O ESTERTOR DA FRA

No meio de tamanhas preocupações, intrigava-me e confundia-me o comportamento do capitão Figueiredo.

Eu fora informado de que minha mulher e minha fi­lha tinham avisado as pessoas da nossa amizade para não nos procurarem, porque seriam presas. Assim acontecera ao Toni Rodrigues e a um funcionário da Câmara, que me estimava e só por isso fora a minha casa, sem estar mini­mamente comprometido com a FRA. E mais alguns.

A minha filha encontrara o capitão Figueiredo que nervosamente, confessou já saber do que se passava, justifi­cando o seu silêncio com uma desculpa imbecil, com o in­tuito, talvez, de deitar poeira nos olhos de quem preten­desse adivinhar-lhe o mau carácter. Transmitiu-me um reca­do: de que esperaria até sexta-feira da próxima semana que entrasse em comunicação com ele. Esgotado o prazo, cha­maria a si o desencadear de um golpe.

Imediatamente (isto por ocasião da minha fuga de Luanda), nos puséramos em campo para o localizar. Por todos os meios, até com apelos de rádio-amadores. Enfim, comunicaram-nos que o capitão sofrera um desastre de via­ção e fora internado, em estado grave, no hospital de He­nrique de Carvalho. O que não era verdade. O capitão Fi­gueiredo gozava de boa saúde e permanecia, tranquilissimamente, no remanso da sua casa.

           À distância, em fria análise, as nossas dúvidas eram estúpidas. Mas, naquele ambiente de tensão nervosa, de receio, de agitação, até as hipóteses mais incríveis se nos afi­guravam possíveis.

Revolvemos interrogações sobre interrogações, que se nos cravavam no espírito, que nos aguilhoavam a consciên­cia, não querendo acreditar na traição do capitão Figueire­do. Nem a descrição que fizeram de mim, no mandado de captura; nem um aviso da minha mulher categórico e pun­gente, me convenciam. Debatíamos, interminavelmente, a identidade do traidor da FRA. Houve quem admitisse (nu­ma acusação que repudiei veementemente) que o capitão Seara, talvez torturado, talvez violentado, talvez destram­belhado pela doença a pressão arterial, muito alta, afli­gia-o e alterava-lhe a resistência emocional fosse a nossa "ovelha negra". Acrescia que Rogério Costa fora preso e ninguém descortinava explicação para um tal facto. Rogé­rio Costa era o amigo íntimo do capitão Figueiredo. Só eu e o capitão Seara o conhecíamos. Só os dois conbináramos com ele o planeamento militar da FRA. Fomos desumana­mente injustos para com o capitão Seara. Quem nos traiu, quem nos arrastara para o abismo tinha outro apelido: Fi­gueiredo. E se outras provas quiséssemos lançar mão, por excessivos escrúpulos ou rigorismo de consciência, bastar-nos-ia pensar no destino do capitão Martins, do Alvoeiro (chefe da ODA) e do Osório, ligados à FRA, que a minha filha apresentou ao capitão Figueiredo, cedendo a instân­cias suas e enquanto eu estava fugido. Esses e outros ele­mentos da FRA, convocados para uma reunião secreta, nos subúrbuios de Luanda, com o capitão Figueiredo, foram todos presos.

          Certo de que não nos sobrava tempo para actuarmos, convoquei um plenário em Sá da Bandeira, para 30 de No­vembro. Vieram todos os delegados da FRA, à excepção dos de Quibala e Carmona, o primeiro por não ter recebi­do o recado e o segundo porque ficou, sem gasolina, na Jamba. O encontra era extremamente importante, para se decidir se os camionistas, os industriais e os comerciantes entrariam em greve para obrigar a Junta Governativa a de­mitir-se, atenta a incompetência e a má-fé com que geria os destinos de Angola. O engenheiro Falcão, recém-secretário provincial, conduzira as reivindicações apresentadas plos "sindicatos" de Luanda, Nova Lisboa e Benguela. Fundamentalemnte, queriam a demissão de Rosa Coutinho.

Num dos intervalos do plenário, Nuno Cardoso da Silva e Penha Rodrigues transmitiram-me um recado de Gil­berto Santos e Castro: insistia pelas informações que, há bastantes dias. Saraiva de Oliveira já lhe prestara. Também muito estranho... porque as metades do cartão de visita tinham funcionado como suplemento de garantia, atenden­do à identidade do interlocutor do coronel.

Anteriormente, milha mulher aparecera, inesperada­mente, na "Fortaleza", transportando dois passageiros, eva­didos da cadeia de São Paulo: O Toni Rodrigues e o Nóbrega. Desmentindo a sua proverbial timidez, fora ela quem, pela calada da noite e guiada pêlos croquis que o Toni fizera, lhes dera a fuga. O Nóbrega, pelo seu peso, magoara-se nos. pés ao saltar o muro da prisão, com sete metros de altura, contrariedade tratada em sigilo, por um médico chileno, residente em Sá da Bandeira.

Em 9 de Dezembro, recebi uma comunicação para sair, sem delongas, da "Fortaleza". A tropa batia as ime­diações e não tardaria a chegar à quinta onde me acoitava.

Fugimos em dois automóveis: a minha mulher e a milha filha, eu, o Toni, o Nóbrega e o José Peiroteo. Che­gámos de madrugada a Santa Rita, em Moçâmedes e o ad­ministrador, sr. Lafayette, acolheu-nos no posto. Um aloja­mento precaríssimo, mas de que me vali para aliciar os ho­mens de dinheiro da região. Concordaram em conceder um subsídio à F RA, mas não cumpriram a sua palavra. A des­culpa e não mais do que ma desculpa foi a de que eu criticara o engenheiro Falcão, natural de Moçâmedes e diri­gente da FUA, que, para esses magnates da finança, seria a organização capaz de salvar os interesses da etnia branca (verdadeiramente, os deles, porque, como diz o povo, "em cama estreita, nós diante..."}.

Por ironia, eu não atacara o engenheiro Falcão. De sobra lhe conhecia a duplicidade e o egoísmo, a maleabili­dade, como barro macio, do seu carácter, fácil de moldar, ao gosto de formas e feitios. Limitara-me a esclarecer esses senhores que a FUÁ não tinha expressão política, sem po­der, sem meios de pressão sobre as autoridades porgutuesas e muito menos sobre os movimentos de libertação. A ideia do referendo popular estava ultrapassada. E a da democra­cia também... "Gastámo-nos" num diálogo de loucos, em que veio à baila o separatismo que atrairá brancos, negros e mulatos. Destes, Correia Mendes, presidente da Associa­ção dos naturais de Angola (eu chamava-lhe o "caudilho"), perseguido pela Polícia política, fora preso e julgado, ten­do sido eu uma das testemunhas de defesa. Era um dos grandes defensores da comunidade lusíada, pela qual se ba­teu, ingloriamente, durante anos, arrostando com a incom­preensão dos governantes.

Também evocámos um movimento de integração nascido durante a guerra, de que eu tinha perfeito conheci­mento, pois o discutira com uns e com outros. Na Metró­pole e em Angola, brancos e negros aceitavam a integração como um meio de atingir a independência. Horas e horas de discussão puramente académica no tempo, que me im­pacientava pelo írrealismo dos raciocínios, pêlos erros cras­sos de gente que tinha muito a perder e, superiormente, navegava na ignorância, com a teimosia que é apanágio dos pseudo-sábios.

Mudámo-nos de Santa Rita para um "rancho de cria­ção de gado, no deserto de Moçâmedes, a cerca de setenta quilómetros da cidade. Um sítio paradisíaco, onde havia comida, onde podíamos tomar banho, onde caçávamos e pescávamos maravilhosos camarões num açude, onde as noites se iluminavam com milhões de estrelas, mas onde eu continuava isolado, sem notícias. Um paraíso-inferno que me folgava o meditar, consciente de que se avizinhava o termo das minhas ilusões, mas não querendo sujeitar-me à vergonha de desistir por comodismo ou inércia.

Enviei emissários a Luanda e a outras cidades, que não me trouxeram nada de novo, salvo a suspeita de que algo não corria bem quanto a Cardoso da Silva. A suas reticências, as respostas evasivas, principalmente o seu si­lêncio sugeriam emboscadas do espírito.

Pedi ao Toni Rodrigues e ao Nóbrega que procuras­sem Santos e Castro em Joanesburgo. Fiquei com 85 escu­dos no bolso e o restante dinheiro que lhes dera, escasso era para uma viagem difícil e perigosa, atenta a sua evasão de São Paulo.

Entretanto, de automóvel, a pé, seguindo itinerários escusos previamente escolhidos, amparados por amigos, chegaram a Joanesburgo e falaram com Santos e Castro. A odisseia da travessia não foi compensada pela afectuosidade da recepção. O coronel Santos e Castro recebeu-os displi­cente, desinteressadamente. E despediu-se sem cerimónias, alegando um convite para jantar.

Resumindo, o comportamento de Santos e Castro deixa-me perplexo. Não lhe descortino explicação, ao re­memorar as conversações morosas e complicadas; as suas exigências para aceitar juntar-se à F R A, que satisfizemos até ao mais ínfimo pormenor (como, por exemplo, o de­sembarque de armas numa praia a Norte de Moçâmedes, chamada, por coincidência, o Chapéu Armado); os apelos vãos que lhe fizemos, emissário após emissário, confiados nas suas promessas, na sua coragem, no seu patriotismo, so­bejamente comprovados na guerra; o dinheiro que as cúpu­las da FRA, em Luanda, lhe entregaram: a última remessa, segundo Nuno Cardoso da Silva, excedeu os quatrocentos contos, de que não prestou contas. Importâncias vultosas, somando os trezentos contos que ele cambiou ao Mário Gino. O próprio Nuno Cardoso da Silva, desiludido e agastado, quis, na segunda quinzena de Janeiro, retornar a África do Sul, para averiguar, de uma vez para sempre, se o coro­nel Santos e Castro queria colaborar connosco não. No entanto, numa carta que o Cardoso da Silva me escreveu muito mais tarde, a desligar-se da FRA, entendi, nas entre­linhas, que uma intriga suscitara o desentendimento entre mi m e o coronel Santos e Castro. Essa carta, aliás, merece outros comentários que adiante farei.

Tão absurdo me parecera o comportamento de San­tos e Castro, que, já fora da clandestinidade, me dispus a voar até ao Ambriz onde ele estava, com as forças da FNLA, para termos uma explicação. Disso fui impedido, pelas FAPLA, quando me aprestava para embarcar num tá­xi aéreo, em Luanda.

Como apontamentos finais do "caso" Santos e Cas­tro, repito o relato que Toni Rodrigues me fez do encon­tro em Joanesburgo, que aumentou a minha perplexidade: o coronel ter-se-ia declarado fundador da FRA, com o ir­mão. E reiterou a sua intenção de ir para Angola, se rece­besse as informações que pedira que, há havia muito, lhe tínhamos enviado.

Chovia, quando o Toni e o Nóbrega se separaram de­le (ou quando ele os pôs na rua). Não se preocupou com a sorte de dois homens que, sem dinheiro, iriam percorrer milhares de quilómetros. Um amigo lhes valeu, pagando os bilhetes de avião para Luanda.

Até prova em contrário, o coronel Santos e Castro, com o capitão Figueiredo, são os maiores culpados pelo desaparecimento da FRA com o cortejo de desgraças que procurámos impedir.

Tenho esperança porque, apesar de tudo o admiro de que, um dia, o coronel Gilberto Santos e Castro me demonstre que estou enganado.

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