MILÍCIAS AFRICANAS NO NIASSA

Em Moçambique não há trégua, a guerra continua e estou livre para a luta. Volto para o Niassa, ao norte da colónia e contato os setores que me interessam. Vejo-me finalmente de arma na mão, com mais 39 milícias africanos na defesa de Cóbue, um aldeamento às margens do Lago Niassa. Para lá não há estradas, a pista de pouso foi destruída pelas águas e o único meio de transporte são os barcos da Marinha Portuguesa.

É zona 100%, como chamam os lugares onde os terroristas pululam, sou o único branco num raio de centenas de quilómetros.

Como o consegui? Simplesmente aproveitando a balbúrdia que reinava em todos os setores administrativos e militares, depois da revolução.

O lugar era protegido a ferro e fogo por uma companhia de Fuzileiros Especiais, mas que seria retirada, pois estavam, ao contrário dos guerrilheiros, deixando de lutar em todas as frentes, abandonando a população indefesa à mercê dos assassinos da Frelimo, desejosos de vingança e poder. O quartel, antiga missão de propriedade da Consolata, ficaria vazio. Ofereci-me para ocupá-lo para evitar que fosse depredado pêlos nativos, até que voltasse a ser usado como Missão novamente.

Aceitaram e para lá rumei numa lancha de desembarque da marinha, em seis horas de balanço nas vagas do lago.

Os fuzileiros preparavam para deixar o quartel. Armados até os dentes, com as fitas de munição de suas MG enroladas no peito e morteiros 60 em posição, continuavam atentos nas montanhas, temendo um ataque de última hora.

A bandeira portuguesa foi arriada pela derradeira vez naquelas paragens, jogando por terra o duro trabalho de gerações inteiras de jovens que ali deram seu sangue e suor em nome da Pátria.

O oficial cortou com sua faca de combate as cordas do mastro para que a bandeira da Frelimo não subisse tão cedo. De um lado a Companhia toda formada, do outro, eu, sozinho e no momento desarmado, assistindo a cerimónia. Para os militares eu só poderia ser algum terrorista, pois nunca um branco ficaria só num lugar que fora preciso uma companhia inteira de aguerridos fuzileiros para defendê-lo.

Meu único meio de comunicação com Metangula, a base naval, era um rádio. Qualquer auxílio que necessitasse demoraria no mínimo três horas, com as lanchas rápidas intervindo. Na aldeia, situada abaixo do quartel, ficariam 39 milícias africanos, armados com fuzil Mauser modelo 1908...

Como numa retirada em combate, os fuzileiros afastaram-se em lanchas de desembarque, com a vigilância dos lança-foguetes de uma patrulheira colocada ao largo.

Quando os últimos preparavam para embarcar, uma cápsula de sinalização "very-ligth" ergueu-se aos céus, no extremo da antiga pista de pouso. Os guerrilheiros davam sinal de sua presença...

Entardecia e quando o pequeno comboio sumiu à distância no lago voltei para o quartel; 36 salas vazias me esperavam num prédio cercado de trincheiras e arame farpado.

Abri minha mala retirando dela duas granadas defensivas, que comprara dias antes de um soldado em Vila Cabral, capital do Niassa. Com um arame, amarrei uma delas a uma das folhas da porta do quarto, enquanto que outro arame ia de sua cavilha de segurança até um furo no meio da folha seguinte, apenas introduzido, sem prender. Saí, fechei-as e travei o arame por fora. Se alguém tentasse mexer no quarto, forçando as portas, a granada explodiria. Obviamente eu não estaria dentro.

Com a outra granada debaixo da camisa percorri a escura trilha de uns 500 metros até a casa do Administrador da aldeia, situada no topo de uma elevação. O administrador (uma espécie de prefeito) também era africano, um ex-membro dos Grupos Especiais pára-quedistas, portando de confiança. Era o responsável direto pelos milícias e eu faria minhas refeições em sua casa.

Opinava ele que eu, como único branco em uma zona de 100% já estava cheirando a cadáver, pois era alvo em potencial para os terroristas. Cedeu-me uma FBP 9mm, cópia portuguesa da Smeisser alemã (sub metralhadora), seis carregadores de munição e mais duas granadas. Acertamos que eu poderia inspecionar e trocar ideias para a melhora da defesa do dispositivo montado pêlos milícias, que encontrara repleto de falhas. Com isso aos poucos, iria assumindo o controle total da situação, para alívio do Administrador, que nada queria com estes tipos de responsabilidade.

Naquela primeira noite voltei ao quartel, mas não me dirigi ao quarto. Subi por uma escada de madeira a uma espécie de sótão, situado no centro do edifício e puxei-a para cima; a janela dominava uma grande área e o sótão tinha ligação com o resto do teto. Estava limpo, com as paredes cobertas de fotos de mulheres nuas.

          Nada mal, agradeci mentalmente ao fuzileiro que tivera a ideia de transformar o cubículo em quarto. Preparado, adormeci tranquilo com a arma ao alcance da mão, na minha primeira noite em zona de combate real; desta vez não se tratava de manobras, como fazíamos no Brasil...

Começava minha vida de combatente substituindo a uma Companhia inteira... Como princípio estava bem, pensei, queria lutar, exercer a profissão e agora estava com guerrilheiros inimigos até na sopa.

A noite passou e a Frelimo não deu o ar de sua graça.

Considerava crucial a primeira noite de aldeamento sem os fuzileiros, mas a princípio os terroristas não pretendiam atacar de imediato.

Logo pela manhã, troquei minha roupa civil pelo traje verde das milícias, embora oficialmente continuasse uma espécie de missionário e percorri o aldeamento em companhia do administrador.

O "dispositivo de defesa" simplesmente não existia. Os milícias deixavam suas armas nas palhoças e iam pescar. Reuni o pessoal e indiquei quatro pontos estratégicos, onde mandei que cavassem trincheiras. Organizei um sistema de rodízio, já que não podia impedi-los de procurar alimentos e passei a controlar pessoalmente o estoque de munição e granadas ofensivas, que os nativos desviavam respectivamente para caçar e pescar.

À beira do lago, lanço algumas rajadas para me acostumar com a metralhadora portuguesa, que por sinal falha bastante quando da ejeção da cápsula. Depois, sozinho, começo minhas patrulhas diárias, explorando as redondezas. Havia sinais de presença de inimigo nas proximidades, mas os dias se passavam, e nada...

...Num achado interessante deparei-me um dia, mato cerrado adentro, com dois túmulos cobertos de tijolos e com cruz, nitidamente de europeus. Gravados, dois nomes de mulher, Eleonora Mirian Lizzi e Charlotte T. Elza e a data de 29 de agosto de 36 (36-Aug-29) em inglês. Missionárias? Aventureiras? Que mistério continha aqueles túmulos escondidos? Na década de trinta, mesmo para um homem, a região do Niassa se constituía num território perigoso e desconhecido. Nenhum nativo soube ou quis me dizer algo a respeito...

O barco que semanalmente vinha de Metangula, trouxe um reforço, um guarda PSP (Polícia de Segurança Pública), também africano, armado de G-3 (fuzil semi-automático), o que melhorava nosso pequeno arsenal. O guarda Abdul tornou-se um auxiliar precioso, tinha consciência militar, ao contrário dos ociosos milícias.

Um nativo cujo desaparecimento estávamos investigando reapareceu na aldeia com notícias interessantes. Fora capturado e posteriormente libertado pelos guerrilheiros, que lhe interrogaram sobre a saída dos fuzileiros, na qual não acreditavam, pensando numa cilada. O nativo confirmou, mas disse-lhes que haviam ficado "trinta brancos, bem armados", mentira que provavelmente estava provocando o adiamento do ataque ao aldeamento, pois pretendiam saquear a cantina, como era costume fazerem nas vilas desprotegidas.

Pelo rádio, informavam-nos sobre ataques a lugares próximos abandonados pelos portugueses. Em Cóbue, sem novidades...