O ÊXODO
O medo da derrocada, melhor, das consequências da derrocada,
pôs em fuga as populações.
Desde logo, os menos afoitos, os menos corajosos, os mais
interesseiros, os mais calculistas que, em apressado e egoísta balanço,
avaliaram as vantagens e desvantagens de esperar pêlos acontecimentos,
escaparam-se do território. À formiga, disfarçadamente, contentes por salvar os
bens.
A seguir, à medida que a instabilidade crescia, que a
esperança se dissipava, maior foi o caudal dos que partiram. Luanda tinha,
perante os olhos pávidos, a trágica repetição de Março de 1961: refugiados que
vinham, frangalhos de seres humanos, despojados de tudo, até do vestuário.
Esfomeados e feridos na carne e no espírito. "Saneados" dos locais
onde trabalhavam, onde muitos tinham nascido.
O êxodo principiou em Junho. Mas a grande avalancha
verificar-se-ia em Agosto, Setembro e Outubro. O Governo de transição, com
pouca eficácia, aliás, adoptou providências para facilitar a saída a quantos o desejassem, agrupados, nomeadamente,
em Luanda, no Lobito e em Moça medes.
Numa insegurança sem fronteiras, a morte espreitava casas e
artérias das povoações. Um minuto, um segundo de sobrevivência, desgraçadamente
era dádiva de Deus. Até os mais animosos, os que teimavam em ficar, desistiam.
Horas
e horas — infindáveis — as pessoas aguardavam a misericórdia de um lugar num
avião ou num barco. Companhias nacionais e estrangeiras lhes valeram. Mas não
a todas.
Dos que partiram, bastantes davam o salto para o
desconhecido: nunca tinham pisado outras terras que não fossem as angolanas.
Alguns convenciam-se de que seriam acolhidos com humanidade em Portugal, como
sucedia em férias endinheiradas. À chegada, aos que assim julgavam, a desilusão
somou-se ao desgosto e à amargura de uma nova espécie de traição. Agora, não
traziam dinheiro, nem prendas para familiares".e'amigos. Agora vinham rotos, sujos, estonteados de
pavor, a febre nos olhos, as faces cavadas, resseguida
a alma. Receberam-nos como indesejáveis contrapesos.
Se houve pessoas que, embora saindo precipitadamente,
salvaram pequena parte dos bens, a esmagadora maioria deixou propriedades, depósitos
bancários, viaturas, instrumentos de trabalho. Ainda menor foi o número dos que
se furtaram a dias e dias de aflitiva espera no aeroporto, dormindo no chão,
sem higiene, sem comer, numa horrorosa promiscuidade. Milhares de pessoas
pejaram os acessos à salvação, rebanhos imundos e ansiosos, espreitando, insones, cada avião que chegava ou descolava.
As comissões de trabalhadores do porto de Luanda, os sindicatos, o poder popular, sob qualquer pretexto opunham-se à saída de caixotes e
viaturas. Roubaram automóveis, arrombaram malas, escolhendo, a seu bel-prazer,
o que mais cobiçavam. Felizes os que embarcaram na base aérea, onde a correcção
dos militares foi notável. Os restantes, porém, assistiram, impotentes, ao
saque sistemático das suas bagagens, ante a
passividade das Forças Armadas Portuguesas.
Luanda
encheu-se do ruído dos caixotes, martelados dia e noite. Camionetas aguardaram,
três e quatro dias, em filas de quilómetros, a oportunidade de descarregarem,
no cais, toda a espécie de coisas, às vezes nem sequer embruIhadas.
Subiram, a níveis inauditos, os preços da madeira e dos fretes.
Em Outubro, o MPLA proibiu a saída de camiões e de
carrinhas ou jipes de caixa fechada. Aflitos e acossados, os proprietários serram
metais, desfizeram bancos, desmantelaram armações, no intuito de salvaram o
que pudessem.
Na loucura que se apoderou de todos, a imaginação fervilhava.
Os aviões e os navios não escoavam a torrente dos fugitivos. Organizou-se, por
isso, uma caravana, de África para Portugal. Muita gente se entusiasmou. Tanta,
que depressa tiveram de ser canceladas as inscrições. Cerca de dois mil veículos
pesados e seiscentos ligeiros transportariam cerca de cinco mil pessoas. Tudo
fora preparado: comunicações-rádio, assistência médica,
cozinhas, alimentos, serviço de desempanagem.
Estudaram um percurso que atravessava a Zâmbia, contornando a região de Brazaville, prosseguida pelo Gabão e entrava em países mais
hospitaleiros. Recorreram ao alto-comissário, à Cruz Vermelha, ao Governo de
Lisboa, ao qual mandaram emissários. Foi animador o
acolhimento e a compreensão que lhes dispensaram. No entanto, quebraram-se os
elos da cadeia, porque o MPLA não os deixou passar pelas zonas sob o seu controlo.
Com a independência, o MPLA tornou-se
ainda mais intransigente. Mais cruel. Mais desonesto... Impediu a saída de viaturas e haveres que considerava não pertencerem aos seus
legítimos donos, mas a Angola. Máquinas de costura, tornos portáteis, pneus,
ferramentas, um ferro eléctrico, passaram a ser do Estado angolano (ou de
qualquer dos seus maiorais, como é o meu caso: o recheio da minha habitação
conforta, hoje, um dos líderes do MPLA).
Durante este período, principalmente
depois da chegada dos cubanos e das confrontações dos movimentos de libertação, quase
toda a gente foi dominada pela psicose do medo, a par da obsessão da fuga,
desordenada e sem atender às condições em que era empreendida. Das águas de
Luanda, do Lobito, de Benguela e, principalmente, de Moçâmedes e Porto
Alexandre, traineiras superlotadas levantaram ferro para a África do Sul, na
maior parte para Walvis Bay.
Houve naufrágios, nos quais muitos pereceram. Outros, arrojadamente,
aventuraram-se a cruzar o Oceano, para Portugal e para o Brasil.
De Silva Porto, de Nova Lisboa, do Luso, grupos mais ou
menos numerosos embrenharam-se na mata e calcorrearam a distância que os
separava de África do Sul, onde os alojaram em campos de concentração e os
trataram com humanidade. Para o Norte foram os que queriam atingir Kinshasa. A
etnia negra preferiu, em regra, acolher-se à Zâmbia e ao Zaire, pedindo às
autoridades transporte para Lisboa, porque não queriam perder a cidadania
portuguesa. Caminhadas dramáticas, sem alimentos e sob a intempérie. Em média, morreram oito crianças por dia.
É difícil calcular o tal dos fugitivos, até porque há que
contar com o número indeterminado dos desaparecidos. Contudo, no Zaire,
estiveram mais de vinte mil negros; na África do Sul, cinquenta mil pessoas,
entre brancos, negros e mulatos, incluindo os que vieram de Moçambique; na Zâmbia,
vinte mil.
Falei, em capítulo anterior, nos mortos causados pela
descolonização: trezentas mil pessoas. Acrescento agora que, ou foram pura
e simplesmente assassinadas, nos centros populacionais; ou tombaram,
durante a fuga, às balas dos movimentos
"libertadores" e das tropas estrangeiras (leia-se cubanas e russas); ou por doença e inanição; ou porque a má-sorte
os colocou no meio dos combates que o MPLA,
a F N LA e a UNITA travavam.
Um exemplo, ao acaso, do genocídio
angolano. Em Moçâmedes, quando homens, mulheres e crianças procuravam ir para
bordo de rebocadores, de traineiras, de pequenos barcos a remos ou à vela,
foram atacados por forças da UNITA, que se deram ao luxo de incendiar tudo o que estava no cais, viaturas e caixotes.
Se alguns se salvaram, devem-no à intervenção dos guerrilheiros da FNLA.
Antes da independência, como é óbvio, constituiram-se
comissões de apoio, separando os desalojados que se ocupavam em actividades
privadas, dos que eram funcionários do Estado, reformados ou não.
Essas comissões exauriam-se num afã de fraca rendibilidade,
porque, organizadas à pressa, não dispunham das infraestruturas para atender
bichas de impetrantes que se alongavam por quilómetros. Elementos seus,
perfeitamente conscientes de que o País estava a braços com uma responsabilidade
incomportável, deslocaram-se a Lisboa, para alertar o Governo. Lançavam-se,
nessa altura, os caboucos do IARN. Responderam-lhes que tudo fora previsto e
que não faltariam alojamento e alimentação para quem viesse em busca da
paz.
Apenas, os cálculos erraram, em muito, por defeito. E o IARN "estoirou pelas costuras"...
Verificaram-se, então, atropelos aos direitos de cada um e houve necessidade de
internar (não de hospedar) os refugiados que chegavam, em vagas
existentes nos hotéis. Do problema me ocuparei adiante, mais
pormenorizadamente.
Em Angola, os voos de transporte por conta do Estado
terminaram nos primeiros dias de Outubro. Depois, os refugiados teriam de
viajar pagando o bilhete. Como poderiam pagar, se tinham sido roubados?
Não se percebe o motivo do corte da ponte-aérea,
dificilmente conseguida ao cabo de inúmeras diligências das comissões de
refugiados, de conferências de Imprensa, de memorandos e telegramas ao
Presidente da República, ao Conselho da Revolução, à Cruz Vermelha
Internacional, de apelos a Embaixadas estrangeiras. Miseráveis, descalços, apenas
com a roupa do corpo, famintos, onde iam buscar o dinheiro para uma passagem de
avião? Felizes, apesar de tudo, os que foram repatriados pêlos governos da África
do Sul e do Zaire.
Um
milhão e quatrocentos mil refugiados é o cômputo que
faço do êxodo dos angolanos. Em Portugal, um milhão e duzentos mil. Os
restantes distribuídos pela África
do Sul, pela Rodésia, pela Zâmbia, pelo Zaire, pela Austrália, pelo Brasil,
por vários países mais.
Em Angola, quedaram-se no máximo, vinte mil pessoas da
etnia: aderiram ao MPLA, por oportunismo ou convicção. Quase todas, no
entanto, por oportunismo. Há cidades despovoadas de brancos. Outras têm
dois ou três. De qualquer maneira, a etnia branca em Angola dispersa-se, principalmente,
por Luanda, Benguela e Lobito.
Esses, os que ficaram, aceitaram um quotidiano de subserviências
e enxovalhes. As raparigas (por informações dignas de confiança) sujeitam-se às
maiores indignidades, para captarem a simpatia dos aderentes do MPLA.
No que me toca, fui, repetidamente, ameaçado de morte.
Resisti, enquanto pude, às angustiadas súplicas de minha mulher. Acabei por
ceder, receando que ela enlouquecesse.
Tomada a decisão, procurei um amigo da Revolta Activa e
pedi-lhe para dizer ao Helder Neto que eu não fugia. Que voltaria depressa.
No aeroporto, as bagagens já entregues, aguardava a chamada
para o embarque, quando as FAPLA e um grupo do poder popular me prenderam. Uma
data inesquecível: 12 de Novembro, à noite
Insultaram-me e agrediram-me, à coronhada e a murro.
Acusaram-me de reacionário, de imperialista, de tudo
o que lhes veio à cabeça. Que eu queria ir para o Brasil, que eu queria ir visitar o meu amigo Holden
Roberto e, para cúmulo, que eu queria juntar-me ao coronel Santos e Castro.
Digo, para cúmulo, porque, na conversa que tivera com Helder Neto, acerca do
Toni, o chefe da Segurança do MPLA perguntara-me:
— Então o senhor engenheiro
vai a Kinshasa? Surpreendi-me:
— Porquê a Kinshasa?
Helder Neto sorriu:
— O senhor engenheiro nem pensa no que lhe aconteceria se
fosse a Kinshasa.
Folheando um processo,
continuou:
— Vou ler-lhe uma parte das declarações do Carlos Lãs
Heras.
Leu. E fiquei atónito.
Carlos Lãs Heras revelava
que Santos e Castro, desconfiando do Toni Rodrigues e do Cardoso da Silva,
lhes congelara os depósitos bancários de três mil rands
que cada um deles fizera na África
do Sul, para cobrir as despesas da fuga da Angola; que aquele oficial português
o tinha incumbido de formar um núcleo revolucionário no Sul de Angola, com
particular incidência em Moçâmedes; e, por outro lado, aquando do seu último
encontro, no Ambriz, com ele,
declarante, e o Toni Rodrigues, o encarregara de me abater. Santos e Castro pretendia ser meu algoz, quando eu fora sempre a vítima...
Do aeroporto, conduziram-me para o antigo quartel da Polícia
Militar, na avenida Norton de Matos. Interrogaram-me sumariamente,
revistaram-me a pasta, repetiram os insultos e as ameaças e encerraram-me numa
cela exígua, sujíssima e com um colchão nojento. A luz vinha por uma fresta de
alguns centímetros.
Dias horrorosos, em que dormitava sentado, quase sem comer,
porque as refeições, irregulares, eram intragáveis. Amenizaram-me as agruras alguns soldados das FA-PLA,
presos como eu, que odiavam o MPLA. Quando os guardas se afastavam, abriam a
porta da cela e eu podia ver a luz do dia directamente. Pude, numa das vezes,
trocar umas palavras com dois brancos mercenários da FNLA que se tinham rendido
nas proximidades de Quinfangongo.
Dias volvidos, transferiram-me
para o Morro da Luz, uma antiga escola inglesa, com instalações próprias para crianças,
mas insuficientes para adultos.
No
pavilhão superior, estávamos 42 presos, dos quais seis estrangeiros: um
espanhol e cinco sul-africanos (um deles, jornalista). Exceptuando um guineense,
éramos todos brancos. Além de pessoas que eu conhecia, deparei, à chegada, com
o tenente-coronel Sousa Teles e um amigo e antigo condiscípulo, Boaventura
Martins.
Tão deprimido me sentia que teria sucumbido, não fossem os
desvelos do espanhol Gabriel que me obrigava a comer; de Sousa Teles que não me
deixava nem lavar a loiça; de todos os restantes que me dispensaram atenções
que nunca poderei compensar.
Dispúnhamos, apenas, de 18 colchões, pelo que dormíamos
por turnos. Melhor de dia, porque não havia mosquitos.
No dia 21, à tarde, soltaram-me, com os tenentes-coroneis
Sousa Teles e Ermida. Sem me ser dada uma explicação porque fora preso.
No dia seguinte, logo de manhã, dirigi-me à Polícia de
Segurança Pública, a fim de me ser passado um salvo--conduto para sair de
Angola. Ainda estava a arrumar o carro, um garoto do poder popular e uma força
das FA-PLA, armada até aos dentes, identificaram-me e tornaram a
prender-me, porque não tinha a guia de soltura. Lá me levaram para a Fortaleza
de São Miguel. Dali para o Morro da Luz. Em ambas as cadeias confirmaram a
minha libertação, mas esquivavam-se a passar a guia. Por fim, convenci os meus
captores a levarem-me ao palácio. O director da Segurança Nacional, Onambua,
conhecia-me, mandou que me entregassem a guia e... "safei-me".
Fui para casa e não saí mais, até à
hora do avião. Mas só respirei fundo quando já estava no ar.
E, no dia 23 de Novembro de 1975, cheguei a Lisboa. No
bolso, uma nota de dez francos, que minha filha me dera. Ao câmbio, 61 escudos.
Não se pode afirmar
que voltei rico, depois de quatro décadas a "explorar os negros".