na redacção do meu jornal já sabiam da luta na zona de S. Paulo. Tinha partido para lá o Pedro Gilvaz, que se considerava vacinado contra as balas perdidas e teimava em ir tirar uns bonecos.

Viste alguma coisa? perguntou-me o Baldaque, quando lhe falei no tiroteio.

Ouvi os tiros a poucas dezenas de metros e assisti à debandada dos pretos do Rangel.

Quem está a vencer?

Não sei.

Podes escrever uma croniqueta sobre o assunto?

Claro que posso. O que não vi é fácil de imaginar.

Isto está a tornar-se muito feio opinou o Baldaque. A entrega de Angola aos guerrilheiros do terrorismo é um erro tremendo. Começo a pensar se não terei também de ir embora...

Para onde? perguntei com sinceridade.

Para a África do Sul, para o Brasil, até mesmo para a Metrópole. Para qualquer parte, desde que seja para longe deste carnaval trágico. Sou branco e, nesta terra, o tempo dos brancos acabou.

E terá começado o tempo dos  angolanos pretos? perguntei com cepticismo. Ainda agora levei à estação do Bungo uma preta com quatro filhos pequeninos, que já não sabe se o marido é morto ou vivo e foge do inferno dos muceques. Um horror!

Esse Rosa Coutinho merecia ser atirado para o meio duma alca­teia de mabecos. Dizem que vai embora amanhã. E não deixará de sorrir à partida... Tu já sabes alguma coisa do engenheiro Balanta?

Nada de seguro. Mas parece que sempre conseguiu voar para Joanesburgo.

Quando chegará a nossa vez? insinuou ele, profundamente desiludido.

7.3 Interrogatório no Palácio

Durante quase um mês nada mais soube do engenheiro Balanta. Até que um dia, já muito perto da meia noite, apareceu de surpresa em minha casa.

Fugi da cadeia e tenho de sair urgentemente de Angola disse, após o abraço do reencontro. Podes esconder-me aqui por um ou dois dias?

Claro que posso.

Talvez seja arriscado para ti...

E depois?

Bem... era meu dever avisar-te, mas já esperava essa reacção. Não fales nisto a ninguém. Mesmo depois de eu sair, é melhor que nin­guém saiba que eu fugi da cadeia para aqui. É melhor, principalmente para ti.

Está bem concordei eu. Mas senta-te. Vens com ar esfo­meado, homem. Meu pai e a tia Isaura foram a uma festa de anos. Mas, por mistérios inescrutáveis, tenho aí um pedaço de carne assada. E também há pão relativamente fresco, o uísque da praxe e algumas sodas geladas. Abanca, que vamos jantar os dois.

Deixei-o beber dois uísques seguidos e devorar três grossas fatias de carne assada com uma rapidez que não enganava ninguém. E, então, já com a fome acalmada, foi ele que espontaneamente declarou:

Acabo de viver vinte e sete dias de inferno...

Conta! convidei, enchendo-lhe novamente o copo e pondo-lhe no prato mais carne assada.

Ainda bem que mandei a família para a Metrópole. Se tivesse a mulher e os filhos em Angola, nem me atrevia a fugir... Sabes que me foram buscar a casa às 11 horas da noite?

Não sei nada. Ainda fiz uma diligência no Palácio, mas foram passos perdidos.

Pois foi mesmo para o Palácio que me levaram nessa noite de há vinte e sete dias. Entrámos numa sala onde estava o Almirante Vermelho a dizer coisas a um cómico grupo de oficiais do exército e da marinha, uns de pé, outros recostados nas poltronas e até alguns sentados no chão. Um quadro de garotos de escola primária, na ausência do professor. Só com a diferença que o professor estava lá e era dos mais gozões, exi­bindo aquele riso alvar que todos lhe conhecemos. O almirante falou, falou, sem nunca olhar para mim, que fiquei à porta entre os meus dois guardas, aparentemente ávidos de carregar no gatilho, e desandou para o seu gabinete, seguido pelos guarda-costas. O meu primeiro inter­rogatório foi ali mesmo, sempre sob a ameaça das armas e a servir de pião das nicas de toda aquela reinadia assembleia, constituída por cerca de vinte militares eminentemente progressistas, desses que o general Costa Gomes (raios o partam!) nos mandou de presente.

«—Qual é o seu posto no Partido da Democracia Cristã de Angola começou por me perguntar um senhor comandante da Marinha de Guerra, com uma careca luzidia a prolongar-lhe o focinho de raposa matreira.

«—Não pertenço a nenhum partido político respondi.

«— Está a mentir!

«— Nunca fui mentiroso.

«—Ai, que menino tão bem comportado! chasqueou um alferes, com olhos ramelosos e barbicha de chibo no cio.

«—A sua fazenda dos Dembos tem dado apoio logístico aos guerri­lheiros de Holden Roberto acusou o Comandante.

«—A minha fazenda está ocupada pêlos turras, o que é muito diferente.

«—Já não há turras! repreendeu ele.

«—Ai, é verdade... emendei, sem poder evitar um riso de troça.

«—Este gajo está a rir-se de nós! acusou um alferes de camisa aberta até ao umbigo.

«—Rira bien qui rira lê dernier disse o comandante, muito vai­doso do seu francês. Nós temos processos de fazer cantar este caná­rio... Vamos lá a saber: quais eram exactamente as suas relações com o dr. Ferrenha?

«—Nenhumas. Nem sequer o conheço pessoalmente.

«—Ai, que santa ignorância! ganiu de novo o alferes das pia­dinhas.

«—Mas conhece os oficiais do Centro de Instrução dos Comandos...

«—Tenho entre eles alguns bons amigos.

«—Também por lá há alguns saudosistas da guerra colonial. Sabe quais são?

«—Se soubesse, não lho dizia! — gritei, já enfurecido com a rópia do marujo de água doce. — Deixem de me aborrecer com perguntas de esquadra da polícia. E, se eu próprio também posso perguntar alguma coisa, agora que há liberdade para todos, gostaria que me dissessem porque é que estou preso...

«—Qual é a sua opinião sobre a FUÁ? — disparou um tipo de óculos, ignorando a minha pergunta.

«—Se o senhor é capelão, fique sabendo que não estou preparado para mie confessar.

«—E, se o menino começa a refilar, vai daqui para os muceques e o Poder Popular lhe tratará da saúde... — rosnou um dos militares mais cabeludos.

«Com um gesto de apaziguamento, o comandante ordenou então que me entregassem aos «rapazes» da sala do lado. E encontrei-me entre um novo grupo de militares, quase todos com o galão de alferes, ainda mais progressistas e cabeludos do que os primeiros.

«—Ouça lá, amigo! — começou um deles, todo falinhas mansas — Gosta ou não gosta de Angola?

«—Nasci cá, de pais que também cá nasceram.

«—Então, porque anda metido com essa canalha do PDCA(1), que é a nata dos exploradores desta terra?

«—Já disse aos vossos camaradas ali ao lado que não pertenço a nenhum partido político. Só quero que me deixem viver e trabalhar na terra onde nasci.

«—Certo! — concordou o cabeludo. — Mas, nesse caso, deve cola­borar na construção de uma Angola livre e independente. E há por aí uns malucos ainda convencidos de que podem impedir que isso aconteça. O amigo sabe quem são... Venham de lá os nomes!

«—Não sou delator.

«—Bem... vamos lá com calma...

«E, revezando-se na tarefa de me fritar o juízo, sempre no mesmo tom, com um ou outro rompante de fúria, assim me interrogaram durante quatro horas, mantendo-me de pé e sob a ameaça das armas.

«Mas acabaram por desanimar.

«—É irrecuperável! concluiu o maioral do grupo, quando o co­mandante careca veio da outra sala perguntar «como iam as coisas».

«— Levem-no para a Casa da Reclusão sentenciou o Comandante.

«Fomos, eu com os meus dois guardas, mais dois militares armados de G3. Junto da Estação Ferroviária do Bungo, os quatro militares sairam do jipe, mandando-me esperar, e afastaram-se uns cinquenta metros. Reparei que nem tinham deixado à mão uma carabina G3 e compreendi a intenção de ma arrastarem a um acto de desespero, para resolver rapida­mente o meu problema com uma bala certeira. Mas não caí na emboscada. Saí também do jipe, levantei os braços ao ar e gritei-lhes o desafio:

«—Se querem  matar-me,  não  percam mais tempo!

«—Ninguém o quer matar, seu caguinchas! declarou o chefe da escolta com a mais descarada insolência.

«Acabei por dar ©nitrada na Casa de Reclusão, onde fiquei encarce­rado durante 56 horas, sem comer nem beber.

«Levaram-me depois para a antiga prisão da DGS, em S. Paulo, onde me fecharam numa cela fétida e só dois dias mais tarde me deram uma cama de campanha e uma vassoura para varrer um pouco de toda aquela porcaria. Ali encontrei o capitão Seara, o mesmo que defendeu a Casa da Reclusão em 4 de Fevereiro de 1961, do assalto dos homens do MPLA, e que também era acusado de se opor à descolonização. Mas, quando tentávamos conversar, separaram-nos brutalmente -e nunca mais nos vimos.

«Recomeçaram os interrogatórios, que se prolongaram, de dia e de noite, durante cerca de três semanas. Sempre a mesma lenga-lenga. No que mais insistiam era em informações sobre a FUÁ, sobre elementos do PDCA, sobre oficiais dos Comandos, sobre pilotos da Força Aérea Por­tuguesa e até sobre alguns membros do Governo de Transição.

«Teimaram, voltaram a teimar, mas deram sempre com o nariz na porta. Durante um dos últimos interrogatórios, um capitão com cara de cavalo ainda fez menção de me agredir. Mas fitei-o com tais olhos, que logo desistiu do intento. Lá cobardes são elas, podes ter a certeza!

«Não sei se sabes que a antiga prisão da DGS serve agora também de quartel do COTI.1, que é uma das unidades encarregadas de manter a ordem em Luanda, ou de fingir que a mantém. Eram da Cavalaria e pare­ceu-me que continuam a ser bons soldados, alguns deles enraivecidos com o Almirante Vermelho, que só está interessado em que lhe defendam o seu covil. Logrei conquistar a simpatia de alguns furriéis e de um alferes. E só assim consegui fugir.

«E aí tens, em breve resumo, o que me aconteceu nestes últimos vinte e sete dias.

E agora? perguntei eu, que propositadamente o não interrom­pera uma só vez, durante a sua emocionante narrativa.

Agora, vou sair de Angola o mais depressa possível. E tu, se queres um conselho, larga também!

Eu sou angolano.

Também eu. Mas já não existe segurança para nenhum de nós, nesta desgraçada terra, onde ninguém se entende.

Indiquei-lhe o quarto onde poderia dormir e, nos dias seguintes não descansei enquanto não arranjei um barco de pesca que o levasse até Moçâmedes, onde tinha bons amigos.

7.4 O "Quinteto» regressa a Lisboa

O Baldaque estava bem informado. Com efeito, no dia seguinte, pouco antes da meia noite, o «quinteto de cordas» tomou o avião de regresso a Lisboa. Sem aviso prévio. Sem mesmo aguardar que chegasse o alto comissário, general Silvino Cardoso.

A Junta Governativa, que tanto mal fez a Angola, esgueirou-se medro­samente, nas sombras da noite, através dum aparatoso dispositivo militar, que se estendia desde o Palácio do Governo até à escada do Boeing e até metralhadoras pesadas incluía.

Já na sala dos VlPs, com a aerogare rigorosamente interdita a civis, aqueles cinco homens, quase todos execrados pela maior parte dos bran­cos e pretos de Angola, sentiram-se repentinamente alegres e descon­traídos. Todos à paisana e em mangas de camisa, riam e chalaceavam como excursionistas no fim dum agradável passeio.

Os jornalistas que souberam a tempo daquela partida (entre eles, eu) acabaram por conseguir acesso ao aeroporto, depois de prévia auto­rização do Almirante Vermelho que, no entanto, não quis responder às nossas perguntas.

Têm aí quem exerceu até agoira as funções de Secretário da Comunicação Social disse. Falem com ele, se quiserem!

E voltou para junto do seu bando, rompendo logo em grandes garga­lhadas, talvez no desfecho de qualquer interrompida anedota.

O comandante Correia Jesuíno também se mostrava eufórico. Pare­cia um estudante, ao acabar de receber a sua carta de curso. Tinha aplicado pesadas multas a jornais e revistas, por dizerem verdades que lhe desagradavam. Colaborara activamente com os inconscientes de Lisboa nos insultos e calúnias contra os portugueses brancos do Ultramar Por­tuguês. A entrega de Angola aos russos estava bem encaminhada. Era um herói! Sofrera alguns sustos que ele próprio classificava de «bestiais». Mas, agora, já estava a salvo dos indecentes colonialistas. Iniciara uma bela carreira e esperava a recompensa do general Vasco Gonçalves. Por isso nos atendeu com um largo sorriso de triunfador:

Digam!

Houve aqueles momentos de hesitação que sempre acontecem nestas ocasiões, com olhares de uns para os outros, em mudo convite ao início das perguntas. E acabei eu por me decidir:

O senhor comandante foi, durante estes meses, o responsável pêlos meios de comunicação, nesta terra agora em vésperas da indepen­dência. Que pensa da imprensa de Angola?

Penso que a imprensa de Angola é uma boa merda respondeu ele, de repente.

E, notando que eu regulava rapidamente o meu gravador, acrescen­tou com total inconsciência e alvar descaramento:

Pode gravar à sua vontade. Eu repito: penso que a imprensa de Angola é uma boa merda.

Já todos sabia-mos que ele era burro e mau coisas que, juntas, são demais. Mas aquela resposta, na hora da partida de uma terra que tinha todo o direito de o correr a pontapés, excedia quanto podíamos imaginar.

Fitámo-lo com o espanto de quem depara com um mabeco a falar e desistimos de mais perguntas. Por acordo tácito, sem mais uma palavra, nem para ele nem para o resto do bando, saímos dali.

No dia seguinte, quando, na redacção do jornal, se estranhava o facto de o «Quinteto de Cordas» ter partido antes da chegada do alto comissário, o Baldaque deu uma explicação singular:

Tinham mesmo de partir sem mais demoras disse , não há figueiras em Angola...

Toda a imprensa reproduziu a resposta malcheirosa do ex-secretário da Comunicação Social. E a revista Notícia, que só à sua conta pagara mais de uma centena de contos de multas aplicadas pelo progressista da merda, revelava que o insultador dos jornalistas angolanos tinha levado a esposa à Conferência do Alvor, como representante da imprensa de Angola.

Foi daí em diante que os portugueses de Luanda começaram a dizer que o brilhante tocador de rabecão do quinteto de cordas era «Je» por parte da mãe e «suíno» por parte do pai...

            (1) Partido da Democracia Cristã de Angola.

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