OS LESA-PÁTRIA

Com as nacionalizações em Angola, diluíram-se, para os refugiados, os últimos bens e as derradeiras esperanças. Casas, lojas, indústrias, mobiliário, viaturas, roupas, o MPLA roubam. Uma lei do Governo de Luanda determinou que entrariam na posse do Estado todos os haveres dos que tivessem abandonado o território por um período superior a 45 dias.

Muitos pediram salvos-condutos para regressarem. Pa­radoxalmente o MPLA recusou. Os 45 dias passaram e o Movimento de Agostinho Neto apossou-se de tudo o que lá deixámos.

Em Portugal, fomos hostilizados e vexados. Fomos recebidos como indesejáveis, atirando-se-nos com subsídios de esmola. Abandonaram à sua desdita raparigas e rapazes, menores de 18 anos, sem pais, que vieram sozinhos e aos quais o Governo de Lisboa não concedeu qualquer auxílio pecuniário.

Que querem os refugiados?

Querem integrar-se na nova Sociedade portuguesa. Querem dispor de postos de trabalho. Querem ser iguais aos que sempre viveram na Metrópole, ter as mesmas opor­tunidades de sobrevivência.

Vítimas de uma situação que não criaram, antes ten­taram evitar, acusam-nos de marginais, quando entre eles há técnicos capazes que poderiam preencher vagas abertas pêlos que viraram as costas ao "25 de Abril" e ao seu "paradisíaco" processo revolucionário em curso para um socialismo de miséria.

Bateram a todas as portas que se lhes fecharam. Nas das fábricas, dos escritórios, de qualquer ramo de acti­vidade, as comissões de trabalhadores vedaram-lhes os aces­sos; na do Ministério da Cooperação, que de cooperação só teve o nome; na do Presidente da República Costa Gomes, um dos grandes culpados da "original" descolonização, que não mexeu um músculo da face esfíngica, sequer para um monossílabo de resposta; nas da Secretaria de Estado dos Retornados, do IARN, do Conselho da Revolução...

Do Conselho da Revolução!...Quanto a mim, um dos maiores males do País, preocupado com vaidades, be­nefícios e honras, indiferentes às dificuldades do povo. Em reuniões tão prolongadas que mantém, jamais se ocupou dos problemas dos refugiados. Os homens que simbolizam a ideia da "revolução dos cravos", carregam o fardo de uma democracia, proposta como promessa e depois impos­ta pela opressão e pela violência. Uma democracia de ódios e raivas, de dúvidas e angústias, em que se perseguem e prendem pessoas honestas e se deixam em liberdade os fa­cínoras, os fanáticos e os corruptos. Uma democracia que não constrói, mas destrói o País, em querelas partidárias, no abandono de uma economia exangue. Uma democracia que alijou territórios imensos, sem ouvir aqueles que os ha­bitavam. Uma democracia que se escuda no povo, para fa­zer dele a vítima principal. Volvidos mais de dois anos, quais as regalias conquistadas pelos portugueses, salvo a "mirífica" liberdade de ver paralizada a produção, de pagar mais caro os alimentos, o vestuário, a habitação, os trans­portes, a iluminação, o telefone? Ë a isso que se chama a "política da austeridade"?

          Os garantes do "processo revolucionário" evidencia­ram-se como aduladores da clientela do voto. Melo Antu­nes, ambicioso do Poder, elitista de linha paralela ao PCP; Vítor Crespo, insensível à prisão, às torturas e à morte de tantos portugueses, em Angola, em Moçambique, na Guiné e em Timor; Vitor Alves, cujo perfil se recorta num episó­dio que não resisto a contar.

Em 1964, o MPLA abrira a frente Leste em Angola e, durante os anos de 1966, 1967 e 1968, levara a guerri­lha aos distritos do Moxico, Quando-Cubango, Lunda e Bié. Depois, por mérito da mudança de estratégia das For­ças Armadas portuguesas, a situação evoluiu. Os guerrilhei­ros, perdendo a iniciativa, remeteram-se a uma defensiva, raramente interrompida por incursões esporádicas.

Acontece que a crise na frente Leste, por parte do MPLA, havia começado em 1968. E bom seria lembrar, "aos que não têm suficiente memória para mentir toda a vida", a verdade, a única, é que, já nos primeiros meses de 1972, os guerrilheiros e Comandos do MPLA estavam to­dos na fronteira, tendo desaparecido da Lunda e do Bié. Só no Moxico se manifestava a sua presença, em acções na sub-região Sul.

Uma das figuras mais notáveis entre as hostes dos guerrilheiros era o "camarada" Iko Carreira. Conheço-o desde que nasceu. Amigo nas boas e más horas, laços mui­to estreitos me ligaram aos avós, pais e tios. Vi-o, pela últi­ma vez, na missa por alma da Mãe (brutalmente morta por atropelamento, à porta de sua casa), chorando como um menino.

Iko Carreira tinha a cabeça a prémio. Era um guerri­lheiro corajoso, subtil condutor dos subordinados para as missões arriscadas, possuía, na realidade, os predicados de um chefe.

Vitor Alves comandava, então, uma companhia no Leste. E, num relatório, informou que a sua unidade abate­ra o "camarada" Iko Carreira. Atribuiram-lhe, por isso, um prémio de cinquenta contos.

          Entretanto, Iko Carreira é, hoje, ministro da Defesa do MPLA. Pensaria que, por milagre ou artes de bruxaria, ele tivesse ressuscitado, não soubesse que, na altura da sua "morte", estava em local afastado, em Sikongo, analisando as razões por que um grupo de guerrilheiros se manifestara contra o "camarada" Monimambo.

Espero que Vitor Alves tenha devolvido os cinquenta contos.

Retrocedendo.

Até as esmolas que lhes davam, tiraram aos refugia­dos. Acabaram as senhas de alimentação, e daí, muitíssi­mas pessoas, que viviam em casa de familiares pobres, dor­mindo onde Deus mandava, ficaram sem dinheiro para co­mer.

A corda apertou-se no pescoço de gente já sufocada. Os refugiados, acossados pela fome, estiveram, durante mais de um mês, defronte do palácio de São Bento. Retira­ram-se, apenas, quando o l AR N lhes acenou com um sub­sídio de emergência, transitório: trinta e poucos escudos por dia para alimentos.

Ninguém lhes pode descrever a odisseia. Apontamen­tos esparsos não fazem História.

Os refugiados não precisavam de caridade, mas de compreensão, de justiça e de trabalho. Isso, sim, o deseja­vam e não lhes deram.

O conselheiro Sousa e Castro, um amador em políti­ca, com fumos de escrevinhador em jornais (com pseudóni­mo, naturalmente), deu-me a duvidosa honra de reparar em mim e bolçar umas tantas injúrias a meu respeito. Não me tocou. Quando ele nasceu, já eu andava por África, ajudan­do as populações, ao lado de muitos outros.

Não foi a etnia branca no Ultramar a culpada dos erros cometidos. Os brancos não exploraram, trabalharam. Não escravizaram, ampararam. Não cultivaram o obscuran­tismo, iluminaram os espíritos. Não provocaram enfermida­des, sararam-nas.

Os erros todos os erros partiram do Terreiro do Paço.

           Mas que se lhe há-de fazer? O capitão Sousa e Castro nasceu tarde demais para saber dessas coisas. E agora, conselheiro, não tem tempo para aprender.

Se dispusesse de algumas horas, poderia falar-lhe de um Português, inconformado com a entrega da sua terra aos comunistas: o eng. Mitra. À frente de dez companhei­ros, saiu da África do Sul para Angola, numa arrancada te­merária. Onze lendários combatentes, que, cercados pelas F AP LA, não se renderam. Sete tombaram, crivados de ba­las, insultando os inimigos e saudando a Pátria que, como eles, fora traída. Os restantes prosseguiram para a Gabela, onde foram avisados que deveriam deslocar-se à África do Sul, a fim de regularizar a situação de suas famílias. Acede­ram, com a promessa de que os deixariam voltar à luta. Os sul-africanos, porém, retiveram-nos, numa política de bastidor.

Se o conselheiro Sousa e Castro tivesse tempo, mos­trar-lhe-ia os documentos em meu poder, dos quais repro­duzo alguns que ao gesto magnifico se referem.

Se o capitão Sousa e Castro dispusesse de algumas horas, falar-lhe-ia, por contraste, da atitude do alferes mili­ciano, dos Serviços Mecanográficos, António Ferreira da Silva.

Em "meados de Setembro de 1974, quinhentos ofi­ciais reuniram-se, por convocação dos representantes do MFA em Angola, no palácio do Governo-Geral. Estranha­ram alguns dos presentes, que as Forças Armadas não ti­vessem actuado prontamente contra a ocupação do Rádio Clube de Moçambique por elementos civis. Foi explicado que o grande número de mulheres e crianças no interior do edifício, impedira meios extremos. O alferes António Fer­reira da Silva (que, depois, teve de fugir para Lisboa) indig­nou-se com a moderação, porque "tropas vindas do mato não podiam hesitar em abrir fogo sobre mulheres e crian­ças".

Se o sr. conselheiro tivesse estômago para me ouvir...

 

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