O ALMIRANTE ABJECTO

Rosa Coutinho viajou para Lisboa, onde produziu muitas afirmações interessantes, mas só duas verdadeiras: a de que 85 por cento da população de Angola ainda não optara por qualquer ideário político, cabendo aos brancos escolherem, de acordo com as suas convicções, um dos três movimentos de libertação; e que Angola não era para timo­ratos.

Simplesmente, o "almirante vermelho" olvidou que os brancos tinham de ser timoratos porque não podiam en­frentar, desarmados (e fora ele quem lhes roubara as ar­mas), os militares, os movimentos de libertação e os margi­nais que infestavam a cidade.

Quem habita a civilização, uma cidade ordenada e em paz, não concebe o que foi a vida em Luanda nesses tempos. Saqueava-se, roubava-se e matava-se, dia e noite, no centro ou nos subúrbios.

         Rosa Coutinho voltou a Luanda, quando se realizou a famosa conferência entre uma delegação portuguesa e outra da FNLA, a bordo do iate Mobutu, no rio Zaire. Perdi, como numerosíssimos documentos do meu arquivo pessoal, a minuta do encontro. Em todo o caso, sei que se esclareciam e definiam posições, comprometendo-se a FNLA a respeitar a vida e os bens da etnia branca; que protegeria antigos combatentes e que aceitaria o prazo de um ano para a transferência de poderes. O acordo consta  de um comunicado da FRA, que bastante contrariou os que o queriam manter em secreto.

Em 7 de Setembro de 1974, deu-se a revolta dos ad­versários da FRELIMO, como repúdio pela entrega de Mo­çambique, acordada em Lusaka, à minoria liderada por Samora Machel, e desagravo pelo enxovalho da bandeira nacional, arrastada pelas ruas de Lourenço Marques. Negros desvairados cometeram as maiores vilezas. Contra eles, os portugueses saíram de suas casas, entre os quais Gomes dos Santos, símbolo da razão dos homens espoliados; e o dr. Vitor Hugo Velez Grilo, meu amigo de sempre e irmão por ideal. A capital moçambicana estremeceu, no espasmo final de uma cidade civilizada.

Poucos dias passados, em Luanda, o vermelho Alva Rosa falou comigo. Assistiu ao encontro, o dr. Santos Silva que me acompanhara nas conversações de 4 de Maio com o general António de Spínola em Lisboa. Verifiquei a es­pantosa ignorância de Alva Rosa sobre a vida angolana e adivinhei-lhe os propósitos de entreguismo. Chamou aos eventos de Moçambique revolução romântica, augurando que na costa ocidental da África Portuguesa isso não acon­teceria. Repliquei-lhe que em Angola não haveria uma re­volução, mas uma guerra. Argumentou, contrariando os meus vaticínios, como um néscio ou um desequilibrado mental camarada, à mão esquerda, de Vasco Gonçalves. Felizmente, foi a única vez que desperdicei tempo com tão sinistra personagem.

Nos meandros de um viver agitado e confuso, aderiu à FRA um ex-oficial miliciano, que prestara serviço na se­gunda repartição do Quartel-General do Exército e fora in­térprete do comandante-chefe, general Costa Gomes.

Toni Rodrigues viria a ser um dos mais activos agen­tes da FRA. Com ele, tentámos, de novo, adquirir armas, Um judeu polaco, um general americano, um tenente-coronel português na reserva, intervieram como nossos interlo­cutores nessas andanças, fracassadas, porque, como escrevi, numa carta enviada por mão própria a Lisboa, não aceitá­vamos um Estado que não fosse de Direito e em que não tivessem lugar todas as etnias em pé de igualdade.

A par disso, procurávamos angariar fundos. Das pro­messas de centenas de milhares de contos, depositados à nossa ordem, no Brasil e na Grã-Bretanha, não nos chegou às mãos um centavo.

Constantemente me desloquei aos mais distantes cen­tros habitacionais do território, respondendo a interroga­ções, encorajando, unindo os homens de boa-vontade numa cruzada que era sinónimo de sobrevivência. Em cerca de dois meses, percorri mais de quarenta mil quilómetros, por ar e por terra.

Nuno Cardoso da Silva insistia sobre a necessidade de conseguirmos a cooperação de Gilberto Santos e Castro. Mas ninguém sabia do seu paradeiro. Asilara-se em Espa­nha, no Brasil, na África do Sul. Os ex-comandos garan­tia Cardoso da Silva estariam connosco com a condição de terem por chefe Santos e Castro. O capitão Seara e eu esgotámos todos os meios para o descobrir, sem nenhum êxito.

Neste vai-vem de loucura, Spínola chamou a Lisboa uma representação dos interesses económicos e de alguns partidos para que o informassem, com verdade, da situação de Angola, porque Rosa Coutinho, às perguntas do Presi­dente da República, respondia, invariavelmente, que as no­tícias alarmantes, chegadas a Belém, eram boatos, boatos, boatos... E, em Angola, aumentavam os tiroteios, os rou­bos, as perseguições e os assassínios.

          Fui com o capitão Seara ao Sul do território, para que as pessoas não se desmobilizassem, perante a falta de auxílio, que tardava a chegar. Com individualidades locais, gizámos planos e coordenámos esforços. Encontrámos a maior receptividade na luta por uma frente na região. Entendemos, todavia, que nos seria útil contar com um ex-alferes dos Comandos, Rogério Costa, que exercia o magistério na Escola Agrícola de Chivinguiri e cujos conhecimen­tos civis e militares nos trariam enormes vantagens.

Aqui se inicia o desmantelamento da FRA. Rogério Costa era amigo do capitão Figueiredo, também ex-oficial dos Comandos e que, no Leste, superintendia em tudo o Costa era amigo do capitão Figueiredo, também ex-oficial dos Comandos e que, no Leste, superintendia em tudo o que se relacionassem com os catangueses que tinham com­batido o MPLA, Os mercenários catangueses constituiam uma força extremamente importante, com dezoito com­panhias prontas, três em instrução e uma especializada em ataques à faca.

Rogério Costa confiava no capitão Figueiredo e no entusiasmo com que ele se referia à FRA. Por conseguinte, recebi, com agrado, a sugestão de me encontrar com ele em Luanda.

Tivemos uma longa conversa, durante a qual concor­dámos inteiramente nos pontos essenciais que seriam utili­zar os catangueses não só para se oporem a eventuais ofensi­vas do MPLA, como também para se encarregaram da ma­nutenção da ordem nos centros populacionais. Devo salien­tar que os catangueses eram militares altamente treinados, cuja eficiência fora sobejamente demonstrada.

Surgia o óbice de os concentrar, porque estavam dis­persos. Henrique de Carvalho ou Vila Luso pareciam ser os locais preferíveis. Estudámos os meios de transporte e o apoio logístico de que precisariam.

Confesso que o capitão Figueiredo me encantou. In­dignado com as autoridades portuguesas que se propu­nham repatriar os seus homens para o Zaire (o que corres­pondia a um massacre, porque Mobutu os tinha por inimi­gos figadais), elaborou um relatório propondo que eles fos­sem autorizados a emigrar para a África do Sul, como úni­ca maneira de lhes salvar a vida. Li o despacho de Costa Gomes, lavrado sobre esse relatório, em que o comandante-chefe indeferia a proposta, com o fundamento de que os  catangueses iriam reforçar a capacidade militar de um país reaccionário.

O capitão Figueiredo, inconformado e desgostoso, cansava-se em gabinetes e repartições, à procura da chave para a salvação dos seus subordinados. Apresentei-lhe al­guns dirigentes da F R A, pois, como futuro elemento de cúpula, teria de conhecer aqueles com quem iria trabalhar. Tanto mais que se esperava, para antes de 12 de Outubro, a entrega de armamento, vindo da África do Sul. Três ca­miões do João Ferreira, de Carmona, estavam em Luanda, aguardando ordens para rodarem para a fronteira. Não apa­receram as armas, nem qualquer explicação para a falha. Adiámos sucessivamente, para 16 e para 19, as operações planeadas, de que se encarregara o capitão Seara. A 19, as armas ainda não tinham vindo.

Por imposição do capitão Figueiredo, que se agitava num febril empenho de luta, convocámos uma reunião dos comandos da F R A, para se estudar nova estratégia, face ao contratempo surgido. Marcado para o dia 26 de Outubro, a discussão do problema não se fez. Nuno Cardoso da Silva informara-me de que, 24 horas antes da acção, deveria con­tactar um oficial Altino de Magalhães. O golpe abortou, porque, no dia 23, tropas portuguesas saíram dos quartéis, para fazer rusgas e prender civis e militares.

Houvera denúncia, não sabíamos de quem.

Na própria noite de 23, após o jantar, fui a casa do Cardoso da Silva. A tensão subira ao auge e o capitão Fi­gueiredo propunha-se abater Pezarat Correia e Emídio da Silva. Discordei, porque a RFA era uma organização com intuitos de paz e não cabiam no seu programa perseguições e ainda menos assassínios. Mas o capitão Figueiredo não desistia e chegou a averiguar onde dormiam os dois ho­mens: Pezarat, no Hotel Império; e Emídio da Silva, em casa da amante, embora a sua residência oficial fosse na messe.

Não estava ninguém em casa do Cardoso da Silva.

 

Eram 22 horas e tinha de o encontrar, porque a reunião da FRA fora marcada para a tarde do dia seguinte, no Institu­to Audio-Visual de línguas, de que era proprietário Toni Rodrigues. O capitão Figueiredo impunha-nos urgência, porque adiamentos e atrasos nos cerceavam as probabilida­des de sucesso.

Para procurar Nuno Cardoso da Silva, retrocedi, a fim de ir buscar o automóvel. Caminhei paulatinamente, rua fora, até quase defronte do sítio onde morava. Esta­quei no passeio fronteiro, aturdido com o aparato bélico digno do cerco a um castelo inexpugnável. Viaturas milita­res desembarcavam homens que, lestos, saltavam o muro das traseiras, enquanto outros se precipitavam para a gara­gem e para a entrada principal. As G-3 eram empunhadas com firmeza. Ouviam-se as ordens de comando. Desprezan­do "perigos", os soldados, invadiam o prédio.

Raciocinei rapidamente. De todos os habitantes, nos vários andares, nenhum outro locatário justificaria tão grande incómodo (e despesa) das Forças Armadas. "Aqui­lo" era comigo. E, num misto de inquietação, de diverti­mento e de surpresa, senti-me honrado com as "deferências" dos militares. Vaidoso, por outro lado, ao pensar na indómita bravura de um contingente tão formidável, que me cercava, que queria prender um homem só, que não usava um simples canivete. Amarguradamente, pensei, mis­turando-me aos curiosos, que bem melhor seria aproveita­rem-se as disponibilidades militares para manterem a ordem na cidade martirizada e inerme.

Um tanto desorientado, perdido em preocupações por minha mulher e minha filha, telefonei para um vizinho que, relativamente, me tranquilizou. Iam, de facto, pren­der-me. E, tendo forçado a entrada na minha residência, arrancaram os fios do telefone, o que explicou não serem atendidas as chamadas que fiz. Justiça presto aos assaltan­tes que, apesar do seu aspecto patibular, não molestaram as duas senhoras, apesar dos gestos agressivos e na inconveniência de maneiras. A boa-educação e a timidez ficara-lhes no mato...

Omitindo pormenores menos relevantes, acabei por passar a noite num restaurante de camionistas, à margem da estrada do Catete. De manhã, decidi que o melhor seria ir, como normalmente, para o serviço, no Matadouro, que fi­cava a quinhentos metros. Trabalhei até às cinco da tarde, quando dois amigos me localizaram e "enfiaram" no auto­móvel de um deles. Passaram barreiras e controlos, levan­do-me para Sá da Bandeira, após se gorar a hipótese de aproveitar o transporte de um avião que descolou da Quibala.

No papel de "doente", cheguei a porto de salvação: o Grande Hotel da Huíla, cujo gerente pertencia à FRA.

Continuei "doente" no quarto e os meus amigos em­preenderam o retorno a Luanda. Um deles, advogado, não pudera avisar a mulher da sua ausência. Preocupada, na in­certeza em que se vivia, dirigiu-se ao Comando-Chefe, na Fortaleza, a indagar do paradeiro do marido. Isso valeu ao meu amigo mais de dois meses na Casa de Reclusão.

 

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